Por Sierra
Não tem dado para escapar do assunto. Quem acompanha o noticiário ou vive conectado ao universo das várias redes sociais certamente deve estar a par de um, vá lá, fenômeno social e comportamental que atende pelo nome de bebê reborn. Bebês reborn são bonecos muito, muito bem feitos, bonecos hiper-realistas que impressionam e confundem pessoas que chegam mesmo a pensar que eles são bebês humanos.
E por que tais bebês reborn têm confundido e chamado a atenção de tantas pessoas? Porque, ainda que sejam bonecos e, portanto, como tais, supõe-se que eles deveriam aparecer somente nos braços de crianças, como brinquedos, porque bonecos e bonecas fazem parte, há centenas de anos, da experiência do lúdico no universo infantil de diversas sociedades ao redor do mundo, não é o que tem sido visto por aí. Os hiper-realistas bebês reborn e o lidar com eles não têm sido vistos na esfera de um ludicidade infantil e, sim, como elementos integrantes da vida de mulheres adultas.
Considerados como membros da família, bebês reborn vêm ganhando status de seres humanos; e, se eles são tidos como bebês de carne e osso por suas mamães adotivas, é claro que eles merecem receber os mesmos cuidados, a mesma atenção e os mesmos carinho e amor que os pais comumente destinam aos seus filhos. Daí por que proliferaram nas redes sociais e até na TV imagens em que aparecem mulheres cuidando de seus filhinhos nas mais diversas situações: trocando fraldas; passeando com carrinhos; e desfrutando essa maternidade reborn em muito bem montados e lindamente decorados quartos nos quais, é evidente, não poderiam faltar um confortável bercinho. Tudo seguindo à risca o que se faz com os bebês humanos, inclusive, embalando eles nos braços e entoando canções de ninar para que eles adormeçam e as tão dedicadas e afetuosas mãezonas possam, enfim, descansar depois de um dia tão estafante.
Não sou especialista em comportamento humano. O que está sendo dito aqui não são nada mais do que observações primárias de um espectador do cotidiano que o envolve. Quando eu comecei a ver o comportamento de mulheres com os tais bebês reborn, tanto nas redes sociais como nos sites de notícias, eu, a princípio, tomei isso como mais uma peça de marketing para a divulgação de um produto - que, diga-se de passagem, não é barato - e como mais uma das chamadas trends, tendências que de vez em quando surgem nas redes sociais e às quais muitos de seus usuários aderem e copiam com o intuito de ficarem na crista da onda e, por conseguinte, ganharem um montão de likes, curtidas e comentários e, assim, fazer a engrenagem da fortuna girar e a felicidade monetária brilhar intensa e duradouramente.
Acontece que, não demorou muito, eu comecei a duvidar que a suposta tendência e onda bebê reborn fosse somente uma peça de marketing de um lucrativo comércio; e eu disse assim de mim para mim: "Se isso forem meras peças de propaganda, essas mulheres que atuam nelas são muito boas atrizes". Foi a partir desse momento e dada a relevância com que esse negócio começou a ser tratado por veículos noticiosos e de entretenimento, que outras questões me chegaram. A saber: será que essas mães de bebês reborn estão sofrendo de algum problema psicológico ou distúrbio psiquiátrico? Será que elas são mulheres que tiveram algum trauma sexual, que perderam seus filhos ou não querem ou não podem engravidar? Será que elas sofreram desilusões amorosas e/ou agressões físicas de seus maridos, namorados e companheiros numa sociedade tão misógina e feminicida como é a nossa e abdicaram da possibilidade de uma maternidade, digamos, natural? Será que essas mulheres estão somente brincando de bonecas e colecionando tais brinquedos caros - existem inúmeros colecionadores, homens e mulheres, de bonecas Barbie, por exemplo -? Ou será, simplesmente, que os bebês reborn não passam de mais um modismo como aqueles famigerados tamagotchis - uma espécie de animaizinhos virtuais que deveriam ser bem cuidados e alimentados, se não eles morriam - que fizeram um tremendo sucesso na segunda metade da década de 1990?
Seja o que isso for, o caso desses bebês reborn inevitavelmente me trouxe à lembrança uma canção composta pelo Léo Jaime que foi lançada pelo Eduardo Dusek, em 1982, chamada "Rock das cachorras", cujos versos "Troque seu cachorro por uma criança pobre/Sem parente, sem carinho, sem rango, sem cobre/Deixe na história de sua vida uma notícia nobre" permanecem tão contundentes e atuais numa sociedade que, ao mesmo tempo que exacerbou sua relação com animais de estimação, ao ponto de tentar humanizá-los, colocando roupas neles e fazendo até festinhas de aniversário para eles, por outro lado, condena e persegue pessoas, como o Padre Júlio Lancellotti, que saem às ruas para cuidar de "bichos humanos", como o do poema "O bicho", de Manuel Bandeira, que ele viu "Na imundície do pátio catando comida entre os detritos" e que parte da sociedade ignora e/ou faz de conta que não existem.
Talvez os bebês reborn e as suas tão dedicadas, zelosas e amorosas mães sejam muito mais do que peças integrantes de um negócio muito lucrativo. Daquilo que eu sei - repetindo os versos da bela canção do Ivan Lins e do Vítor Martins - nem tudo me deu certeza, mas me levou a acreditar que, para enfrentar os desafios cotidianos e suportar os fardos da vida, há quem recorra a variadas drogas e múltiplos remédios, mesmo sabendo, de antemão, de seus potenciais destrutivos e/ou de seus efeitos placebo.
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