Por Sierra
Durante um certo tempo, desde que eu tive a oportunidade e a grande satisfação de conhecê-lo, eu fiz várias visitas ao renomado e admirado ceramista e pintor talentoso Zé do Carmo, na sua casa, em Goiana, que também era ateliê e museu. Nessas visitas periódicas e quase sempre muito ricas de aprendizado e conhecimentos para mim tanto sobre a vida do artista Zé do Carmo como sobre parte da vida cultural e artística pernambucana, eu fui percebendo que, realmente, aquele contato que eu estava mantendo com ele era muito importante também para a compreensão do meu eu intelectual e artístico. Até que um dia, como num passe de mágica, como num encanto que de repente se desfaz, como nas estórias da Carochinha, Zé do Carmo não quis mais me receber em sua casa e nem falou mais comigo. Isso foi muito,muito ruim para mim, porque eu nunca soube a razão dessa rejeição, muito embora eu já soubesse, pelo que nós conversávamos e por algumas de suas atitudes para com outros seus conhecidos, que ele tinha, assim como eu, um temperamento que o levava, por vezes, a rejeitar algumas pessoas de uma hora para outra e retirá-las do seu convívio.
Tendo ocorrido esse rompimento entre mim e o Zé do Carmo, eu tive de me conformar em ter que acompanhar fatos de sua trajetória artística e de sua vida pessoal lendo uma coisinha e outra que saía na imprensa e pelos telefonemas que eu fazia para a esposa dele, Marinalva Ferreira. E, como durante algum tempo eu perdi o contato telefônico com ela, só vim a saber do falecimento dele, que se encontrava bastante adoentado e debilitado, no ano passado, anos depois do ocorrido. E foi outra lástima para mim. Mas o que é que eu poderia fazer, já que a vida é assim?
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Mandei confeccionar este banner há mais de dez anos; e ele continua lá, no museu |
Tendo conseguido restabelecer o meu contato com Marinalva Ferreira no ano passado - eu liguei para o Restaurante Buraco da Gia e pedi à pessoa que me atendeu para pegar o número dela -, eu renovei e atualizei informações sobre Zé do Carmo. E esse interesse renovado me fez ir até Goiana, no último dia 18 de junho, para, mais uma vez, voltar a pisar no chão da agora casa-museu de Zé do Carmo. E foi um desses reencontros inesquecíveis e revigorantes o que eu tive com a Marinalva Ferreira, que sempre me recebeu com o maior carinho e simpatia e a quem eu já agradeci muitíssimo por isso.
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Estas peças são da lavra da mãe de Zé do Carmo, a talentosa Joana Izabel de Assunção |
Dias antes da minha visita, o Serviço Social do Comércio (Sesc) de Goiana organizara e promovera, na própria casa-museu, a abertura da exposição "O sagrado barroco de Zé do Carmo", com curadoria de Leandro Roberto. Em linhas gerais a exposição, que teve início no último dia 4 de junho e deverá ficar em cartaz até o dia 4 de agosto, não diz bem do seu propósito, considerando o seu título e o lugar escolhido para tal, e, muito menos no que diz respeito à exibição e disposição das obras. Ora essa, como é que você organiza uma exposição num espaço museal que exibe todas as fases da obra de um artista, dá a entender que fez um recorte delas com uma curadoria e o visitante se depara com uma infinidade de peças expostas que, além de nem terem sido identificadas, não são todas obras de arte sacra e nem de autoria do artista Zé do Carmo? Seja como for, a exposição atenderá inteiramente, eu acredito, às expectativas de um público que seja leigo tanto no que diz respeito à obra de Zé do Carmo quanto aos ambientes e concepções de exposições em museus e galerias de arte.
Não foi propriamente para prestigiar a exposição organizada pelo Sesc-Goiana que eu fui até aquela casa-museu - oficialmente a sua denominação passou a ser Museu Mestre Zé do Carmo -; eu fui até lá para novamente me ver inserido, mergulhado e reconectado fisicamente com aquele universo concebido e pensado por Zé do Carmo. E minha satisfação foi ainda maiior porque eu me dei conta de que, ao contrário do que mais de uma vez a Marinalva Ferreira me falara nos tempos em que eu frequentava aquela casa-museu com alguma regularidade, ela não se desfez das obras de Zé do Carmo e nem desfigurou o ambiente museal que ele próprio concebera.
Mas não tem sido nada fácil para Marinalva Ferreira preservar e tentar manter em evidência o legado artístico e cultural do seu falecido esposo. As coisas não estão completamente boas na casa-museu, onde ela reside por trás das duas pequenas salas onde as obras ficam expostas. Ela sobrevive com uma aposentadoria de um salário mínimo. Segundo ela me contou, numa demorada e boa conversa, pouquíssimas pessoas aparecem para visitar o museu que, embora não cobre um ingresso pela visitação, mantém, ao lado do livro de assinaturas dos visitantes, uma caixinha para qualquer colaboração financeira; e, mesmo os poucos vistantes nem sempre têm interesse em adquirir obras de Zé do Carmo, cujos preços começam em R$ 300,00, e nem as camisetas que trazem um retrato dele e os folhetos de cordel e os livros que se encontram à venda - sobre os folhetos e os livros, que são de terceiros, ela recebe uma porcentagem.
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Marinalva Ferreira, viúva de Zé do Carmo: guardiã incansável do admirado legado do grande artista pernambucano |
Marinalva Ferreira me guiou por toda a casa, que eu muito bem conhecia; e me mostrou rachaduras e afofamento de paredes que há anos estão lá esperando por reparos. Ela me mostrou ainda algo também bastante preocupante: várias pinturas, vários quadros pintados por Zé do Carmo que estão atulhados fora das salas de exposição porque se encontram com as molduras estragadas devido à ação de insetos. É uma situação realmente terrível.
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Estas molduras estão todas deterioradas devido à ação de insetos... |
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Já estas pinturas estão carecendo de molduras |
Com o semblante sereno de sempre, Marinalva Ferreira me contou também que o jovem artista plástico Edilson Oliveira tem lhe ajudado como pode, inclusive, levando obras de Zé do Carmo para vender; e que foi com o auxílio dele que ela recebeu um recurso financeiro - ela não soube me dizer de qual programa cultural o dinheiro veio - que lhe possibilitou mandar consertar o telhado da sala do lado esquerdo do museu.
Durante vários anos, gozando do status de Patrimônio Vivo de Pernambuco, Zé do Carmo, além de sua aposentadoria paga pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), recebia um auxílio financeiro pago pelo governo estadual referente à outorga daquele título. Ocorreu que, após o seu falecimento, esses recursos foram naturalmente extintos; e, assim, Marinalva Ferreira vem fazendo das tripas coração e o que pode para manter a casa-museu aberta e o legado do seu marido em evidência. Não se sabe até quando ela e o filho Zezinho conseguirão seguir juntos e firmes nessa peleja.
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