Por Sierra
Eu não gosto somente de conhecer cidades e lugares nos quais eu nunca pisei. Eu também aprecio rever e andar à toa por cidades e lugares que deixaram um pouco ou um muito de si em mim quando deles eu me afastei e tomei o rumo de casa. Eu gosto de rever cenários, de me encantar novamente, de sentir cheiros e odores característicos daquele lugar e, intimamente, eu torço para o que de desagradável eu vira na visita anterior tenha de alguma maneira sido removido.
Voltar a alguns lugares já conhecidos é, de certa forma, como entrar numa máquina do tempo, principalmente, quando esses lugares são centros históricos, porque, em tese, considerando as leis de preservação do patrimônio edificado e os cenários nos quais eles estão inseridos e foram erguidos, eles não sofreram com alterações e/ou com ações de destruição, de modo que é muito provável que você irá encontrar de pé, resistindo ao transcurso imparável do tempo, aquilo que os seus olhos viram noutra ou noutras ocasiões.
Na manhã do último dia 18 de junho, atendendo a um chamameto do coração e da razão, eu embarquei num ônibus, em Igaraçu, rumo à cidade de Goiana, localizada na Zona da Mata Norte pernambucana, na fronteira com a nobre Paraíba.
Atravessando um clima instável,pontuado por chuva e sol, aguaceiros repentinos e estios, eu desembarquei naquela cidade histórica que ainda tem os seus arredores tomados e marcados por canaviais a perder de vista, terras em que um movimento fabril e imobiliário vem erguendo indústrias e conjuntos habitacionais.
Desembarquei do ônibus e, meio que desorientado, me pus a atravessar ruas, largos e praças parando, aqui e ali, para processar o que os meus olhos naturalmente viam e que eu, vez por outra, registrava com a câmera do meu smartphone.
Não sei lhes dizer qual é exatamente a dimensão, em quilômetros, do sítio histórico de Goiana. O que eu sei é que ele é reconhecido como Patrimônio Histórico Nacional desde 1938, ou seja, desde um ano após a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional que, ao longo da sua chamada "fase heroica", sob a direção de Rodrigo Melo Franco de Andrade, recebeu várias denominações até resultar na atual, que é Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Eu também sei lhes dizer que o centro histórico goianense é marcado sobretudo por imponentes edificações religiosas num plano urbano que tem um traçado sobre uma superfície extensa e plana.
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Museu Mestre Zé do Carmo, na Rua Padre Batalha: um espaço que merece também ser visitado como reverência a um dos artistas mais talentosos da cidade |
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Eu ao lado da sempre gentil e generosa Mrinalva Ferreira, viúva de Zé do Carmo |
Depois de visitar e rever o agora denominado Museu Mestre Zé do Carmo, prestigiar a exposição "O sagrado barroco de Zé do Carmo" que, sob a curadoria de Leandro Roberto, o Serviço Social do Comércio (Sesc) montou e inaugurou lá - o vernissage ocorreu no último dia 4 de junho - e demoradamente conversar com Marinalva Ferreira, viúva do Zé do Carmo, eu voltei a flanar pelo centro histório como seu eu não soubesse fazer outra coisa na vida além de bater perna e caminhar sem expressar sinal de cansaço.
Parei para almoçar no Restaurante Monte Sinai, que fica na Rua. Dr. Manoel Borba, bem defronte à Praça da Bandeira, que foi recentemente revitalizada, que é como que um prolongamento do adro da Igreja de Nossa Senhora do Amparo e onde a Prefeitura Municipal autorizou que se instalasse ali, no meio da praça, quebrando a harmonia e o bucolismo da praça, uma Banca Menezes que faz feia figura no local. Eu, sinceramente, não compreendo como a Municipalidade permite que coisas como essa ocorram. Quanto ao restaurante, meus caros leitores, eu comi ali um feijãozinho e uma galinha à cabidela que estavam uma delícia. Com certeza eu voltarei a comer ali de novo.
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Uma das edificações que se encontram em estado de abandono |
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Gente, que delícia que estavam esse feijãozinho e essa galinha à cabidela: quero mais! |
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Felizmente várias edificações conservam a beleza e o charme de fachadas antigas que, bem cuidadas, são um dos atrativos para quem visita o centro histórico |
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No mais das vezes é a atividade comercial que mais promove modificações não só nas fachadas das edificações antigas bem como em quase toda a sua estrutura |
De volta à flânerie eu fui flagrando, aqui e ali, outros casos lamentáveis na cidade que detém o título de Patrimônio Histórico Nacional. Fazendo um grande contraste com os outros templos católicos tombados pelo Iphan, a Igreja de Nossa Senhora da Misericórdia, que eu não encontrei aberta, está com uma aparência horrível: a calçada de sua lateral direita está bastante danificada; a fachada está precisando de pintura; e o seu entorno é simplesme um horror: ao seu lado esquerdo foram construídos imóveis que, além de enfearem o lugar, estão inacabados; e o comércio ambulante ocupa espaços de modo desorganizado.
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Muitas edificações antigas foram destruídas e/ou completamente modificadas. Nos adros das igrejas podemos constatar vários flagrantes disso |
Percorrendo a área de ocupação urbana mais antiga da cidade, um observador atento verifica e se depara não só com uma lamentável e dramática descaracterização de imóveis - descaracterização essa feita tanto por comerciantes como por moradores -; calçadas estreitíssimas ocupadas num ponto e noutro por postes de iluminação pública, quando se sabe que, em várias cidades históricas se buscou fazer instalação subterrânea de fiação elétrica com o objetivo de retirar postes, remover a poluição visual provocada por ajuntamentos de fios e diminuir os riscos de incêndios provocados por curtos-circuitos -; e alguns imóveis abandonados - ter visto obras em andamento na fachada de um sobrado localizado na Rua Cordeiro de Farias foi um grande alento para mim, porque eu vi que nem todos os habitantes da área central mantém um ímpeto de querer "modernizar" os seus imóveis.
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Fachada de sobrado na Rua Cordeiro de Farias sendo restaurado: viva! |
Aos que frequentam centros urbanos históricos e querem de alguma forma terem ao menos uma noção do quanto ali foi preservado e/ou destruído e alterado no que diz respeito ao patrimônio edificado, eu sugiro e proponho que eles façam o seguinte exercício: se posicionem, fiquem de pé diante da porta principal de uma igreja ou capela e lancem a vista sobre o adro da construção religiosa. Lá em Goiana eu fiz isso defronte a cinco igrejas; e os quadros que eu vi foram muito melancólicos e lamentáveis. A simplicidade e beleza de fachadas de outrora - eu digo simplicidade e beleza tomando algumas poucas edificações antigas que sobreviveram nos adros que eu observei: Igreja de Nossa Senhora da Misericórdia, Igreja de Nossa Senhora do Amparo, Igreja de Nossa Senhora do Carmo, Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário e Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos - deram lugar a construções que posam como coisas fora do lugar, com fachadas cobertas de cerâmica, toldos, grades e outras modificações que alteraram, por vezes completamente, a fisionomia da cidade antiga, removendo rastros do passado e apagando para sempre a sua memória urbana edificada.
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Observem, à direita e à esquerda, a presença de postes de iluminação pública ocupando os espaços reduzidos das calçadas |
Enquanto eu caminhava pelas ruas do centro histórico de Goiana olhando o que nelas ainda eram permanências - e resistências - do seu passado distante, eu fui me dizendo que o processo de autofagia urbana que ali está se processando - e eu sei que, por conta, principalmente, das unidades fabris que se instalaram nos arredores da cidade os preços de compra e aluguel de imóveis subiram absurdamente por lá - não tardará a descaracterizar ainda mais a arquitetura civil de outrora, tamanhos são o descaso e o pouco apreço que parte de sua população tem para com a preservação do patrimônio histórico edificado da cidade.
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Nesta e na foto seguinte, dois flagrantes de mais duas edificações abandonadas e entregues à própria sorte |
Eram 15h40, quando eu embarquei num ônibus de volta para casa. A Goiana que ficou em mim naquele dia se juntou às outras que eu comecei a carregar comigo desde quando, muitos anos atrás, eu comecei a visitá-la para conhecê-la e compreender os porquês de sua riqueza histórica e de sua grandeza urbana e arquitetônica no panorama nacional.
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