Por Sierra
De dias muito lá de atrás
O narrador do verbete dedicado a Piranhas na Enciclopédia dos Municípios Brasileiros iniciou-o dizendo que as primeiras informações sobre essa cidade, que dista a cerca de 221 km de Maceió, datam do século XVIII. E nos pôs em face da descrição de uma lenda. Leiamos o que ele disse:
Fala a lenda em duas famílias que teriam predominado na região: os Feitosas e os Alves. A localização era, então, conhecida como Tapera. Conta-se que em um riacho que é hoje chamado das Piranhas, um caboclo pescou uma grande piranha. Preparou e salgou o peixe, levando-o para sua residência. Lá chegando, verificou que se esquecera do cutelo. E voltou-se para o filho dizendo-lhe com ênfase: "Vá ao porto da piranha e traga o meu cutelo". Essa versão foi passando de geração em geração e, segundo parece, ficou o lugar denominado Piranhas. E como, com o decorrer do tempo, longe de escombros e prédios espalhados, passou a ser uma povoação organizada, o nome de Piranhas foi-se estendendo desde o riacho até a povoação (Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1959, vol. XIX, p. 137).
De acordo com esse nosso narrador e guia, para os que, vindos dos sertões de Pernambuco, da Bahia e de outras partes da região banhadas pelo Alto Rio São Francisco, tinham que viajar rumo ao litoral e vice-versa, o porto de Piranhas era sempre "o escolhido por estância ou entreposto onde terminavam as jornadas por terra dos que desciam, e as viagens por água dos que subiam", porque, ainda que não de todo desimpedida, a navegação pelo Baixo Rio São Francisco começava a ser praticável. E foi esse movimento que deu "impulso no desenvolvimento comercial, ainda nos tempos em que tinha reduzidíssimo núcleo de povoação".
Diz-se que muito do progresso do lugar se deveu ao trabalho dos antigos proprietários da Fazenda Caiçara, Antônio Ferreira e Manuel Ferreira, cuja propriedade ficava no local em que atualmente se encontra a zona suburbana da cidade conhecida como Piranhas de Baixo. Outro nome destacado como responsável pelo crescimento da localidade é o coronel Luiz Dantas Casado de Melo, que deu nome à atual vila Olhos-d'Água do Casado, que era onde ele residia.
À ação desses homens se somou o estabelecimento da navegação a vapor, em agosto de 1867, fazendo o percurso Penedo-Piranhas, que movimentou a economia, dando um impulso maior às demandas dos que viviam ali. Mas o maior marco do seu desenvolvimento estava por vir.
Como ocorre em outras cidades históricas deste país, também em Piranhas a ocupações dos arredores e dos morros marcam presença sem que o poder público consiga coibi-las |
Nos trilhos do progresso
Talvez o maior símbolo do progresso do tempo em que surgiram no que diz respeito tanto à locomoção como ao transporte de cargas, a ferrovia marcou de modo por vezes assombroso e assustador alguns dos lugares por onde os trilhos foram fincados e os trens começaram a correr barulhentos e ligeiros, como se fossem animais arredios que saíam correndo pelos campos em disparada.
Num livro que é um verdadeiro primor de composição gráfica e de pesquisa, João Emilio Gerodetti e Carlos Cornejo introduziram os seus leitores no assunto desta maneira:
As ferrovias sugiram no Brasil para preencher uma vazio nos transportes. Barulhentas e perigosas, as composições ferroviárias, nos primeiros tempos movidas a vapor, compensavam todos os transtornos. Nas cidades por onde passavam, davam emprego, traziam o progresso, abriam o mundo aos então isolados habitantes desses lugares perdidos pelo nosso interior, na época muito dependentes da navegação fluvial ou marítima, de carruagens e de tropas de mulas, todas lentas demais (João Emiliio Gerodetti e Carlos Cornejo. As ferrovias do Brasil nos cartões -postais e álbuns de lembranças. São Paulo: Solaris Edições Culturais, 2005, p. 10).
É ainda dessa obra admirável, que contém duas belas imagens de Piranhas no tempo em que a ferrovia estava em pleno fundamento, o excerto que leremos a seguir:
Foi o engenheiro André Rebouças quem teve a ideia de construir uma estrada de ferro que ligasse os dois trechos do Rio São Francisco, separados pela Cachoeira de Paulo Afonso, obstáculo natural para a navegação daquele rio. Dessa forma, seria viável a ligação entre a foz do São Francisco e o interior, interrompendo-se a navegação em Piranhas, Alagoas, a 228 quilômetros do mar. Nesse local, as mercadorias e passageiros seriam transportados pela ferrovia, para depois desembarcar no seu ponto final, em Jatobá, hoje Petrolândia, em Pernambuco, retomando a via fluvial em direção à nascente do rio, num percurso total de quase dois mil quilômetros, a partir da foz. A ferrovia, saindo de Piranhas, passava por quatro estações em Alagoas e duas em Pernambuco, até chegar em (sic) Jatobá num trajeto total de quase 116 quilômetros. As obras foram iniciadas em 1879, prolongando-se até 1853, quando a estrada foi entregue ao tráfego (João Emilio Gerodetti e Carlos Cornejo. Op. cit., p. 233).
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Esta imagem e a seguinte aparecem, respectivamente, nas páginas 232 e 233 do livro de João Emilio Gerodetti e Carlos Cornejo |
Destacando o impacto da instalação da ferrovia em Piranhas, o narrador da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros disse assim:
[...] o maior fator do seu desenvolvimento deve-se à construção da estrada de ferro. Apertada entre a margem do rio e a montanha que da mesma margem começa a erguer-se, a população via-se sem espaço suficiente para se expandir. A ferrovia de Paulo Afonso, indo de Piranhas a Jatobá, no Estado de Pernambuco, veio demover, em grande parte, os obstáculos criados pela natureza e abrir margem para o alargamento da localidade (Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Op. cit., p. 137).
Não se pense que foi uma tarefa das mais fáceis os trabalhos para a instalação da ferrovia. Pelo contrário. O serviço era muito árduo e perigoso. Documentos reunidos por Luiz Ruben Ferreira de Alcântara Bonfim nos informam de acidentes graves que ocorriam durante as explosões de minas: em 1879 ocorreram várias amputações de membros dos trabalhadores "em decorrência de ferimentos causados pela explosão de minas nos trabalhos da estrada" ("A fala com que o Exm. Sr. Cincinato Pinto da Silva, Presidente da Província, instalou a 1ª Sessão Ordinária da 23ª Legislatura Provincial de Alagoas em 16 de abril de 1880". In Luiz Ruben Ferreira de Alcântara Bonfim. Estrada de Ferro Paulo Afonso - Sua origem. Volume II. Paulo Afonso: Edição do Autor, 2007, p. 104).
A Pousada O Canto |
A Casa do Patrimônio, do Iphan |
Para além dos trilhos
Pela Lei provincial nº 964, de 20 de julho de 1885, foi criada a freguesia de Piranhas, sob a invocação de Nossa Senhora da Saúde, não tendo, porém, instituição canônica. Já a Lei provincial nº 996, de 3 de junho de 1887, criou a vila com território desmembrado dos municípios de Pão de Açúcar e Água Branca.
Em 1939 Piranhas teve o seu nome mudado para Marechal Deodoro, tendo permanecido sob essa denominação até 1949. Segundo o quadro da divisão administrativa fixado pela Lei nº 1785, de 5 de abril de 1954, o município ficou composto por três distritos: Piranhas, Entremontes e Olhos-d'Água do Casado - o Recenseamento Geral de 1950 anotou que, contando com 398 habitantes e 126 prédios, Entremontes não possuía iluminação elétrica.
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Esta imagem e as duas seguintes aparecem, respectivamente, nas páginas 137, 139 e140 da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros |
Como se fosse um cenário incrustado numa montanha, quando vista a partir do Rio São Francisco, Piranhas perdeu as atividades ferroviárias mas conservou as construções que pontuavam os tempos em que parte da vida socioeconômica da cidade corria sobre trilhos. Ao longo das últimas décadas do século XX o cenário urbano da época de ouro do movimento ferroviário foi modificado e expandido - imaginem que, segundo dados compilados pelo narrador da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros que, como eu já informei aqui, teve o volume XIX publicado em 1959, Piranhas era constituída naqueles dias por apenas 269 prédios, "e não há, entre os mesmos, nenhum digno de nota" (Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Op. cit., p. 139).
E foi para a Piranhas do século XXI que eu me dirigi com uma vontade danada de conhecê-la.
A sorveteria ficava nesse prédio amarelo, à esquerda |
De viagens e de lembranças
Foi no começo da tarde, precisamente às 13h30 do dia 15 de dezembro de 2017, que eu fiz a minha primeira visita a Piranhas. E, tão logo eu me alojei no quarto 1 da minúscula Pousada São Francisco, localizada no coração do centro histórico, que é a chamada Cidade Baixa, em contraste com a Cidade Alta, que é parte mais recente do perímetro urbanizado do município, eu imediatamente tratei de começar a explorar aquele território que, visto assim de relance, aos meus olhos, se revelou ser tão encantador.
Ah, eu pulei uma parte. Vamos lá: eu tomei um ônibus em Aracaju, onde me encontrava hospedado, rumo a Piranhas. Acontece que o coletivo só foi e vai até a vizinha e sergipana cidade de Canindé do São Francisco. Desembarquei ali às 12h30; e morrendo de fome, andei à procura de um restaurante; e comi um delicioso pirão de galinha no O Galileu. De bucho cheio, eu embarquei numa van em direção a Piranhas. Ocorre que as vans só podiam e podem ir - ou só podiam ir - até a parte alta da cidade; ali eu tive de recorrer a um mototáxi para finalmente chegar à parte mais antiga da famosa Piranhas.
Pois bem, como eu ia dizendo, assim que eu guardei as minhas coisas no quarto da pousada, eu saí para dar início ao reconhecimento do campo. E eu andei. Eu ando demais, leitor. Andar é o estímulo e o motivo maior de todo explorador e de quem se toma como viajante, porque viajante não é um simples turista.
Ainda na tarde daquele dia eu me maravilhei com o conjunto predial da Piranhas histórica que estava quase todo ele bem preservado. O casario antigo e o próprio traçado das poucas ruas da Cidade Baixa são um encanto posto em cores vivas.
Subi os mais de trezentos degraus que levam ao mirante que é uma "homenagem do povo século XIX para o povo do século XX". Enquanto vencia os degraus, eu fui vendo que a ocupação do morro por unidades residenciais recentes marcava uma das frentes com a qual o pessoal do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) tinha e tem de lidar. Com tanto espaço na Cidade Alta por que ocupar justamente o perímetro que abarca as edificações históricas, deformando a paisagem e toda a ambiência que dão um charme àquele núcleo urbano, principalmente quando ele é visto dos altos de seus mirantes e do Rio São Francisco?
Fiz parada no Museu do Sertão, do qual tratarei detidamente em outro texto. O museu e também a Biblioteca Pública Educador Valdemar Damasceno dos Santos ocupam a antiga estação ferroviária, dando um grande e bom exemplo a todas as cidades que deixaram os prédios das estações ficar em ruínas. Uma iniciativa realmente digna e merecedora de aplausos.
Ainda na rua da antiga estação ferroviária eu segui em frente. E cheguei a tempo de ver parte de um jogo que rolava no campo do Rocinha Futebol Clube, que fica praticamente defronte ao prédio de feições antigas que abriga a Pousada O Canto, onde, naquela tarde, eu tratei com o recepcionista Thainan Yuri, que me falou de atrativos da cidade.
Prefeitura Municipal |
Sem demonstrar nenhum sinal de cansaço, lá fui eu subir mais centenas de degraus, desta feita para chegar a outro mirante, este, uma "homenagem do povo do século XX ao povo do século XXI", onde se encontra a pequena Igreja do Senhor do Bonfim. O que se vê dali é uma vista deslumbrante, uma das paisagens naturais mais bonitas que eu já vi: o curso do Rio São Francisco separando Alagoas e Sergipe com aquela atmosfera de quase fim de tarde me encantaram completamente. E eu senti vontade de ter morada naquele pedacinho de Piranhas, onde os meus olhos ternamente contemplaram uma ideia feliz de lugar.
Desci a longa e íngreme escadaria e fui caminhar por outros espaços da cidade, porque era essencialmente para isso que eu fora parar ali.
Ao fundo, nós podemos ver que um casarão que está caindo aos pedaços |
Mais um imóvel abandonado e prestes a desaparecer da paisagem urbana: nem tudo em volta é só encantamento em Piranhas |
É harmonioso o conjunto de prédios antigos de Piranhas; e eles conferem à paisagem um encanto com suas cores. Mas eu não enxerguei ali só cores e harmonia na comunhão do casario com o traçado das ruas. Passei pela sede da Prefeitura Municipal, na escadaria da qual - a escadaria não é a mesma da década de 1930 - foram expostas as cabeças de Lampião e de parte do seu bando. Na rua onde estava instalada a Secretaria de Educação, um dos imóveis era só fachada: a parte de atrás estava deteriorada. Igualmente em ruínas se encontravam uns imóveis nas proximidades da Igreja de Nossa Senhora da Saúde. Os canos de águas servidas das casas por ali, além de exibirem um problema sério de falta de saneamento básico, davam um tom melancólico e de descuido para aspectos essenciais do bem viver num lugar que é primordialmente explorado como um destino turístico.
Caminhei, caminhei olhando e fotografando uma coisa e outra: tanto o que me encantava como o que entristecia.
Fui conhecer a Torre do Relógio, que abrigava um café na ocasião. Perto dela, a presença necessária do Iphan, que instalou uma de suas unidades das muito bem-vindas para uns e malvistas para outros Casa do Patrimônio. E entrei também no Centro de Artesanato, Artes e Cultura, onde apreciei muitas coisas bonitas e fiquei apaixonado por uns pássaros de madeira feitos pelo artesão Zé da Silva, da cidade de Delmiro Gouveia.
Veio a noite e a Piranhas calma e serena abriu espaço para os apreciadores de uma cervejinha e de um sonzinho ao vivo.
Naquele dia eu ainda estive na Sorveteria Velho Chico, onde troquei figurinhas com os proprietários: Manuel e Lindalva. Eles marcavam ponto numa Cidade Baixa que tinha um comércio acanhadinho.
Morto de sono, eu tratei de dormir o sono dos justos, porque já tinha passeio programado para a manhã do dia seguinte.
Eram 9h20, quando o catamarã Francisco começou a navegar pelo Velho Chico dando início a um agradável passeio. Vi que tinha jogo no Estádio Municipal. Avistei a Igreja de Santo Antônio de Lisboa. E, na embarcação, o menino Lucas Duarte era ele mesmo a expressão de euforia e alegria num dia em que a paz corria mansa acompanhando a correnteza.
O garoto Lucas Duarte aproveitando o passeio de catamarã |
A prainha onde passamos parte do dia |
Atracamos. A maioria dos passageiros buscou o seu lugar ao sol ali naquela prainha onde passaríamos várias horas. Eu dei uma pausa nesse relax para ir conhecer a famosa Grota de Angicos, em Poço Redondo, já em solo sergipano, junto com um casal e a guia Wedja Rodrigues que, devidamente trajada como uma cangaceira, nos passou muitas informações enquanto seguíamos pela Trilha do Cangaço rumo ao local onde Lampião, Maria Bonita e vários cangaceiros do bando foram abatidos. Passamos, inclusive, pela casa do coiteiro Pedro Cândido. Foi um bom passeio. Aprender coisas novas nunca é demais.
Mesmo estando muito cansado, ainda na tardinha daquele dia, eu andei mais pela cidade de Piranhas, pela parte baixa da cidade, onde acabei conhecendo Augusto César, morador de Aracaju, que se prontificou a me dar uma carona no dia seguinte até a capital de Sergipe. Demos uma volta pela parte alta da cidade certos, muito certos de que a vida é feita também da matéria dos encontros e desencontros; e que se deve aproveitar os bocadinhos de alegria, prazer e satisfação que porventura o viver de todo dia nos oferecer.
Na manhã do dia seguinte, um domingo, eu acordei cedo para ir conhecer e andar pela feira livre do bairro de Nossa Senhora da Saúde, na Cidade Alta. Tempo depois, eu comecei a deixar Piranhas junto com Augusto César e o casal Carvalho e Vânia, amigos dele.
Quase dois anos depois, precisamente no dia 20 de novembro de 2019, eu voltei a Piranhas; e, desta vez, me hospedei na aconchegante pousada O Canto, onde fui recepcionado pelo Thainan Yuri.
Andando pela cidade, revendo cantos e recantos, ruas e passagens, eu observei que a parte antiga da urbe estava aparentemente bem cuidada. Eu notei também que tanto na parte baixa como na alta havia novos hotéis e pousadas. O que eu também não pude deixar de notar foi que ali, na Cidade Baixa, ainda imperavam deficiências como ausência de caixa eletrônico 24 horas e quitandas e a dependência que os moradores têm dos táxis e mototáxis para se deslocarem para a Cidade Alta. Trocando figurinhas com algumas pessoas envolvidas com o turismo na cidade, todas elas concordaram comigo quanto ao fato de que a cidade é cara para os turistas e viajantes ao mesmo tempo em que a infraestrutura do lugar ainda não seja das melhores.
Como chovera muito para as bandas de Minas Gerais, a vazão do Rio São Francisco aumentara. No dia seguinte ao da minha chegada à cidade, lá fui eu tomar banho em suas águas frias e revigorantes. Foi a repetição de mais um instante de felicidade. Nadei, vi peixinhos entre as rochas e vislumbrei outra dimensão do prazer. Muito bom poder estar de novo ali são, inteiro e de bem com a vida.
Ainda naquele dia o turismólogo Lucas Silveira me proporcionou um rolê de moto, me levando a um dos mirantes da cidade.
Rever Piranhas, estar em Piranhas e vivenciar novamente Piranhas fixou em mim ainda mais um sentimento e um entendimento de que a salvaguarda e a preservação do patrimônio histórico edificado é um exercício de todo dia.