28 de maio de 2016

Estupro é barbárie

Por Clênio Sierra Alcântara






Foto: internet      Arraigado na sociedade brasileira o pensamento machista e misógino tem destinado às mulheres toda sorte de males praticados por homens que pararam em algum estágio do processo civilizatório. Atribuir às próprias mulheres responsabilidade pelos casos de estupro de que são vítimas é o mesmo que dizer que elas são culpadas por simplesmente existirem



Somente no ano passado o serviço nacional que recebe denúncias de casos de estupro, o Ligue 180, registrou 2.731 ocorrências. É claro que isso não é um número que corresponda à realidade, porque, movidas por medo dos seus agressores e principalmente vergonha, mulheres – e homens também – que sofrem esse tipo de violência não fazem qualquer registro policial – isso, evidentemente, quando existem delegacias onde as vítimas moram -; é a mesma estratégia de sobrevivência de mulheres que comem o pão que o diabo amassou nas mãos de seus maridos e companheiros e não os denunciam e muitas vezes acabam sendo assassinadas por eles.

Exatamente um ano depois daquele episódio medonho e covarde ocorrido no estado do Piauí, eis que outra vez tomamos conhecimento de um novo e chocante caso de estupro coletivo, desta feita havido no Rio de Janeiro, o lugar onde a criminalidade desde há muito tripudia e “tira onda”, como se diz na gíria, contra o império da lei. Pelo que foi apurado até o momento, uma adolescente de apenas dezesseis anos estava em um encontro íntimo com um rapaz, seu namorado, no último dia 21 de maio, e, depois, segundo a vítima falou em depoimento, ela só se recorda que acordou, dopada, noutro lugar em meio a um grupo de homens fortemente armados. Os mais de trinta delinquentes que a estupraram ainda tiveram a desfaçatez e o atrevimento de postar em vídeo na internet a ação de bestialidade coletiva por eles praticada, certamente confiantes na impunidade e/ou nas penas brandas que lhes seriam imputadas se eles fossem pegos pela polícia.

Tivéssemos instrumentos legais que realmente punissem com severidade crimes hediondos, em geral, e os casos de violência sexual, em particular, talvez, os números de vítimas dessas ações não fossem tão elevados. Castrar indivíduos que cometem tais abusos é agir com desumanidade para com eles? Não, meu caro leitor, porque, a meu ver, desumano é o sujeito que pratica esse tipo de violência sem se importar com o destroçamento que provoca na vida da vítima e nas dos seus entes queridos, porque junto com a vergonha e o medo, vem a permanência do trauma pela brutalidade sofrida, a insegurança, a incompreensão por tudo o que aconteceu e até mesmo o indevido sentimento de culpa.

Por mais que o poder público alardeie aqui e ali que existe todo um aparato montado pelo Estado com vistas a proteger as nossas mulheres, o fato incontestável é que elas vivem sob ameaças constantes e estão seriamente desprotegidas, como comprovam os dados que são reiteradamente divulgados pela imprensa. Às mulheres a nossa sociedade ainda destina um tratamento marcado substancialmente pelo entendimento de que elas são seres inferiores em todos os sentidos aos homens e, por isso, tudo o que eles fizerem contra elas está plenamente justificado até mesmo pela própria natureza – e não só por certos livros que se têm por sagrados. Na terra da “Mulata Globeleza” ser mulher é fundamentalmente lutar uma luta desigual contra as bases de um mundo masculino que constantemente as coisifica, maltrata, inferioriza e as classifica, quando muito, como cidadãos de segunda ou terceira classe.

Enquanto grupos se posicionam para propor que sejam discutidas nas escolas, por exemplo, questões de gênero e de respeito à diversidade de comportamento sexual, logo aparecem os defensores daquilo que eles próprios chamam de “família tradicional”, que nada mais é do que a consolidação e permanência em nossa sociedade da prevalência do espírito patriarcal e machista, no qual as mulheres desempenham unicamente o papel de completa e total submissão aos ditames dos homens da casa. O machismo não admite qualquer mudança nesse status quo para que permaneçam intactos os alicerces dessa falocracia e assim eles possam continuar na posição de mando.

Pensarmos que o processo civilizatório que nos fez chegar até o estágio científico, tecnológico e cultural ao qual chegamos não conseguiu domar por completo os nossos instintos mais primitivos é, de certa forma, admitirmos que não temos pleno domínio de nossa consciência e nem dos nossos atos e que somos mesmo apenas animais com algumas habilidades específicas que nos diferenciam dos demais. É como se no íntimo nosso mais profundo, a essência brutal da barbárie permanecesse o tempo todo ali, à espera para vir à tona e provocar toda a sorte de males.

Sexismo, feminicídio, misoginia são nomes diferentes para ações e/ou comportamentos que ao fim e ao cabo têm o mesmo propósito: manter as mulheres sob cabrestos curtos e sufocantes para que elas não ousem sequer gritar, quanto mais espernear.

Num tempo em que “empoderamento” é a palavra de ordem entre as mulheres, o caso de estupro coletivo ocorrido na semana passada no Rio de Janeiro faz ver que os homens estamos cruelmente empenhados em mantê-las sob a pressão infame de nossas vontades, porque pensamos que poder, mesmo, só nós é que temos.



20 de maio de 2016

O elevador e a buzina: a lógica da destruição do patrimônio edificado do Recife

Por Clênio Sierra de Alcântara

  

Fotos: do autor       Sobrado localizado na Rua da Glória que desabou parcialmente. A falta de manutenção e acompanhamento do estado em que se encontram muitas das edificações que compõem o acervo arquitetônico e histórico do Recife têm provocado situações como essa. Ou o Recife cuida efetivamente bem do seu patrimônio ou no espaço de pouco tempo perderá mais e mais tudo isso que faz dele um dos cenários urbanos mais pitorescos do país


Num ritmo e dinamismo espantosos a cidade do Recife vem dia após dia pondo abaixo e/ou deixando desabar por conta própria o rico acervo do seu patrimônio histórico edificado. Para qualquer direção que se olhe na sua área de ocupação urbana mais antiga – os bairros do Recife Antigo, Santo Antônio, São José e Boa Vista -, não faltam evidências dessa ação destruidora implacável.


Pautada por uma lógica muito clara e precisa, a dinâmica dessa ofensiva contra o que de mais pitoresco ainda resta do passado da capital pernambucana atende, a meu ver, a dois segmentos econômicos poderosíssimos: o automobilístico e o imobiliário. A submissão da cidade a tais setores é de tamanha grandeza que a ordem desfiguradora se processa ou, dito de outro modo, vem se processando, sem que, no geral, o grosso da população perceba que não é apenas um empreendimento do porte do que se projetou para o terreno contíguo ao Cais José Estelita que desfigura e subtrai as belezas arquitetônicas e paisagísticas do Recife. Os aspectos daninhos da destruição e reocupação dos espaços com novas construções – em alguns casos a destruição, pelo menos num primeiro momento, se dá justamente para se que se obtenha um terreno vazio que, enquanto espera a oferta tentadora de uma grande construtora que projetará nele apartamentos de alto padrão, funcione como um rentável estacionamento para veículos automotivos – também são verificados em ações pontuais aparentemente sem muita visibilidade, que vão minando e fragilizando o todo, causando perdas irreparáveis no conjunto de edificações que precisam ser preservadas para que tenhamos um acervo da memória arquitetônica e urbanística da cidade.







É absolutamente espantosa e lastimável a completa e total submissão das grandes cidades brasileiras, em geral, e do Recife, em particular, ao que muitos denominam de “demanda por espaço” exigido pelos automóveis. Em vez de ser um abrigo para o ser humano, para as pessoas, como historicamente sempre foram, as cidades vêm sendo preparadas para dar guarida e acomodar o maior número de carros e motos que for possível. As políticas públicas têm direcionado discussões a respeito da mobilidade urbana sem, no entanto, promover, de fato, a melhoria do transporte público de passageiros. Por incrível que pareça, os prefeitos brasileiros acreditam que obtêm mais apoio dos eleitores – e deve ser verdade isso – quando eles põem em execução projetos de alargamento e abertura de ruas e avenidas, de modo a fazer o trânsito fluir, não importando se por essas vias circulam os ônibus nossos de cada dia ou se majoritariamente carros, os quais, muitas vezes, conduzem apenas os motoristas.










Na manhã da última terça-feira eu fui verificar in loco os recentes estragos que a política do descaso para com a preservação do patrimônio provocou em duas edificações no bairro da Boa Vista, área central do Recife. No domingo dia 8 de maio, as fortes chuvas que caíram na capital provocaram o desabamento quase que completo de um outrora admirável sobrado localizado na Rua da Glória, causando a interdição de outros dois imóveis que ficam ao lado dele. Perto dali, um enorme estacionamento é o destaque principal nos começos da Rua Velha, onde outros prédios se encontram bastante deteriorados, esperando outro mau tempo vir para pô-los abaixo.









Minha parada seguinte foi – vejam que ironia – na Rua do Progresso, onde, também na semana passada, mas só que na quarta-feira, o telhado de um sobrado desabou à noite. E sabem qual é o empreendimento que existe junto dele? Um estacionamento. Mais adiante, na esquina dessa mesma Rua do Progresso com a Rua da Soledade, na qual, alguns anos atrás, existiu um casarão que figurava em cartões-postais – nele residiram integrantes da família Nery da Fonseca -, instalou-se igualmente um muito amplo estacionamento para carros. Já na Rua do Riachuelo, o saudoso Hotel Lido, do qual fui hóspede, foi demolido para dar lugar adivinhem ao quê? A outro estacionamento, ora.



Sobrado que ainda resiste de pé na Rua do Progresso e que perdeu o seu telhado na semana passada. Ao seu lado um estacionamento parece estar na torcida de que ele desabe para que o espaço destinado aos veículos seja ampliado














Carros, carros e mais carros. Novas edificações sendo erguidas e outras ganhando as pranchetas de engenheiros e arquitetos das grandes construtoras que pouco a pouco estão redesenhando e reocupando a cidade. Enquanto isso, enquanto se promove essa verdadeira dilapidação do acervo arquitetônico e paisagístico do Recife, ruínas vão se acumulando à vista de todos e sob a indiferença e/ou cumplicidade do poder público. Qualquer dia desses o imponente sobrado localizado na Rua Barão de São Borja, que está há meses sem o telhado, vai certamente desaparecer da paisagem recifense e vai ficar por isso mesmo. Edificações antigas bastante deterioradas podem ser encontradas também nas ruas da Aurora, Dr. José Mariano, 1º de Março, entre outras.


Nos últimos vinte anos, em que pese o fato de que a cidade estar seriamente degradada – calçadas esburacadas e sem acessibilidade; ocupação desordenada do espaço; um rio majestoso como o Capibaribe sem receber nenhum cuidado; a população dos morros ainda sofrendo sob o impacto das chuvas; lixo por toda a parte -,   as grandes obras de infraestrutura que marcaram as administrações municipais do Recife foram destacadamente as vinculadas aos problemas do tráfego, ou seja, ao fluxo de veículos, como  a  abertura da Av. Maurício de Nassau (paralela da Av. Caxangá), a construção dos túneis Chico Science e da Abolição, a requalificação da Av. Conde da Boa Vista, o alargamento de parte da Av. Norte e a execução da Via Mangue, inaugurada recentemente. Alguém pode dizer que isso buscou a promoção da mobilidade urbana. Sim, mas para quem? Para que público? Fundamentalmente foi para atender aos proprietários de carros, porque não houve melhoria significativa para quem faz uso de ônibus. E sabem por quê? Porque parte das autoridades responsáveis por gerir o sistema de transporte público de passageiros, ao que parece, continua acreditando que melhorar e qualificar esse setor é simplesmente fazer com que os coletivos corram mais velozmente pelas vias, esquecendo que esse é apenas um dos itens de um rol que inclui, por exemplo, conforto e não superlotação dos ônibus, diminuição do intervalo entre as viagens e ampliação do número de linhas para atender a mais localidades.

Na noite da quarta-feira passada, atendendo a um convite do meu amigo Delano Moraes, fui até a sede da GTI Consultoria em Gestão, no bairro do Espinheiro, tomar parte na segunda edição da série de debates “O Recife que precisamos”, promovido pelo Movimento Observatório do Recife em parceria com a revista Algomais. O tema do encontro foi “Os desafios da humanização do trânsito no Recife” – que veio bem a calhar tendo em vista que esse é, sem dúvida alguma, um dos pontos nevrálgicos da complexa estrutura da capital de Pernambuco, além do fato de estarmos em pleno Maio Amarelo, um mês dedicado a pensarmos a respeito do gravíssimo problema da violência no trânsito – e teve como palestrante Tarciana Ferreira, presidente da Companhia de Trânsito e Transporte Urbano (CTTU), que, de maneira clara e precisa, expôs não apenas dados, como mostrou ações que a atual administração municipal do Recife vem empreendendo com o fito de promover a melhoria da circulação de veículos em todos os espaços da cidade, como a ampliação da Faixa Azul – delimitação nas vias para que nelas só circulem ônibus e táxis -, a implantação de ciclovias e ciclofaixas e a instalação de sinalização. Alguém lembrou, no debate que se seguiu à explanação de Tarciana Ferreira, que a Municipalidade deve buscar promover sempre o desestímulo ao uso do veículo particular e punir com mais rigor os abusos cometidos por motoristas que se sentem donos do pedaço e, entre outras irregularidades, se põem a estacionar os seus possantes em locais proibidos; e que a cidade deve ser o tempo todo pensada para o bem coletivo e de forma racional e sustentável. Muito oportunamente Francisco Cunha trouxe à baila uma reflexão de Enrique Peñalosa, ex-prefeito de Bogotá, que em certa ocasião fez o seguinte comentário: “Uma boa cidade não é aquela em que até os pobres andam de carro, mas aquela em que até os ricos utilizam transporte coletivo”.




Tarciana Ferreira quando pronunciava sua palestra: todos e cada um de nós devemos tomar conta do Recife e livrá-lo das forças que querem redesenhá-lo e reocupá-lo a todo custo




Foto: Observatório do Recife


Sob o acúmulo de ruínas o Recife do futuro segue sendo projetado por arquitetos, engenheiros e urbanistas que continuam enxergando o patrimônio edificado da cidade como um entrave para a construção de prédios suntuosos e a abertura de novas vias largas e bem iluminadas, às margens das quais, em painéis luminosos e de alta definição, imagens de um Recife do passado serão projetadas apenas – e talvez – como um tempo superado. Nós outros, que acreditamos num outro sonho e projeto para  o Recife, certamente vamos permanecer empenhados para que aquele ideal de futuro não se concretize e possamos, de fato, promover e alcançar o bem-estar não somente das pessoas que nele habitam, mas também o bem-estar da própria cidade.



14 de maio de 2016

Agora os lobos são lobos mesmo

Por Clênio Sierra de Alcântara



Novamente a democracia brasileira se vê vilipendiada pela horda peemedebista, que chega à presidência da República por via indireta



Quando teve início o processo visando ao afastamento da presidente Dilma Rousseff, acredito que até no pensamento do mais ardoroso militante petista martelava a incômoda e triste certeza de que ela seria mesmo apeada do poder. E por quê? Porque não era somente o suposto crime de responsabilidade fiscal que lhe era imputado – e que ela e os seus correligionários negavam veementemente, desqualificando a acusação e classificando-a de “golpe”  -; acrescentou-se a ele o conjunto de malfeitorias executado por outros membros de seu partido e ela acabou tendo de pagar o pato. Ao processo de cassação do mandato da presidente da República inegavelmente foram atrelados todas as falcatruas, todas as manobras, todas as roubalheiras e todas as tentativas infames das hostes do Partido dos Trabalhadores que pretendiam, à sua maneira e ao seu modo ideal de democracia,  se manter por tempo indeterminado no poder, porque pensavam eles ser os mais legítimos, os mais capazes e os únicos que realmente pensavam no bem-estar dos brasileiros verdadeiramente mais necessitados. Mas, e aos outros? Ora, excetuando-se os grandes empreiteiros e alguns outros empresários escolhidos para enriquecer enquanto o país empobrecia, foi restando o aumento da inflação e do desemprego e a certeza de que o PT começou bem e acabou sendo mais do mesmo, perdeu-se nas veredas sombrias da corrupção inebriado pela gana de querer se manter no poder a todo custo.

Houve quem desde o início enxergasse algo de muito ruim no horizonte do projeto petista de governo. O simples fato de o senhor Luiz Inácio Lula da Silva precisar refazer sua própria imagem e alterar seu discurso para finalmente alcançar a presidência do país por si só diz muito de como o PT principiou a abrir mão de seus fundamentos para ganhar um pleito tão almejado. Lula foi eleito e toda uma nação de desvalidos e de intelectuais crentes de que pobre é tudo bom e honesto e que toda elite financeira e capitalista é desumana e corrupta, sentiu-se festivamente satisfeita e representada, porque um homem verdadeiramente saído do seio do povo, um homem humilde que enfrentara agruras indizíveis, um cidadão que conhecia realmente de perto o que é a pobreza extrema chegara ao Palácio da Alvorada iluminado pelo severo e benfazejo e auspicioso sol do cerrado. Lula era o homem certo. Lula acabaria com as multidões de esfomeados. Lula ergueria casas para os sem-tetos. Lula melhoraria a educação. Lula fortaleceria as estatais. Lula criaria uma TV que só exibiria a verdade. Lula poria fim ao imposto sindical. Lula, enfim, promoveria uma grande transformação social no Brasil, que passaria, então, a ser um exemplo para o resto do mundo.

Acontece que a realidade é dona de suas vontades e nem sempre está disposta a seguir um script. Enquanto promovia sua pequena revolução social distribuindo cartões do Bolsa Família a mancheia, lançava projetos pomposos e vistosos como Fome Zero, Minha casa, minha vida e Programa de Aceleração do Crescimento e incentivava o consumo desenfreado de tudo o que fosse possível com o crédito facilitado, os petistas foram silenciosamente agindo na escuridão para ao mesmo tempo em que se locupletavam, garantissem a permanência no poder. Apesar do escândalo do mensalão, que começou a mostrar para que, de fato, o PT lutara tanto para eleger Lula e comandar o país, as benesses e as benfeitorias sociais já haviam conquistado uma legião imensa, uma massa de manobra que não apenas conseguiu reeleger Lula como o levou a fazê-la acreditar que a senhora Dilma Rousseff não só continuaria mantendo os benefícios sociais como os ampliaria. E Dilma foi eleita. E reeleita, mesmo sem ter méritos.

Aos que diziam que ela não passava de um fantoche ou de um poste apagado, Lula rebatia apresentando Dilma Rousseff como uma administradora eficiente, durona, intolerante com os corruptos e preguiçosos, cobradora de bons resultados, uma dinâmica e brilhante gerentona. Mas a realidade, além de ter vontade própria, não se põe a esconder os fatos. Não demorou para que o engodo Dilma Rousseff se mostrasse como a encarnação em pessoa da ineficiência: ela não conseguiu afastar de perto de si aproveitadores de todo tipo; não teve discernimento para perceber que a economia do país caminhava para o fundo do poço; não soube ou não quis promover as reformas de que o Brasil precisava e ainda precisa; e viu a sua imagem ser dia a dia desconstruída não somente por um coro misógino, bem como pelas ações criminosas de membros do seu partido e, principalmente, pela sua mais que evidente incapacidade de tomar as rédeas de seu governo que acabou, com o perdão do trocadilho, desgovernado, manchado e corroído ao extremo por um caso de corrupção gigantesco ainda em investigação.

Na madrugada da quinta-feira 12 de maio, por 55 votos a favor e 22 contra, o Senado aprovou o afastamento de Dilma Rousseff da presidência da República, um desfecho deveras melancólico para aquela que foi a primeira mulher a chegar à chefia do mais elevado cargo do país. E como se o afastamento não fosse por si só algo a lamentar em termos de representatividade feminina e de simbolismo mesmo, ele deu ensejo para que outra vez a horda do PMDB chegasse à presidência da nação por via indireta, corroborando a máxima que diz que o que está ruim pode ficar pior.


Como é triste tudo isso. Triste, lamentável, vergonhoso e desanimador. O PT conseguiu de uma só tacada acabar com os sonhos de milhões de militantes e de outros tantos que a ele se afeiçoou ao perceber, lá no início, que a coisa apontava para um futuro promissor, e nos deixar sob o comando de um partido que tem entre os seus membros, autoridades que não valem o que o gato enterra porque, não é de hoje, vivem metidos em atividades criminosas. Restou-nos pelo menos a desilusão, porque agora sabemos que nessa imensa seara os lobos são lobos mesmo, não estão escondidos sob peles de cordeiros.

6 de maio de 2016

Chega de autopatrulhamento!

Por Clênio Sierra de Alcântara







Libertos das amarras das convenções e imposições sociais podemos dar à nossa vida a direção que nos for verdadeiramente satisfatória e favorável


Continuo mantendo o apoio firme àquela disposição de se dizer o que se pensa ou o que se quer em determinado momento ou circunstância. Dizer é um ato de coragem. Falar é um ato de coragem. E eu admiro quem se põe a enfrentar velhas concepções de moralidade, falsos pudores, preconceitos de todo o tipo, imposições de crenças e gostos e tudo o mais que for incompatível com o eu de cada um.

Viver é indiscutivelmente um embate diário contra muitas coisas. Contra pessoas que praticam maldades que podem nos ceifar a vida. Contra os atropelos do trânsito caótico. Contra as doenças. Contra a desumanidade de muitos. Contra a força bruta das instituições que querem nos padronizar. E contra até mesmo os pensamentos de autodestruição que nos acometem. A postura afirmativa não pode ser tomada – como frequentemente é – como uma ação impensada. É claro que falar e escrever requer um filtro de nós mesmos, porque o que é dito e escrito pode trazer inúmeras consequências positivas ou negativas. Está claro que nesse exercício de afirmação cada um de nós deve ter plena consciência de seus atos. Agora, a meu ver, essa prática reflexiva não deve ser tolhida por uma, digamos, visão distorcida da realidade e nem por um temor generalizado como se estivéssemos a todo momento vigiados por uma outra consciência que não a nossa.

A mim me causa certo pavor simplesmente imaginar que algum pensamento meu ou uma ideia seja reprimida por certa perturbação da minha própria consciência, motivada por um temor injustificado, como se alguém ou algo estivesse a vigiar os meus passos diuturnamente. Quando nos deixamos ser perseguidos pela autocensura e pela autorreprovação, tolhendo nossas ações de maneira que limitemos consideravelmente o raio de alcance daquilo que pretendemos dizer – seja pela escrita, seja pela fala – tendemos não só a diminuir de maneira drástica o encadeamento de nossos pensamentos, como também passamos a considerar que estamos metidos numa prisão que nos amesquinha, desencoraja e embrutece, porque nos aniquila ao ponto de nos enxergarmos como meros autômatos cumpridores de tarefas, que não precisam pensar para existirem. Mas acontece que eu paulofreireanamente me eduquei para a prática da liberdade e da autonomia do pensar e, em virtude disso, não permito que ponham cabrestos em mim.

Procuro não me furtar de assumir e externar minhas convicções e anseios; repeti isso aqui algumas vezes, em outras ocasiões. Mas eu, por outro lado, não faço pregação da obrigatoriedade da fala, da revelação, do esclarecimento e da opinião seja sobre o que for. Não compartilho a ideia de que, mesmo vivendo num tempo em que a superexposição pessoal parece ser uma imposição, uma necessidade social total e não somente de quem acessa a internet e as chamadas redes sociais, tenhamos que nos mostrar de corpo inteiro nos universos real e principalmente virtual, escrevendo ou postando fotos, áudios e vídeos. Por isso, o que tomo como autopatrulhamento é justamente a quase paranoia de quem se julga na obrigação de dizer de si para os outros. Ora, se eu tiver que me sujeitar a uma realidade dessas para única e exclusivamente me sentir pertencente a um grupo, a uma turma ou ao que seja, estejam certos, eu não entrarei. Eu quero fazer se eu tiver vontade, se eu sentir necessidade, se eu me interessar, e não porque fulaninho e fulaninha estão ali fazendo e acontecendo.

Vou continuar seguindo o meu caminho e construindo a minha história de vida, empenhado em preservar a integridade da minha liberdade de ir e vir e fundamentalmente de pensar. Não me vejo na obrigação de dizer de mim, de me explicar, de me filiar, de relacionar os homens e as mulheres que me amaram, de deixar marcados meus itinerários, de mencionar a cor da qual eu mais gosto, de apontar o espaço vazio no meu registro de nascimento, de fazer um rol de minhas fraquezas, de contar meus fracassos, de iluminar minhas alegrias, de revelar a dimensão dos meus desejos e de sublinhar os nomes de todos aqueles que tudo fizeram para que eu deles me desprendesse. Não vou sair da minha posição de contra-ataque porque em meio às maravilhas que estão à nossa volta, se encontra também a obstinada perseverança da maldade, essa senhora que fará com que nos deparemos, até o fim dos nossos dias, com gente ferreamente determinada em não conviver com deficientes físicos, com negros e nem com homossexuais porque para elas só assim o mundo ficará perfeito e todas as pessoas serão felizes.

Não vou sair da minha posição de conta-ataque. Eu também sei ser duro, sei dizer não, sei me calar e sei fazer ouvidos surdos.