23 de agosto de 2011

Mario Sette: entre rupturas e permanências


Por Clênio Sierra de Alcântara

Imagem: Internet


É, a meu ver, algo ingênua a exortação que Antonio Candido faz nas páginas iniciais do seu caudaloso e imprescindível estudo Formação da literatura brasileira, cuja primeira edição apareceu em 1959. Depois de dizer que, comparada “às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca”, e que, ainda assim, “é ela, não outra, que nos exprime”, ele afirma que, “se não a amarmos”, ninguém a “tomará do esquecimento, descaso ou incompreensão”. Concordo que devemos, sim, conhecer a literatura produzida pelos escritores nacionais; mas daí a amá-la, me parece, vai uma distância considerável, uma vez que, gostar ou não, independe do nosso querer.

Certamente alguém já deve ter discorrido sobre essa coisa da apresentação que determinado autor faz ao seu leitor de outros escritores; e sobre como esses relacionamentos desencadeiam elos que por vezes ganham dimensões enormes: a gente lê fulano, lê beltrano... e vai construindo um universo particular de referências e predileções literárias.

Foi investigando a gênese da cidade do Recife que eu encontrei Mario Sette (1886-1950), um escritor cuja produção literária abrange tanto obras de ficção, a exemplo de Senhora de engenho e Seu Candinho da farmácia, como livros didáticos e narrativas por alguns chamadas de crônicas históricas. E devo-lhe dizer, caro leitor, que esse encontro me proporcionou conhecer um Recife que eu prefiro dizer que não é “o Recife” e, sim, um Recife settiano, uma vez que os relatos de Mario Sette não são escritos imparciais – mas quem escreve imparcialmente, ora bolas?! -; pelo contrário, são textos que dizem muito do que ele, amante incondicional dessa cidade, apreendeu do Recife, vivenciou no Recife, conheceu no Recife e se dispôs a eternizar em seus livros.

Escapa-me, por ora, condição para apreciar o caráter literário, o valor da escrita de Mario Sette enquanto obra literária propriamente dita; o que busquei e permaneço buscando em seus textos são as permanências históricas que ele conseguiu registrar em suas andanças pela capital pernambucana em meio às tantas rupturas de ordem urbanística que marcaram o Recife na primeira metade do século XX. Caminhar pelo território recifense acompanhando os passos e/ou as indicações de Mario Sette é enveredar por um mundo que, por mais que seja real é, também, um mundo de fantasia, porque não mais existe. Quem percorre as páginas de Arruar – e mesmo as de Anquinhas e bernardas e Terra pernambucana, ainda que nessas nem tanto – percebe nelas um carregado saudosismo.

É uma pena que Mario Sette seja do conhecimento tão somente de uns poucos iniciados. Como eu disse em linhas atrás, o encontrei quando buscava outra coisa. Além de pouco divulgada – e isso não é de hoje, pois como bem lembrou Anco Márcio Tenório Vieira, no artigo “Quando o sonho e a ‘ciência’ rivalizam”, autores pernambucanos como Sette, Carneiro Vilela e Lucilo Varejão tiveram trabalhos reeditados timidamente e, mesmo assim, por iniciativas governamentais -, a obra settiana sofre certo preconceito mesmo no meio acadêmico, o que talvez, em parte, explique a ausência de Sette nas livrarias. Considerado em geral um escritor “ingênuo”, “conservador” e “datado”, Mario Sette tornou-se um daqueles objetos de figuração em bibliografias de dissertações e teses acadêmicas muito mais como depositário de informações, como eu disse, de cunho histórico, do que de um autor de literatura ficcional.

A título de curiosidade para os tantos leitores que tomarão conhecimento da existência desse autor através deste artigo, foi inspirado numa personagem de Senhora de engenho, que Lourenço da Fonseca Barbosa, o Capiba, compôs a singela e bela canção "Maria Bethânia", cujos versos iniciais dizem assim: "Maria Bethânia tu és para mim a senhora do engenho/ Em sonhos te vejo, Maria Bethânia és tudo o que eu tenho...". E, para quem não sabe, foi por causa dessa música que Caetano Veloso sugeriu à sua mãe, Dona Canô, que batizasse sua irmã de Maria Bethânia.

Fosse somente por isso, Mario Sette já valeria a pena ser lido. Mas esse escritor tem muito mais a oferecer a quem procurá-lo. Ensina-nos Antonio Candido, no ensaio "O escritor e o público", que integra o livro Literatura e sociedade, que a literatura é um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e que ela só vive "na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a". Mario Sette revela-nos pormenores do Recife e do seu tempo como quem convida alguém para um gostoso passeio.


   (Artigo publicado também in: O Monitor [Garanhuns], agosto de 2011, Opinião, p. 02).                                  

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