Eu já era um leitor onívoro antes de ter começado a ler as obras de Gilberto Freyre. Mas foi só a partir do momento em que conheci os textos freyrianos que eu dei conta da necessidade de manter essa postura, porque, quem lê Gilberto, logo percebe nele uma profusão de referências alinhavando as suas ideias. Dito isso, causou-me espanto ter sido repreendido, dias atrás, por um dos mais notáveis gilbertólogos, o meu queridíssimo amigo e guia intelectual Edson Nery da Fonseca, nos seguintes termos: "Você já leu as obras completas de William Shakespeare?". "Não", eu lhe respondi. "Você já leu as obras completas de Dostoievski?". "Não", eu lhe respondi de novo. Ao que ele completou: "Então, por que você está lendo Marina Colasanti?!". E eu de pronto rebati: "Ora, Edson, porque eu tenho necessidade de conhecimento de mundo. E porque nem tudo os clássicos me dizem, uma vez que nem sempre eu os compreendo inteiramente. Além do que, não são só eles que me interessam".
Desde que a presença dos livros em minha vida se tornou grandemente imprescindível, adquiri-los passou também a ser um ritual que é qualquer coisa de muito prazeroso. Frequentador assíduo de sebos - reais e virtuais -, estou sempre fazendo aquisições: seja algum da minha extensa lista de desejos, seja algum outro que eu passo imediatamente a querer adquirir, ainda que seja a primeira vez que eu o tenha tomado na vista, porque, assim como o José Mindlin - e eu creio que assim sejam todos os bibliófilos -, sinto um prazer enorme em desejar a aquisição de um livro que de súbito me desperta grande interesse. É a tal da surpresa do encontro. É o tal do achado inesperado. E o livro da Marina Colasanti foi adquirido assim: numa das idas aos sebos das calçadas da Av. Guararapes, do Recife, aos domingos, encontrei o exemplar cujo título logo me ganhou. E, apesar de ele estar um tanto quanto surrado e até ter páginas furadas por traças, adquiri-o sem pestanejar, porque quem adora os livros sabe o quanto que são estimados exemplares assim, caindo aos pedaços, de uma obra na qual focamos nosso interesse, como se ela fosse a coisa mais importante do mundo - o que recai na velha distinção entre preço e valor que atribuímos ao que quer que seja.
O livro em questão da Marina Colasanti tem como título Mulher daqui pra frente (2ª ed. Rio de Janeiro, Editorial Nórdica, 1981); e eu o li há poucos dias. Quem vem acompanhando o que eu tenho escrito ao longo de todos esses meses, já se deu conta de que, vez por outra, eu trato de aspectos da condição social da mulher.
Venho de uma família cujas mulheres têm um histórico de abandono por parte de seus maridos; e até de um assassinato - uma de minhas tias foi morta a facadas pelo ex-companheiro, porque ela não queria mais manter o relacionamento. De modo que - eu creio que seja esse o principal motivo - existe em mim uma empatia pela causa da mulher enquanto sujeito que está o tempo todo lutando e resistindo à misoginia que encontra-se entranhada em todas as esferas das sociedades num contexto mundial. Causa-me desconforto a ideia da mulher como ser inferiorizado pelas artimanhas e pelos discursos masculinos. O discurso de inferiorização da mulher vai contra o meu ideal de civilização e contra os meus princípios enquanto homem instruído.
Há quase treze anos eu vivenciei uma aventura sexual com uma garota que eu vi pela primeira vez na anoite em que nos encontramos. Não senti por ela nehum sentimento de paixão ou qualquer coisa parecida. Eu estava ainda começando a descobrir verdadeiramente - no sentido da independência financeira, da liberdade de voar do meu ninho e até mesmo dos meandros da sexualidade propriamente dita - o meu lugar no mundo. Passamos aquela noite num motel. Sexo seguro, com uso de preservativos. Ocorreu que, no dia seguinte, a fulana insistiu ferreamente para que transássemos sem camisinha. Eu disse que não inúmeras vezes, até que, de maneira inconsequente e irresponsável, cedi ao desejo dela e transamos pele a pele; e, embora , eu tenha feito o coito interrompido, sabia que percorrera um terreno perigoso. Pois bem, saímos do motel e cada um foi para o seu lado. Dali a um mês a mulher ligou para o meu local de trabalho para dizer que estava grávida. Fiquei completamente desnorteado: ter um filho - e ainda mais com uma "desconhecida" - era uma situação no mínimo embaraçosa. Marcamos aquele que seria o nosso segundo e último encontro até hoje. Sem meias palavras perguntei-lhe se estava disposta a ter um filho de um homem que mal conhecia e com quem não mantinha qualquer ligação afetiva (?); e se ela armara aquela situação com vistas a uma compensação financeira. Ela veio com uma ideia absurda para cima de mim, dizendo que, a partir daquela situação, nós poderíamos "nos acertar". Mas como?, eu me perguntei. Já tomado por um sentimento de raiva devido a minha burrice e ao que julguei como sendo uma armação da fulana, primeiro eu lhe propus um aborto; e, como ela não cedia, eu lhe disse o seguinte: "Você vai então esperar o nascimento da criança e acionar a Justiça, para que eu faça um exame de DNA e, caso eu seja realmente o pai, pague a pensão devida. Não espere que isso vá criar qualquer vínculo afetivo entre mim e você, porque eu não gosto de você. Eu não quero ver essa criança. Você foi muito sacana comigo. E eu sei que sou culpado e responsável por essa situação. Você sabe que eu não conheço o meu pai e vai querer proporcionar a mesma realidade para o seu filho?". E assim foi que, com minha imaturidade, arrogância e estupidez, eu tratei aquela mulher; tratei-a, imagino, do mesmo modo que minha Mãe parece ter sido tratada pelo meu pai. E assim foi que eu repeti a mesma história de abandono e de desamparo que minha Mãe vivenciara. Aquela mulher ainda fez algumas tentativas, via telefone, de me convencer do contrário, mas eu não cedi aos apelos dela, mesmo sabendo que, a qualquer dia, eu poderia vir a ser acionado pela Justiça.
Meses atrás eu tive mais uma discussão muito séria com minha Mãe; e ficamos semanas incomunicáveis depois desse bate-boca. Por mais que eu diga que já acertei as contas com o meu passado, eu me vejo obrigado a reconhecer que muito da minha cascagrossice, da minha intolerância para com certos comportamentos, da minha grosseria, da minha brutalidade e do meu temperamento explosivo é consequência de certas portas que foram abertas e/ou trancafiadas no passado. Mestre Gilberto Freyre dizia que o passado não passa, que ele continua. Também creio nisso. Eu disse coisas muito duras à minha Mãe. E não foi por eu estar de cabeça quente simplesmente. Eu calculei cada palavra-pancada que falei, com uma vilania espantosa, tudo dito para machucá-la. Minha Mãe só quer que eu reconheça e compreenda o seu lado, dizendo que os seus erros ficaram no passado. Não é bem assim. Não é tão simples como ela imagina. Por outro lado, ela não busca me compreender, não me aceita; e diz até que eu a decepcionei completamente, eu que, desde que me entendo por gente, não fiz outra coisa além de procurar protegê-la e ampará-la; e não só a ela, mas também ao seu outro filho, que ela igualmente criou sem ter o pai por perto. Minha Mãe repetiu erros. Às vezes eu a condeno por isso; às vezes eu a relevo, porque sei o quanto que os homens somos as criaturas mais egoístas que existem.
No seu Mulher daqui pra frente, Marina Colasanti aborda questões femininas que estavam na ordem do dia na época do lançamento do livro, e que, pode-se dizer, passados exatos trinta anos, permanecem atualíssimas.
Logo no primeiro artigo - e vale dizer aqui que alguns dos textos que compõem o livro foram originalmente publicados pela revista Nova -, intitulado "Chega essa culpa pra lá", Marina buscava animar suas leitoras mostrando, aqui e ali, que as mulheres estavam de alguma maneira resistindo à tirania de uma sociedade na qual a maioria dos homens "diz não a nossos desejos de realização, porque a realização de uma mulher está no lar" (p. 17). Em "Amor, infinito enquanto dure", ela trata de forma muito realista daquela ideia fantasiosa de que o casamento proporcionará um "e foram felizes para sempre". Não, o que a autora propõe é que "Não é preciso amar um só por toda a vida", embora reconhecendo que, para muitas, ao medo da perda, "soma-se o medo de ter que recomeçar" (p. 25).
Um dos escritos mais contundentes do livro é o artigo "Mulheres assassinadas". Nele, a autora transcreve pequenos depoimentos de assassinos - como o do sujeito que matou a esposa com seis tiros de revólver porque "Ela queria liberdade" (p. 62) -; e, ao transcrevê-los, vai cosendo o tecido da rede social que aprisiona as mulheres a ponto de querer reduzi-las a uma coisa, como que negando a elas a sua humanidade.
Há muita confiança permeando esse livro da Marina Colasanti de que, em algum momento, a situação da mulher vai melhorar. À parte outras qualidades é, talvez, essa a que mais se destaca ao longo de suas páginas. Se não mostra soluções imediatas para as grandes demandas femininas, como alguns podem argumentar, Marina diz às suas leitoras - e aos seus leitores! - que, ao menos para algumas dessas necessidades, as possibilidades de mudança existem e devem a todo tempo ser buscadas. Mulher daqui pra frente é um livro revelador, pungente, instrutivo e instigante.
Meses atrás eu tive mais uma discussão muito séria com minha Mãe; e ficamos semanas incomunicáveis depois desse bate-boca. Por mais que eu diga que já acertei as contas com o meu passado, eu me vejo obrigado a reconhecer que muito da minha cascagrossice, da minha intolerância para com certos comportamentos, da minha grosseria, da minha brutalidade e do meu temperamento explosivo é consequência de certas portas que foram abertas e/ou trancafiadas no passado. Mestre Gilberto Freyre dizia que o passado não passa, que ele continua. Também creio nisso. Eu disse coisas muito duras à minha Mãe. E não foi por eu estar de cabeça quente simplesmente. Eu calculei cada palavra-pancada que falei, com uma vilania espantosa, tudo dito para machucá-la. Minha Mãe só quer que eu reconheça e compreenda o seu lado, dizendo que os seus erros ficaram no passado. Não é bem assim. Não é tão simples como ela imagina. Por outro lado, ela não busca me compreender, não me aceita; e diz até que eu a decepcionei completamente, eu que, desde que me entendo por gente, não fiz outra coisa além de procurar protegê-la e ampará-la; e não só a ela, mas também ao seu outro filho, que ela igualmente criou sem ter o pai por perto. Minha Mãe repetiu erros. Às vezes eu a condeno por isso; às vezes eu a relevo, porque sei o quanto que os homens somos as criaturas mais egoístas que existem.
No seu Mulher daqui pra frente, Marina Colasanti aborda questões femininas que estavam na ordem do dia na época do lançamento do livro, e que, pode-se dizer, passados exatos trinta anos, permanecem atualíssimas.
Logo no primeiro artigo - e vale dizer aqui que alguns dos textos que compõem o livro foram originalmente publicados pela revista Nova -, intitulado "Chega essa culpa pra lá", Marina buscava animar suas leitoras mostrando, aqui e ali, que as mulheres estavam de alguma maneira resistindo à tirania de uma sociedade na qual a maioria dos homens "diz não a nossos desejos de realização, porque a realização de uma mulher está no lar" (p. 17). Em "Amor, infinito enquanto dure", ela trata de forma muito realista daquela ideia fantasiosa de que o casamento proporcionará um "e foram felizes para sempre". Não, o que a autora propõe é que "Não é preciso amar um só por toda a vida", embora reconhecendo que, para muitas, ao medo da perda, "soma-se o medo de ter que recomeçar" (p. 25).
Um dos escritos mais contundentes do livro é o artigo "Mulheres assassinadas". Nele, a autora transcreve pequenos depoimentos de assassinos - como o do sujeito que matou a esposa com seis tiros de revólver porque "Ela queria liberdade" (p. 62) -; e, ao transcrevê-los, vai cosendo o tecido da rede social que aprisiona as mulheres a ponto de querer reduzi-las a uma coisa, como que negando a elas a sua humanidade.
Há muita confiança permeando esse livro da Marina Colasanti de que, em algum momento, a situação da mulher vai melhorar. À parte outras qualidades é, talvez, essa a que mais se destaca ao longo de suas páginas. Se não mostra soluções imediatas para as grandes demandas femininas, como alguns podem argumentar, Marina diz às suas leitoras - e aos seus leitores! - que, ao menos para algumas dessas necessidades, as possibilidades de mudança existem e devem a todo tempo ser buscadas. Mulher daqui pra frente é um livro revelador, pungente, instrutivo e instigante.
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