31 de dezembro de 2012

Augusto dos Anjos e a permanência arrebanhadora do Eu

Por Clênio Sierra de Alcântara


A simbiose das coisas me equilibra

Em minha ignota mônada, ampla, vibra

A alma dos movimentos rotatórios...

E é de mim que decorrem, simultâneas,

A saúde das forças subterrâneas

E a morbidez dos seres ilusórios!

                                                    Monólogo de uma sombra


 
Para Eurípedes Luna, meu saudoso professor, que me apresentou à poesia de Augusto
                                                                                          

 Augusto dos Anjos é uma das glórias da Paraíba; e poeta ímpar dentro do panorama das letras nacionais
                    


O primeiro grande acontecimento literário de minha vida se deu quando eu percorri as páginas de O cortiço, de Aluísio Azevedo, em 1991. Em meio à multidão de personagens eu dei de cara com Bertoleza; e eu jamais poderia imaginar que, ao ler a página final desse romance, Bertoleza iria apoiar as suas mãos em meu ombro e me acompanhar ininterruptamente desde então. Agora, que estou escrevendo isso, eu me encontro em prantos, porque estou reconstruindo aquele instante de trágico assombro e reafirmando a certeza de que Bertoleza é uma morta-viva que eu sempre hei de carregar.

Em 1992, há exatos vinte anos, durante uma aula do professor Eurípedes Luna, na mesma Escola Polivalente de Abreu e Lima, eu fui apresentado a um poeta que me tocou profundamente: Augusto dos Anjos. Era noite. E o professor Eurípedes declamou “Psicologia de um vencido” como se aqueles versos fossem o fundamento de sua vida – e talvez o fossem. Nunca vou esquecer daquela ocasião. E nos dias que se seguiram àquela aula eu tratei de memorizar o poema como modo de tatuá-lo na mente. E assim foi que Augusto dos Anjos se tornou o meu primeiro grande acontecimento poético.


Eu, filho do carbono e do amoníaco,

Monstro de escuridão e rutilância,

Sofro desde a epigênesis da infância,

A influência má dos signos do zodíaco

                                                             Psicologia de um vencido




Muitos anos se passariam até que fosse chegar às minhas mãos um exemplar do livro Eu que, como se sabe, foi o único deixado pelo singularíssimo poeta paraibano – antes disso eu lera uma edição de Os melhores poemas de Augusto dos Anjos, uma seleção feita por José Paulo Paes, que a mim foi emprestada, na época da faculdade, por Ariana Coutinho, uma colega de turma. Apesar de ser uma obra em essência triste, soturna – Orris Soares escreveu, em 1919, que “O Eu é um livro de sofrimento, de verdade e de protesto” (Orris Soares. "Elogio de Augusto dos Anjos". In Augusto dos Anjos. Eu. 31ª edição. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1971, p. 44) -, ela me veio naquele que eu considero como um dos dias mais felizes e prazerosos de minha existência: o dia em que eu fui levado a uma biblioteca particular e me foi dito que eu poderia pegar ali, não por empréstimo, mas como presente, tudo o que eu quisesse. Trata-se da 31ª edição, que foi lançada pela Livraria São José, do Rio de Janeiro, em 1971. Li-o com aquele vagar de quem espera que algo de bom nunca termine. Conhecer a poesia de Augusto dos Anjos por completo – e tendo a companhia de notas e textos de Antônio Houaiss, Orris Soares e Francisco de Assis Barbosa -, só fez com que eu me tornasse ainda mais fascinado por sua natureza lúgubre, por sua atmosfera por vezes amedrontadora, por sua descarga de angústia, por sua arquitetura versificada da estranheza e da incontida – assim me parece – inadequação de sua essência a este mundo; e despertou em mim um interesse que resvalou, como seria previsível, para a história de vida desse alquimista das palavras, para a trajetória errante desse irrequieto cientistas dos versos.



                                                  

Ler a poesia de Augusto dos Anjos não é apenas um exercício intelectual; é uma experiência desafiadora porque nos põe em contato com um fazer poético que não se enquadra em padrões comumente aceitos como “poéticos”, o que de imediato é verificado na superabundância de termos científicos que aparecem em grande parte dos seus versos. Faça-se uma enquete com o leitor comum de poesia, perguntando-se “do que são feitos os poemas?”, e certamente a maioria deles dirá, creio, que eles são feitos, fundamentalmente, de sentimentalismos, de divagações melosas, de contemplações afetivas – e eu quase dizia, amorosas. Essa não era a seara de Augusto dos Anjos. Augusto escrevia como se estivesse arrancando de si suas (in)compreeensões da realidade que o cercava; ele escrevia como se estivesse em um laboratório fazendo experimentos com a matéria vida, diluindo e decantando substâncias atordoantes, cuja evaporação por vezes provocava falta de ar.


Não sei que livro, em letras garrafais,

Meus olhos liam! No húmus dos monturos,

Realizavam-se os partos mais obscuros,

Dentre as genealogias animais!

                                                   Idealização da humanidade futura


Fotos: Ernani Neves


Neste ano em que se comemoraram os cem anos da primeira publicação do Eu – e eu não me perdoo pelo fato de ter perdido, por só ter tomado conhecimento do evento quando ele tinha ocorrido, a celebração que a cidade de João Pessoa destinou ao incensado poeta sapeense durante oito dias do mês de agosto -, eu me impus como condição para escrever este artigo em sua homenagem, uma viagem até o engenho onde Augusto dos Anjos nasceu: o Engenho Pau d’Arco, na cidade de Sapé, na Paraíba. Com este propósito eu rumei para lá no dia 15 de setembro passado.
















À medida que o carro em que eu estava seguia para aquelas terras, eu fui sendo tomado por uma emoção que às vezes me oprimia. Cerquei-me de uma cerimônia enorme demais antes de ir para aquele lugar, como se eu estivesse indo, na verdade, não só para ver o terreno, mas também para ter um encontro com o próprio Augusto.








Eram quase 17:00 h, quando lá chegamos. E estar ali, de certa forma, me fez mergulhar num regozijo que só os que cultivam uma vida interior podem imaginar. Estar ali foi como que um encontro com as coisas dos livros, com as coisas da imaginação, com as coisas de um desejo poderoso e inefável. Por um instante eu me imaginei abraçando aquele homem. E, talvez mais do que em qualquer outro momento, eu reconheci naquele sentimento a força motriz de minha vida.













Contrastando com as ruínas dos prédios da falida Usina Santa Helena, encontra-se a bela casa daquela que foi a ama de leite do poeta, Guilhermina, que agora abriga o Memorial Augusto dos Anjos que, infelizmente, estava fechado quando lá cheguei.



No tempo de meu Pai, sob estes galhos,

Como uma vela fúnebre de cera,

Chorei biliões de vezes com a canseira

De inexorabilíssimos trabalhos!

                                                   Debaixo do tamarindo














Dirigi-me até a capela e a casa-grande erguida, segundo se diz, no mesmo local onde existiu a morada da família dos Anjos. Quem está residindo nela agora – ou estava, quando da minha visita – é a simpática e prestimosa Emília Moraes, que fez a gentileza de prender os cachorros e me deixar entrar para ir ver o tamarindo que se supõe ser o mesmo retratado em versos por Augusto. Já era quase noite quando eu me encostei àquela árvore e fiquei a imaginar o menino e futuro poeta brincando naquele quintal.



Eu e Emília indo ver o tamarindo
















Emília me contou que seu esposo trabalhou na Usina Santa Helena; e que estavam ocupando a casa porque ainda não foram indenizados. Lamentou que, embora o conjunto formado pela casa-grande, a capela, as árvores do terreiro e a própria casa de Guilhermina, seja tombado pelo patrimônio histórico estadual, ele se encontre praticamente abandonado – a exceção é o edifício do memorial. Eu também lamentei bastante o descaso das autoridades para com a memória do insigne poeta paraibano; e ainda mais por estarmos celebrando a permanência de uma obra poética que atravessou décadas sendo constantemente reeditada e estudada – sou mesmo levado a crer que o Eu seja o livro de poesia com o maior número de edições do Brasil -; e arrebanhando cada vez mais leitores que costumam elevá-la a uma espécie de nicho a fim de adorá-la.












Antes de pegar novamente a estrada, eu contemplei os arredores da casa-grande, como que me despedindo; e carreguei dali comigo um novo sopro de revigoramento.


Escarrar de um abismo noutro abismo,

Mandando ao Céu o fumo de um cigarro,

Há mais filosofia neste escarro

Do que em toda a moral do cristianismo!

                                                                   As cismas do destino




No dizer de José Lins do Rego, Augusto dos Anjos é “a expressão mais original da poesia brasileira” (José Lins do Rego. "Augusto dos Anjos e o Engenho Pau D'Arco". In Homens, seres e coisas. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1952, p. 4). Eu, que não sou estudioso de sua obra, tão-somente um leitor diletante, enxergo nos seus versos a concretude de um pensamento que estava em constante conflito com tudo e com todos; é um mal-estar permanente; parece até que Augusto vivia embarcando num carrossel de negativismo e inconformidade e, quando desembarcava, regurgitava em versos a matéria mesma dessas inquietudes. Parafraseando aqui um lugar-comum – lembrei agora, depois de ter elaborado a paráfrase, daquela declaração de Orris Soares sobre Augusto, de quem foi amigo: “Feriu-me de chofre o seu tipo excêntrico de pássaro molhado, todo encolhido nas asas com medo da chuva” (Orris Soares. Op. cit. p. 29) -, eu diria que Augusto dos Anjos era um estranho que nunca encontrou seu ninho.

Um comentário:

  1. Amigo Clênio..tive a sorte de saber do evento antes, e a honra de apresentar um trabalho nele..Não pude me furtar a oportunidade de conhecer o engenho na companhia de um amigo, também estudioso de Augusto.. Compartilho de sua emoção e fico a um só tempo feliz por você, e triste por ver que ninguém se manifestou a respeito de sua jornada..Este ano é o de centenário de sua morte, falemos dele para que continue vivo!!! Abraços..

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