6 de abril de 2013

Vão abolir o Museu da Abolição

Por Clênio Sierra de Alcântara



Fotos: Ernani Neves


Mais uma vez o Recife se vê às voltas com “soluções” de última hora para os problemas de seu trânsito caótico. Levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgado recentemente – e os dados correspondem, vejam só, ao ano de 2009; o que pode nos levar a crer, pelo que temos vivenciado de lá para cá, que a situação só fez piorar – apontou que a Região Metropolitana recifense é a terceira do país onde há mais demora no deslocamento entre a casa e o trabalho - o Grande Recife só fica atrás do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Desde o alvorecer do século XX, quando os automóveis se tornaram uma realidade mais do que presente no espaço urbano, as principais cidades do Brasil, em geral, e o Recife, em particular, vêm sendo alvo de rearranjos para acomodar em seus traçados do tempo colonial e imperial – falo, evidentemente, das urbes mais antigas – o sempre crescente número de veículos automotores. No Recife, o império dos automóveis provocou o desaparecimento de centenas de prédios,  dentre os quais se incluíam várias edificações históricas, verdadeiros monumentos que marcavam a paisagem dos bairros mais primitivos e tradicionais da capital pernambucana: Recife Antigo, Santo Antônio e São José.













O advento do século XXI encontrou os burgomestres do Recife ainda planejando mutilações no seu tecido urbano com vistas a abrir passagem para o trânsito dessas máquinas devoradoras de cidades. Em treze anos, ruas e avenidas foram alargadas, edificações foram demolidas, túneis e pontes foram construídos... E nada de a cidade conseguir atender as demandas veiculares, fazendo com que os tecnocratas já pensem em introduzir no Recife o rodízio de carros, prática essa que há tempos foi implantada em São Paulo e que não resolveu a problemática dos congestionamentos quilométricos, uma vez que não se pode, evidentemente, impedir que famílias possuam mais de um carro e nem que os Detran’s efetuem o emplacamento de milhares de veículos todos os meses.

Ainda agora o Recife passará por mais uma nova intervenção visando novamente à adequação do espaço citadino às exigências do trânsito. No bairro da Madalena, Zona Oeste da capital, no cruzamento da Av. Caxangá com a Rua Real da Torre, será construído o denominado Túnel da Abolição, bem ao lado do bonito e imponente Sobrado Grande da Madalena, que há muitos anos foi transformado no Museu da Abolição e, durante certo tempo, abrigou conjuntamente a unidade do Iphan em Pernambuco.

Propostas de construção de túneis tornaram-se a coqueluche do momento no Recife. Nos últimos anos a cidade já viu serem abertos três: Túnel Chico Science, Túnel do Pina e Túnel Augusto Lucena. Construídos para supostamente desafogarem o trânsito desordenado da cidade, esses equipamentos não passaram, até agora, de verdadeiros sumidouros de dinheiro público que efetivamente não resolveram os entraves que em tese solucionariam. Tome-se como exemplo o Túnel Chico Science, na Ilha do Retiro. Percorrer a Av. Engenheiro Abdias de Carvalho nas horas de maior fluxo de veículos é um exercício aborrecedor. É simplesmente infernal transitar por ali na hora do rush. Não existe uma coordenação; e a presença de guardas municipais na área por si só revela que a empreitada não deu certo, não impede o congestionamento e nem dinamiza a circulação no girador que dá acesso ao túnel. Essas obras têm demonstrado, ao menos no Recife, que elas, quando desentravam um ponto, entravam outro; não ocorre um fluxo contínuo. O Túnel da Abolição, por exemplo, não impedirá a retenção no cruzamento da Rua Benfica com a Rua Visconde de Albuquerque; e muito menos no deslocamento deste ponto até a Av. Agamenon Magalhães.






O Recife tem um histórico desabonador de demolições com vistas à melhoria do trânsito, sendo a abertura da Av. Dantas Barreto – ela começa no bairro de Santo Antônio e termina no de São José – o caso mais emblemático, mais absurdo de uma obra viária que resultou quase que inteiramente inútil e desnecessária; e que provocou a perda incomensurável de grande parte da memória urbana dessa cidade.







O bota-abaixo na Rua Real da Torre já teve início, como eu pude documentar na manhã do último sábado. Ao todo dezessete prédios sumirão do mapa, o que inclui residências, estabelecimentos comerciais e um templo da Assembleia de Deus, que foi o primeiro a ser demolido.









Os urbanistas da Prefeitura do Recife farão com o Sobrado Grande da Madalena – um dos mais representativos símbolos da chamada “civilização do açúcar”, uma construção que evoca um tempo em que os subúrbios da cidade eram pontuados por engenhos – o mesmo o que os áulicos da Ditadura Militar fizeram, em 1969, com o Forte das Cinco Pontas – ele abriga há décadas o Museu da Cidade do Recife -, no bairro de São José: no entorno da fortificação ergueram um horrendo viaduto que tirou do edifício histórico o seu domínio sobre a paisagem. Sem a ambiência e sem a paisagem nas quais foram primitivamente inseridos, os monumentos e prédios históricos são quase que completamente emasculados.

Ao pensarmos no desenvolvimento das cidades, sobretudo quando esse “desenvolvimento” implica em ações de demolição/construção, principalmente em zonas de preservação histórica, não devemos nunca esquecer do que um dia disse Americo Castro: “Hay que hacerse con la propia historia, no dehacerse de ella frivolamente”.

É evidente que todo projeto urbano deve ser realizado tendo em vista demandas futuras – preceito esse nem sempre seguido pelos urbanistas brasileiros. Mas a questão que se coloca aqui é que essa tecnicidade, esse saber voltado para a vida prática não deve ser apenas contemporâneo do futuro. A matéria do passado e os valores do presente devem ser considerados; do contrário, histórias, tradições e testemunhos se perderão com a mesma velocidade com que os motoristas irresponsáveis percorrem as avenidas, atropelando tudo que encontram pela frente.


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