6 de agosto de 2015

Feiras livres (10)

Por Clênio Sierra de Alcântara




Fotos: do autor          Entrada do Mercado Central




Centro (João Pessoa – PB). Algo que chama muito a minha atenção nas cidades que eu visito, é a relação que a população mantém para com os locais onde ocorrem as feiras livres. Percebe-se no vai e vem das pessoas, nas conversas que os fregueses mantêm com os feirantes e no bulício como um todo, uma coisa que o transcurso do tempo, com o aparato tecnológico que o acompanha, não consegue ofuscar: o sentido de pertencimento que os indivíduos deixam ver em sua relação com esse tipo de comércio que, historicamente, podemos conjecturar, remonta à primitiva prática do escambo, quando não havia moeda propriamente dita, e as pessoas trocavam produtos entre si, de acordo com as suas necessidades. De certo modo, as feiras livres permanecem como retratos ainda fiéis das antigas atividades comerciais vivenciadas por nossos antepassados; e, para mim, nada é mais representativo desta ligação com os tempos remotos, do que a oferta de produtos dispostos diretamente no chão, prova não apenas de rusticidade, mas também uma demonstração de que, no princípio, muito provavelmente era dessa maneira que eles eram comercializados.



Esta foto dá uma ideia da gama da variedade de produtos que são comercializados na área: urupemas, carrinhos de madeira, ervas, chapéus, sacolas de nylon... As feiras livres muitas vezes oferecem produtos que dizem muito das tradições locais










Em algumas das vezes em que estive em João Pessoa, como no dia 20 de setembro do ano passado,fui bater perna no movimentado Mercado Central, onde há anos vem resistindo uma pequena “feira livre”. Deixem-me explicar o porquê das aspas. Com a entrada voltada para a Av. Dom Pedro II, no centro da capital paraibana, o Mercado Central é um equipamento novo, que foi inaugurado em novembro de 2009, durante a administração do prefeito Ricardo Coutinho. A área que abriga os vários prédios que constituem o mercado é enorme; e cada uma das edificações é dominada por produtos específicos: carnes; frutas, legumes e verduras; cereais; etc. 






Poucas coisas são tão características de uma feira livre nordestina do que a arrumação de produtos diretamente no chão



Contou-me Iury Gabriel, 32 anos, funcionário da Secretaria de Desenvolvimento e Controle Urbano (Sedurb), que existiam no terreno dois grandes galpões – um deles, bastante degradado, continua de pé, porque a obra não foi efetivamente concluída – que abrigavam o comércio.






A área está degradada e a presença de veículos só piora a situação. Não existe ordenamento para o estacionamento









Em vários pontos, como neste que aparece na foto, ocorreu uma favelização em derredor dos prédios novos. Essas barracas foram instaladas junto às paredes do prédio antigo, que está bastante degradado



Conversei também com Doralice Oliveira, 50 anos, que é feirante há mais de duas décadas. “Esse comércio daqui tem mais de quarenta anos. Eu era pequena e ele já existia”. Doralice me relatou o seguinte: foi um juiz que determinou que o mercado fosse reurbanizado porque o local estava muito deteriorado. “Não acredito que vão terminar essa reforma”, ela lamentou, dizendo ainda que alguns dos feirantes ficaram ao ar livre – como foi o seu caso - porque perderam o espaço que tinham – “Eu tinha um boxe enorme. E me botaram num bem pequeno”, declarou – e foram realocados para setores que, segundo ela, não são muito frequentados, diminuindo o volume de vendas. Daí por que a “feira livre” é, na verdade, uma reunião dos “excluídos” das dependências do mercado.















Nesta e nas cinco outras fotos seguintes aparecem aspectos internos e externos dos prédios novos






Comércio de cereais em sacas


Quem percorre todo o espaço ocupado pelo complexo que constitui o Mercado Central nota o grande contraste que existe entre os prédios novos, o antigo e degradado galpão da configuração antiga e as barracas que favelizaram alguns pontos do terreno. Além disso, não existe ordem para o estacionamento de carros; e aqui e ali o que se percebe é um completo descaso da Municipalidade para com a situação em que ficaram vários dos feirantes.






O comércio de hortifruti ficou estabelecido quase que totalmente nas dependências do espaço coberto. Os excluídos dessa área é que comercializam na "feira livre"












Não há um espaço muito amplo para a "feira livre" propriamente dita



A exemplo de outras feiras livres nordestinas, essa de João Pessoa apresenta um comércio variadíssimo que vai de frutas, legumes e verduras, até peças de vestuário, objetos de usos diversos e utilidades domésticas. Tudo disposto em bancos de madeira – como é o caso das roupas -, tabuleiros e no próprio chão. Tudo multicolorido e por vezes de aroma embriagador – vi cajus maravilhosos, meu caro leitor; e o cheiro deles me fez recordar do sítio do meu avô, que mantinha dezenas de cajueiros que faziam a alegria de todos da minha família.













A área ocupada pelo Mercado Central era outrora um grande sítio repleto de árvores pertencente a um certo “Dr. Maciel”. Os prédios primitivos começaram a ser erguidos em 10 de novembro de 1943, na administração do prefeito Francisco Cícero. A inauguração se deu em 6 de março de 1948, quando era chefe do executivo municipal Vasco de Toledo - o burgomestre Oswaldo Pessoa só assumiu a Municipalidade oito dias depois de tal evento. Os pessoenses, contudo, só começaram a frequentar o local pouco mais de um ano depois, porque a primeira feira só ocorreu ali em 19 de março de 1949.


O Mercado Central embora seja, como eu disse, uma construção nova – e não custa repetir que ele substituiu um outro -, marca a fisionomia de uma cidade que, tempos atrás, no bairro do Tambiá, abrigava um tradicional mercado público – o Mercado de Tambiá , uma vistosa construção do século XIX que possuía várias entradas e janelas laterais e que se situava em parte do terreno onde atualmente se encontra o prédio do INSS, e que foi demolido no início da década de 1950, conforme Wellington Aguiar nos diz em seu livro Cidade de João Pessoa: a memória do tempo (3ª ed. João Pessoa: Ideia Editora, 2002, p. 137 e 253) – que era bastante frequentado e no entorno do qual, aos sábados, ocorria a maior feira livre da cidade. Em muitos municípios do Nordeste, os mercados públicos coexistem intrinsecamente com as feiras livres, complementando-as: o que não se encontra na feira, pode estar à venda no mercado.











Recordando seus primeiros anos de morada na capital paraibana, à qual chegou no início de 1962, o pedagogo Reginaldo Florêncio Cavalcanti lembrou que “A municipalidade ainda permitia feiras livres em zonas comerciais do centro” (“Primeiras impressões da cidade de João Pessoa”. In: Wellington Aguiar e José Octávio (orgs.). Uma cidade de quatro séculos: evolução e roteiro. João Pessoa: Governo do Estado da Paraíba, 1985, p. 272).















Iury Gabriel, que me deu umas informações a respeito das obras de reforma do Mercado Central


Por sua vez, o historiador José Octávio destacou que até a primeira metade do século XX, o abastecimento de gêneros alimentícios de João Pessoa era garantido principalmente pelo Mercado de Tambiá que acabou sendo substituído pelo que foi erguido na Av. Dom Pedro II. Completou ele ressaltando que:



Tanto num como noutro lugar, as feiras livres eram grandes, concorridas. A carne chegava fresca, em postas enormes, nos caminhões dos marchantes, liderados pela família Duré, de Itabaiana. Às quartas-feiras, a feira deslocava-se para Jaguaribe, com abundância de hortaliças e verduras, além de inhame e batata, provenientes da antiga zona rural da capital, de onde procediam os caçuás que o passar do tempo e os projetos de agricultura extensiva inviabilizaram.


Como não havia super-mercados (sic), o grosso do abastecimento era assegurado pelas vendas, espécies de quintandas (sic) onde prevalecia o sistema de cadernetas para compra a crédito. Algumas dessas vendas também comerciavam com pão e leite, mas o comum era esses gêneros serem entregues a domicílio por outros fornecedores, e também a crédito. Fora daí, cada bairro possuia (sic) seu açougue, assinalado por bandeira vermelha pregada na parede, porque à falta de frigorificação tinha-se de comprar carne todos os dias (“João Pessoa – Uma cidade do patriarcalismo à urbanização” [1946-55]”. In: Wellington Aguiar e José Octávio. Op. cit. p. 258-259).











































Apesar de ser bastante diminuta, a feira livre abrigada no mesmo terreno que constitui o grande Mercado Central, ainda assim, conserva as características que fazem desse tipo de comércio um dos aspectos mais pitorescos de cidades cuja população não se rendeu completamente às quitandas e mercearias de bairros e muito menos aos hipermercados.


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