Por Clênio Sierra de Alcântara
I
Pouco mais de um ano depois
de o Brasil ser descoberto pelos portugueses, os navegadores de além-mar se
depararam no dia 1º de novembro de 1501 com uma baía muito ampla, cheia de
ilhas e repleta de habitantes e a batizaram de Baía de Todos os Santos – como se
sabe, eles comumente davam nomes aos acidentes geográficos e aos lugares quase
sempre de acordo com os santos do dia -; e assentaram um marco de pedra no
extremo sul do promontório, no sítio atualmente ocupado pela fortaleza e farol
de Santo Antônio da Barra – a antiga Ponta do Padrão.
Muito embora tenha sido
desde o primeiro momento considerada um bom e seguro lugar para ancoragem e
nela houvesse sido erguida uma feitoria com o objetivo principal de tentar
intimidar as incursões dos franceses e garantir o abastecimento das naus
portuguesas com o pau-brasil, a baía acabou sendo negligenciada a tal ponto
que, tendo Cristóvão Jacques entrado nela em 1525 com o fito de combater piratas
oriundos da França, veio ele a ser considerado o descobridor daquela área.
É digno de nota o fato de
que um português chamado Diogo Álvares, o Caramuru, que teria sobrevivido a um
naufrágio ocorrido por volta de 1510 ou 1511 nas imediações do Rio Vermelho, na localidade que já foi considerada bairro, o da Mariquita, viveu durante vários anos entre o gentio;
por esse tempo, aliou-se a corsários franceses, servindo de intermediário entre
eles e os nativos no comércio do pau-brasil.
Dona Marina do Rosário: fé na base de tudo |
Ernani Neves recebendo a bênção do padre |
Eu fazendo pose junto ao gradil repleto de fitas do Senhor do Bonfim |
Entendeu a Coroa Portuguesa
que a Bula papal assinada por Alexandre VI, que fixara o Tratado de
Tordesilhas, determinando a divisão do mundo entre Portugal e Espanha, era
ignorada principalmente pelos franceses e não eram meras feitorias que iriam
impedir as constantes expedições deles para negociarem com os índios. Desse
modo decidiu-se recorrer a outro empreendimento com vistas a garantir a posse
da terra: a criação das Capitanias hereditárias, a partir das quais se
pretendia promover a fundação de povoações e estimular a colonização da
vastíssima costa brasileira.
Foi em meados da década de 1530
que chegou à Capitania da Baía de Todos os Santos o seu primeiro donatário
Francisco Pereira Coutinho. Ele desembarcou com sua gente na enseada da Barra,
próxima à povoação estabelecida por Caramuru. Percebendo a necessidade urgente
de dominar e defender o porto, o donatário construiu uma estância com casas
para cerca de cem moradores com trincheiras
ao redor – essa Vila do Pereira estava situada no local atualmente conhecido
como Porto da Barra. Ainda que contando com o auxílio de Diogo Álvares para
conter a insatisfação dos nativos diante do imperativo de posse de suas terras,
Pereira Coutinho, o “rusticão”, como fora apelidado, teve de enfrentá-los em
vários combates até que, certa feita, capitulou e retirou-se para Porto Seguro.
Cogitou mais tarde em retomar a direção de sua capitania; e na viagem de volta
diz-se que um naufrágio o surpreendeu nas proximidades da Ilha de Itaparica,
onde acabou morrendo nas mãos dos índios. O que se seguiu foi o saque e arrasamento
da Vila do Pereira, o desarmamento da fortaleza, a destruição dos engenhos de
açúcar e a matança de todo o gado.
O que fazer depois do
malogro tanto do estabelecimento de feitorias quanto do sistema de Capitanias
hereditárias? A nova diretriz para promover a colonização foi dar à Colônia um
governo-geral que fosse capaz de dirimir e de sobrepor pela força e pela
autoridade e competência, todos os fatores que se portaram como obstáculos para
o desenvolvimento das capitanias. Decidiu Dom João III que a sede do governo
seria instalada na Bahia. E assim, por alvará de 7 de janeiro de 1549,
determinou o monarca, conforme vai dito na Enciclopédia Brasileira dos
Municípios:
mandar
fazer uma fortaleza e povoação grande e forte na Baya de Todos os Santos por
ser yso o mais conveniente luguar que ha nas ditas terras do Brazil para daly
se dar favor e ajuda nas outras povoações e se ministrar justiça e prover nas
cousas que cumprem a meu serviço e aos negócios de minha fazenda e a bem das
partes... (1)
A ocupação desordenada dos morros dá a tônica na capital baiana |
Em completo estado de ruínas, em 2013, estes edifícios contíguos à Igreja da Conceição da Praia estão sendo reconstruídos |
Ainda em 1549 – em 1º de fevereiro – partiu da capital portuguesa grande frota constituída pelas naus Salvador, Conceição e Ajuda, as caravelas Rainha e Leoa e o bergantim São Roque, trazendo centenas de pessoas, inclusive três das personalidades mais significativas no que diz respeito à organização do Brasil: Tomé de Sousa, o primeiro Governador-geral, o padre Manuel da Nóbrega, superior dos jesuítas, e Garcia d’Avila, que foi feitor e almoxarife da cidade.
Depois
de entrar em entendimento com Diogo Álvares, Paulo Dias Adorno e outros
moradores para que providenciassem alojamentos para todo o contingente, Tomé de
Sousa desembarcou no dia 31 de março. Muito embora a glória da fundação da
cidade tenha cabido a ele, não podemos excluir a existência do núcleo de
povoação, a Vila do Pereira. O desembarque de Tomé de Sousa marca efetivamente
o início da história de Salvador e da construção da cidade. Oficialmente
comemora-se a fundação da cidade no dia 29 de março, data da chegada de Tomé de
Sousa.
Durante
cerca de um mês, os recém-chegados se ocuparam em estabelecer contatos de paz
com os nativos, promover o plantio de mantimentos, armazenar apetrechos bélicos
e ferramentas, reparar a cerca da antiga povoação do Pereira e explorar o
terreno à procura de um local adequado ao estabelecimento da cidade. Eis a
descrição do sítio que fora escolhido para tanto:
um
terrapleno distante, cerca de meia légua, da Vila Velha e da povoação do
Pereira, de situação estratégica, debruçado a pique sobre o mar, dominando-o,
com ótimas aguadas e porto extenso, de fácil defesa, caso viessem ataques do
mar ou de terra, uma vez que este altiplano dominava os morros vizinhos, de que
se isolava pelos riachos e lagoas que enchiam as baixadas de valados profundos. (2)
O
terreno foi limpo, levantada uma estacada, construídos os muros e erguidas as
casas do Governador e da Câmara no alto do monte. O arquiteto Luís Dias desceu
à ribeira e ali fez, à beira–mar, o arsenal e a alfândega com os armazéns. Em
princípio as casas foram construídas todas térreas, feitas de taipa de mão e
cobertas com folhas de palma.
Elevador Lacerda |
Mercado Modelo |
Em
13 de julho de 1553 chegou à Bahia Duarte da Costa, sucessor de Tomé de Sousa
no governo-geral, cuja administração, curta como a do antecessor, foi marcada
pelo triunfo sobre os tupinambás e o impulso dado à catequese encabeçada pelo
padre Nóbrega.
Corria
o ano de 1557, quando às paragens baianas aportou Mem de Sá, o terceiro
Governador-geral, que seguiu no posto durante quinze longos anos (1557-1572),
boa parte deles dedicados à expulsão dos franceses do Rio de Janeiro. Durante o
seu governo, a cidade de Salvador conheceu um período de movimentada renovação
urbana. Em termos de construção e reformas prediais, sofreram intervenções a
Casa de Câmara e o Palácio do Governador; foram construídas as primeiras
enfermarias da Casa da Misericórdia; erguido o corpo de alvenaria da Sé
Catedral; e edificada às custas dele a Igreja do Mosteiro de Jesus (atual
Catedral Basílica). Mem de Sá mandou erguer em Pirajá até um engenho público, o
Lagar do Príncipe, onde os lavradores pobres podiam moer suas canas, e restaurar
aldeias em torno da cidade.
No
ano de 1573 a Coroa Portuguesa tomou a decisão de manter o Brasil sob a
administração de dois governos com atribuições iguais, mas independentes entre
si: o governo do Norte, com sede em Salvador, ficou a cargo de Luís de Brito; e
o do Sul, sediado no Rio de Janeiro, foi confiado a Antônio Salema. Tal
resolução caiu por terra cinco anos depois, quando novamente unificou-se a
administração sob a autoridade de Diogo Lourenço da Veiga, ficando sediado
outra vez em Salvador.
Antes
que o terceiro quartel do século XVI terminasse, o ouvidor Cosme Rangel
conseguiu desbaratar os vários quilombos de negros fugidos que se formaram
nos arredores da cidade, entravando o seu crescimento. Outros entraves a
emperrar seu desenvolvimento foram a expansão pela costa à procura de terras
para a lavoura da mandioca, as primeiras entradas e a fundação do Rio de
Janeiro; além disso, a população não era numerosa por essa época: em 1576
contaram 1.100 brancos apenas.
Igreja do Santíssimo Sacramento da Rua do Passo foi restaurada e reaberta neste ano, depois de ficar mais de vinte anos fechada |
Imóveis como estes estão escorados para que não desabem |
Hora de descansar porque hoje eu andei muito |
Rua Chile |
Vista do Forte de São Marcelo |
Rompendo
a cerca primitiva, a cidade crescera, estendo-se desde a atual Praça do
Pelourinho, ao norte, até ao terreiro hoje conhecido como Praça Castro Alves,
ao sul. O período quinhentista seria marcado ainda pelo aumento de construções
religiosas em vários pontos do espaço urbano: o Mosteiro de São Bento e o dos
Carmelitas, por exemplo, foram iniciados respectivamente em 1584 e 1586: e o de
São Francisco em 1583.
A
prosperidade baiana – um dado evidencia isso: em 1576, só de Angola, foram
trazidos 3.000 negros para trabalharem ali como escravos em engenhos, que eram
36 e produziam 3.000 caixas de açúcar, possivelmente ao ano – despertou ainda
mais a cobiça de outros europeus, principalmente quando houve a unificação dos
reinos da Espanha e de Portugal, no período de 1580 a 1640, conhecido como
União Ibérica. Os inimigos dos espanhóis não perderam tempo em promover
incursões com vistas a ocupar Salvador. Em 21 de abril de 1587 a cidade foi
bombardeada por piratas ingleses comandados por Lestes e Withrington, cujo
desembarque acabou não ocorrendo devido a um temporal que desarvorou os navios.
Na
véspera do Natal de 1599 uma esquadra flamenga comandada pelo almirante
Leynssen encheu a Baía de Todos os Santos posicionada para o combate. No
entanto, as defesas portuguesas não capitularam, repeliram e impediram o
desembarque dos invasores. Durante quase dois meses – cinquenta e cinco dias –
os holandeses, não conseguindo aportar em Salvador, queimaram embarcações no
porto, e percorreram o Recôncavo assaltando engenhos de açúcar, destruindo alambiques
e incendiando casas.
Hora de sentar para assistir ao pôr do sol na Barra |
Eu e Luana Monteiro |
A simpaticíssima Cristina Fonseca |
Ainda
no princípio do século XVII – 1604 – os holandeses, desta feita sob o comando
de Paul Wan Caarden, tentaram novamente invadir a cidade; bombardearam o burgo
durante quarenta dias, mas outra vez não venceram a resistência portuguesa.
O
crescimento e a fama adquirida pela cidade continuaram atraindo a
cobiça estrangeira. Já em 1612 corsários franceses de Daniel de La Touche que
intentavam chegar àquele terreno foram repelidos em pleno oceano.
Avisado
de que os holandeses planejavam uma nova investida, o governador Diogo de
Mendonça Furtado tratou de acelerar as obras que garantissem a defesa da
cidade, como fortes, trincheiras e redutos. Em 14 de abril de 1624 flamengos
foram avistados na altura da foz do Rio São Francisco. Em 9 de maio, por volta
das nove horas da manhã, transpuseram a barra, renderam o forte na Ponta do
Patrão, tendo 1250 deles desembarcado nas proximidades dessa fortaleza,
enquanto a maior parte da esquadra rumava para o porto da cidade. E na noite
desse mesmo dia eles acamparam nas portas de São Bento. Não houve desta vez
resistência. Portugueses e espanhóis – recordemos que ainda se encontravam sob
o mesmo governo Portugal e Espanha devido à União Ibérica (1580-1640) – foram
dominados pelos flamengos que saquearam Salvador recolhendo alfaias, joias,
moedas de prata e muitas outras coisas. Donos da situação, eles fortificaram a
seu modo a cidade e depredaram igrejas a fim de transformá-las em depósitos,
celeiros, adegas e paióis.
Para
as bandas do Rio Vermelho a resistência foi se organizando; e dali as
guerrilhas se movimentavam em ataques aos inimigos nas zonas de São Bento,
Carmo e Itapagipe.
A partir daqui os registros fotográficos são de minha autoria e correspondem ao ano de 2017 |
A imagem de Nossa Senhora da Conceição muito celebrada em seu dia |
Ao lado desse prédio caindo aos pedaços, encontra-se um estacionamento |
Diversão total! |
O
socorro espanhol só chegaria no ano seguinte. Em 22 de março, uma esquadra de
cinquenta e dois navios – além de urcas, patachos e outros barcos -, com um
contingente de 12563 homens sob o comando de Dom Fradique de Toledo, adentrou
na baía bloqueando a esquadra holandesa. No dia 30 de abril ocorreu a
assinatura da rendição dos invasores no Convento do Carmo.
As
narrativas históricas nos informam que até mesmo os soldados espanhóis
contribuíram para agravar o estado de ruína em que a cidade fora deixada pelos
holandeses, promovendo saque de tudo que fosse possível ser levado, como até portas
e fechaduras. Um dos maiores danos que a invasão provocou foi a destruição dos
livros e arquivo da Câmara, causando a perda de um rico documentário da vida da
cidade até 1624.
Enquanto
buscava se reerguer e ampliar seu sistema defensivo, Salvador teve de repelir
uma nova investida holandesa, ocorrida um março de 1627, sob as ordens de
Pieter Heyn.
Depois
de, em 1630, dominarem a Capitania de Pernambuco, os holandeses, agora já sob o
comando do conde Maurício de Nassau, armaram poderosa esquadra destinada a
invadir o terreiro soteropolitano. Eis o que registrou Gaspar Barlaeus sobre o
preâmbulo dessa investida no livro em que se narra os anos do governo
nassoviano – 1637/1644 – nas terras brasileiras:
Começou,
pois Mauricio a revolver no pensamento esta facção de maior tomo e de maior
labor, isto é, a expugnação da Baía e de sua metrópole [...] Era ali, diziam
eles, o principal refúgio dos portugueses; era ali que se dava a máxima atenção
à resistência contra o invasor e à honra do rei da Espanha; em nenhuma outra
parte havia mais engenhos de açúcar e presa mais rica; com aquela vitória
poderia o Brasil dentro em breve estar todo sujeito à Holanda, e nenhuma outra
cidade galardaria mais dignamente os vencedores
e causaria danos mais certos aos adversários. (3)
Foi
em 16 de abril de 1638 que a esquadra holandesa desembarcou na praia de Nossa
Senhora da Escada sem encontrar resistência. Daí marcharam os flamengos sobre
Itapagipe, atingiram Água de Meninos e galgaram o oiteiro da Lapinha e
assestaram sua artilharia no alto da Soledade. No dia 2 de maio uma decisiva
batalha foi travada à noite e os invasores não resistiram ao fogo da fortaleza
de Santo Antônio Além do Carmo e aos ataques dos comandados de Luís Barbalho.
E, sem saída, Maurício de Nassau pediu armistício e, em meio a este, retornou
com sua gente para Pernambuco.
Mas
os holandeses não tardariam a retornar ao terreiro soteropolitano. Em 25 de
abril de 1640 eles estavam de volta, agora sob o comando do almirante
Lichtbardt. Nessa investida não apenas a cidade foi atacada: vinte e sete
engenhos foram incendiados e destruídos; além de povoações e casas particulares
da região do Recôncavo.
No
ano de 1647 Salvador sofreu outro ataque holandês. Dois mil e quinhentos homens
comandados por Sigismundo Van Sckoppe desembarcaram na ilha de Itaparica em
fevereiro e só se retiraram em dezembro daquele ano, quando se aproximava um
reforço português vindo de Lisboa.
É noite em Salvador: começa o envolvente Circuito Jorge Amado |
O
definitivo esforço contra os invasores no século XVII proporcionou um tempo de
nova e fulgurante expansão do espaço citadino. A tosca cidade de palha e
madeira adquiria doravante ares de verdadeiro centro urbano com a construção de
palácios, como o dos governadores, o do arcebispo, o da Câmara, o da
Misericórdia; além de santuários e conventos. O casario humilde também se
expandiu. E a cidade foi descendo pelas ladeiras, se estabelecendo igualmente
na parte baixa do terreno que marcava a Baía de Todos os Santos.
Nos
primeiros anos do século XVIII a cidade continuou crescendo a olhos vistos. Sob
a administração do marquês de Angeja (1714-1718) ocorreu – e diz-se que com o
incentivo dele – a chegada de membros da aristocracia rural do Recôncavo, que
começou a estabelecer em Salvador a construção de residências compatíveis com a
riqueza de que dispunham.
Novas
ruas continuam a surgir; e velhos bairros também vão acompanhando o crescimento
da cidade. Na parte baixa da montanha, a construção da alfândega ensejou o
surgimento de inúmeras casas de negócio, dando origem à atual Cidade Baixa, que
sempre enfrentou ameaças de desabamentos da encosta, como os que ocorreram em
1721 e 1732, apesar das obras visando a consolidação do terreno. A propósito,
vale a pena o exame de um mapa de cerca de 1785, de autoria de José Gonçalvez
Galeão, no qual são indicados os aterros e as novas áreas edificadas, avançando
sobre o mar, e que está contido na obra magnífica Imagens de vilas e cidades do
Brasil colonial, organizada por Nestor Goulart Reis. (4)
Muito
embora tenha perdido o status de capital da Colônia em 1763, Salvador
permaneceu em franca fase de desenvolvimento ainda no século XVIII, quando se
observam a abertura de novas artérias e retificação e pavimentação de outras já
existentes. Além disso, a cidade foi equipada com um cais de desembarque, foram
erguidas outras muralhas entre a Misericórdia e o Taboão, e o seu primeiro
teatro – a Ópera Velha – na Rua do Saldanha. De modo que, como esse ritmo
construtivo, a cidade adentrou no século XIX com o seu delineamento já
estabelecido, indo, na Cidade Baixa, da Praia da Preguiça até a Jequitaia, numa
rua tortuosa que comportava prédios de 3 e 4 andares, e, na Cidade Alta, do
Forte de São Pedro até o Convento da Soledade.
Antes,
porém de começarmos a “passear” pela cidade no século XIX, leiamos a descrição
que dela fez Luiz dos Santos Vilhena que
a ela chegou em fins de 1787, anotando, entre tantos outros pormenores, que o
sítio urbano era constituído por seis bairros: São Bento, da Praia, Santo
Antônio Além do Carmo, Palma, Desterro e Saúde. Vejamos o relato:
Pouco
menos de meya légua para dentro da Barra e pelo pé da montanha que acompanha a
marinha, correndo de Nordeste a Sul sudoeste, fica a cidade do Salvador,
comessando na praya no citio da Preguiça athe a Gequitaia, com huma rua
tortuosa mas continuada com propriedades de cazas de tres e quatro andares e
outros grandes edifícios tendo de oito para nove mil pez portugueses de
comprido; e a esta povoação que por toda a sua extensão deita diversos beccos
que vão morrer na marinha, chamão a Praya ou Cidade Baixa. Por sette calçadas
que sobem pela colina procurando a campanha para a parte do Nascente se
comunica esta com a cidade alta que na mesma direcção da Montanha corre com
huma semelhante rua, com tortuosidades não pequenas, desde o Forte de S. Pedro
athé o convento da Soledade, com meya légua de comprido, com pouca differença.
Na sua mayor largura, procurando a campanha ao Nascente, poderá ter a cidade de
quatrocentas para quinhentas braças; bem entendido que differentes ruas
acompanhão aquella principal com direcções diversas; os seus grandes Edificios,
Templos e Cazas nobres são ordinário pelo gosto e risco antigos, em que se
notão algumas irregularidades, á excepção de poucos mais modernos. (5)
A feirinha em Campo Grande |
A
passagem – na verdade, a comitiva se demorou trinta e quatro dias na cidade: de
22 de janeiro até 26 de fevereiro de 1808 – da corte de Dom João VI por
Salvador, fugindo da invasão dos exércitos de Napoleão Bonaparte, trouxe um
ritmo de acelerado progresso material para Salvador. Algo verificado
acentuadamente sob a administração de Dom Marcos de Noronha e Brito, o oitavo Conde
dos Arcos (1810-1818). Por esse tempo ergueu-se o vistoso prédio da Junta do
Comércio (atual Associação Comercial), construiu-se o Passeio Público,
organizou-se uma biblioteca pública. Mas nem tudo era transformação positiva o
que ocorria no espaço urbano. Continuaram os desmoronamentos na encosta sobre a
qual estava assentada a cidade – nos invernos de 1812 e 1813, inúmeros prédios
desabaram e outros foram soterrados na Cruz do Pascoal, no Xixi (Pilar), na
Misericórdia, na Gamboa, na Conceição e em Santo Antônio Além do Carmo – e, em
decorrência disso, cogitou-se transferi-la para a península de Itapagipe.
Johann
Moritz Rugendas, o talentoso alemão nascido em Augsburg, que nos legou uma das
mais ricas coleções de gravuras de aspectos da vida natural e social do Brasil
do século XIX, esteve em Salvador em 1821. Rugendas circulou por várias áreas
da cidade observando tipos humanos e aspectos das edificações tanto na Cidade
Baixa como na Cidade Alta. Segue um trecho dos seus apontamentos:
Perto
da alfândega e do cais de desembarque, as casas têm, em geral, três, quatro e
mesmo cinco andares, mas não comportam senão de três a quatro janelas nas
fachadas. As ruas são estreitas e irregulares, porque o pequeno espaço entre os
rochedos e o mar não permitia abri-las com maior largura. Três ruas
ascendentes, e fortementes inclinadas, unem a cidade comercial aos bairros e
arrabaldes. Nestes as ruas são mais largas, mais limpas e mais bem calçadas.
Há, na Bahia, grande número de edifícios públicos, mas eles são muito mais
notáveis pelo tamanho que pela beleza da arquitetura. (6)
Edifício Oceania, um dos ícones da capital baiana |
Quarta-feira, 17 de outubro de 1821: “Esta manhã, ao raiar da aurora, meus olhos abriram-se diante de um dos mais belos espetáculos que jamais contemplei. Uma cidade magnífica de aspecto, vista do mar, está colocada ao longo da cumeeira e na declividade de uma alta e íngreme montanha”. Foi com essas palavras que a inglesa Maria Graham marcou sua primeira impressão de Salvador nas páginas do seu diário. Mas bastou que ela começasse a percorrer a pé o burgo que de longe lhe despertara admiração para que outra realidade enchesse seus olhos: disse que a rua pela qual entrou através do portão do arsenal era “sem nenhuma exceção o lugar mais sujo em que eu tenha estado” – na verdade, segundo ela, a Cidade Baixa era imunda -; as construções eram altas, “mas não tão belas nem tão arejadas como as de Pernambuco”. A curiosa e bem disposta visitante disse que andou pela maior parte da cidade tendo verificado que as casas, “na maior parte, são repugnantemente sujas”; e que, magnificamente situada, a Cidade Alta, “Pela sua elevação e pela grande inclinação da maior parte das ruas, é incomparavelmente mais limpa que o porto". (7)
Embora
sem me ater aos detalhes dos inúmeros acontecimentos políticos e
insurreicionais que marcaram a história da cidade, sempre que eu dispor de
alguma informação resultante deles que digam respeito ao quadro material da
urbe, mencionarei aqui, como é o caso desta: devido aos acontecimentos em torno
da luta pela independência do Brasil, em 19 de fevereiro de 1822, soldados e
marinheiros lusos saquearam casas e templos religiosos de Salvador. Os
acontecimentos beligerantes provocaram o êxodo da gente abastada para suas
fazendas e engenhos; e deixaram os que ficaram na cidade sob a ameaça também da
fome. Somente em julho de 1823 foi que as tropas portuguesas começaram a
evacuar Salvador.
Apesar
de sua importância como centro urbano e de pagar, assim como todo o país, um imposto
para a iluminação do Rio de Janeiro, os primeiros lampiões que principiaram a
alumiar Salvador, alimentados com óleo de baleia, foram inaugurados em 6 de
julho de 1829, na Cidade Baixa e, pouco depois, no distrito da Sé e em São
Pedro.
Em louvor de Iemanjá |
Em
consequência dos embates que o governo regencial travou contra os partidários
de Sabino Vieira, no movimento que visava a proclamar a República na Bahia que
ficou conhecido como Sabinada, o número de mortos passou de mil e cerca de
sessenta prédios foram destruídos por incêndios.
Ao
que parece por estar sobremaneira interessado em examinar os aspectos da fauna
e principalmente a flora do país, o naturalista e médico escocês George Gardner
não fez descrições substanciais da “cidade da Bahia”, quando nela aportou em
fins de setembro de 1837. Eis aqui um panorama por ele descrito:
A
cidade, também chamada S. Salvador, situa-se na baía conhecida pelo nome de
Baía de Todos os Santos. Há cidade alta e a cidade baixa: esta é edificada na
estreita faixa de terra entre o mar e a eminência em que a cidade alta se
levanta. é formada principalmente por uma comprida rua, ao mesmo tempo
estreita, mal calçada e suja. As casas na maioria são altas e as juntas à praia
avançam bastante mar a dentro. (8)
Porto dos Livros: também imperdível |
Como
parte de sua viagem pelas terras brasileiras, na manhã do dia 7 de julho de
1839 o missionário protestante norte-americano Daniel Parish Kidder desembarcou
na capital baiana. Acompanhemos um trecho de sua narrativa:
Tendo
saltado junto ao Arsenal, passamos pela cidade baixa, que se resume numa única
rua paralela à praia.
Ao
longo da Rua da Praia, encontram-se as principais casas de comércio da cidade.
Aqui se vê a alfândega, por onde passam todas as mercadorias de procedência
estrangeira; ali o Consulado pelo qual devem transitar as exportações da
província. Alguns dos trapiches existentes nas proximidades ostentam proporções
enormes e, ao que se afirma, são tos maiores do mundo [...].
A
cidade baixa não oferece atrativos para o estrangeiro. Os prédios são antigos,
conquanto apresentem aspecto alegre. A rua é muito estreita, acidentada e
pessimamente calçada. Além disso, a sarjeta fica mesmo no meio, de maneira que
a rua se torna asquerosamente imunda. (9)
Mas
não foram somente essas observações sobre o espaço urbano que Kidder registrou.
Caminhando pela cidade, notou, entre outras particularidades, que em ponto
algum a urbe se alastrava, porém, “em sua maior parte, compõe-se de apenas uma
ou duas artérias principais”. E salientou que: “A cidade tem aspecto antigo.
Grandes somas de dinheiro gastaram-se com a pavimentação das ruas, obra essa
que obedeceu, antes à necessidade de evitar a erosão que desejo de conseguir
uma superfície carroçável”. (10)
A
cidade atravessaria outro período de acentuado desenvolvimento estrutural a
partir de 1840, quando, além do estabelecimento de instituições como a Escola
Normal, foram pavimentadas as principais artérias da área comercial (Cidade
Baixa) até a Calçada do Bonfim; nivelaram-se a Rua do Sodré e a Ladeira de
Santa Tereza; fizeram-se as obras de consolidação das muralhas de arrimo da
Ladeira da Misericórdia, que também foi pavimentada; abriu-se a Rua da Vala (atual
Rua José Joaquim Seabra, mais conhecida como Baixa do Sapateiro), drenando
brejos e canalizando córregos desde a Ladeira de são Roque até o Arco da
Estrada (Arco das Sete Portas); e foi regularizado o serviço de abastecimento
de água, tendo sido inaugurados em 7 de janeiro de 1852 vinte e um chafarizes,
sendo alguns deles de caráter ornamental. (11)
Passando
pela Bahia em 10 de fevereiro de 1855, o médico alemão Robert Avé-Lallemant
ousou, segundo ele disse, chamá-la de “imponente e magnífica”. E entre outros
pormenores nos legou esta descrição daquele sítio urbano:
No
alto da costa, casas de campo, vistosos jardins, praças e o forte de S. Pedro;
em baixo, na praia, começa a verdadeira cidade, a cidade baixa; uma comprida faixa
de cidade com casas altas, ruas estreitas e sujas e intensa vida comercial.
Estende-se mais além para o norte e para o noroeste, terminando com longa fila
de habitações à beira-mar, que pouco a pouco se perdem no distante Bonfim e
Monserrate.
Em
cima, no alto, para o interior, a cidade alta, continuação alcantilada da
cidade baixa, uma babel de casas, igrejas, conventos, um caos de vielas,
praças, recantos, becos e travessas, que sobem e descem, e em cuja conexão, só
depois dalgum tempo, pode o recém-chegado descobrir alguma ordem. (12)
Dentro
do roteiro da longa viagem empreendida pelas províncias do norte do país, em 6
de outubro de 1859 desembarcou em Salvador o imperador Dom Pedro II,
acompanhado da imperatriz Teresa Cristina. Em seu diário de viajante, o
imperador não apenas fez descrições de lugares, pessoas, coisas e situações,
como também vez e outra se arriscou a fazer desenhos de alguns sítios por ele
visitados. Apesar de ser muito meticuloso e observador e de ter, ainda na
embarcação examinado uma planta da cidade, pouco nos diz Dom Pedro II
detidamente a respeito dos aspectos urbanos de Salvador. Quando descreveu o
desembarque, ocorrido depois do almoço, ele registrou que “As ruas são
estreitas e enlameadas – não muito – até à Sé Nova, ou igreja de Jesus”. (13)
Balada na Rua do Couro |
Apenas
um ano após a visita do imperador, Salvador se viu novamente envolvida por uma
série de melhoramentos: macadamizou-se a Rua da Vala; inauguraram caminhos
novos que ligaram a Fonte Nova ao Rio Vermelho, costeando o Dique do Tororó, e
o Retiro ao Engenho da Conceição.
Foi
no dia 10 de maio de 1862 que o serviço de iluminação a gás carbônico começou a
funcionar, inicialmente montado entre a Rua do Noviciado (São Joaquim) e o Cais
Dourado ou do Ouro (Praça Marechal Deodoro da Fonseca), com 96 combustores, tendo sido construído o gasômetro naquela rua. Três meses depois já eram 1475 o número de
lampiões em pleno funcionamento.
Outra
iniciativa de grande importância que marcou o crescimento da cidade foi a
concessão do serviço de transporte de carga e passageiros ocorrida em 18 de
maio de 1864, mais tarde transferida ao negociante Antônio Francisco de
Lacerda, em 1869, que montou elevadores hidráulicos ligando as partes baixa e
alta, inaugurados em 8 de dezembro de 1873 e eletrificados em 1907.
II
II
A
esta altura a evolução da urbe prosseguia com seu arcabouço delineado, tendo
morros e elevações desaparecidos para darem lugar a praças e jardins. No ano de
1878 foi aberta a Ladeira da Montanha, vista como uma “audaciosa obra de
engenharia” a ligar os dois níveis de terreno que constituíam a cidade.
As
crônicas históricas apontam o enfraquecimento da lavoura canavieira em virtude
do decreto da abolição da escravatura, o empobrecimento também dos criadores de
animais e as longas estiagens como fatores que provocaram a falta de recursos
até então destinados ao desenvolvimento material da capital baiana, tendo ela
entrado no século XX praticamente com o surto de progresso estagnado. É de se
ver, no entanto que, acompanhando o que então se processava no Rio de Janeiro e
no Recife, então as cidades que abrigavam as principais zonas portuárias do
país, igualmente em Salvador as primeiras décadas do novo século foram marcadas
por obras no porto que ampliaram a área da cidade com os sucessivos aterros
necessários para a construção do ancoradouro, obras essas que tiveram início em
novembro de 1906 e se prolongaram até maio de 1913. Como ocorreu naqueles dois
centros, tais obras motivaram uma era de bota-abaixo em Salvador, algo tão
marcante no período da belle époque no Brasil, durante o qual nacos
consideráveis do traçado colonial e imperial e significativas construções
históricas desapareceram do cenário urbano. Antes que as máquinas terminassem
os seus serviços na área portuária soteropolitana, grandes trabalhos realizados
de 1912 a 1914 promoveram a abertura da Av. Sete de Setembro, desde o Largo do
Teatro (atual Praça Castro Alves,
seguindo pelo caminho da Vila Velha, até o Farol da Barra, entre outros
proclamados melhoramentos e modernização do centro da cidade, conforme
apregoava o ideário nacional, o que levou à destruição, entre outros, das
igrejas da Ajuda, a de São Pedro e a do Rosário de João Pereira. E de roldão as
demolições prediais havidas nesse período acabou de forma compulsória
expulsando para áreas bastante afastadas do centro urbano, muita gente que não
podia bancar mais a alta dos preços dos aluguéis, porque, conforme bem observou
Mário Augusto da Silva Santos, um traço “marcante dessa modernização foi sua
ação predatória, no sentido de demolir muitas unidades habitacionais, sem a
devida reposição”, (14) com o agravante de que os distritos centrais eram os espaços
mais densamente povoados. E será o avanço
em direção aos arrabaldes (Barra, Graça, Itapagipe, Mares, Brotas, Liberdade,
São Caetano, Pituba e Itapoã) que fundamentalmente marcará o crescimento da
cidade até pelo menos a década de 1950. De acordo com as informações da
Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, no decênio 1940-1950, “o
mais rápido crescimento populacional ocorreu no quadro suburbano, que cresceu
em cerca de 72%, enquanto o urbano aumentou apenas em 40%”. (15)
Ocupação já! |
Plano Inclinado Gonçalves |
Tenho
em mãos três publicações que são verdadeiros achados para os estudiosos da
história do desenvolvimento urbano de Salvador e das transformações pelas quais
essa cidade passou. A primeira delas trata-se de um álbum apropriadamente
intitulado Bahia de ontem e de hoje, lançado em 1953, durante a gestão do
prefeito Osvaldo Veloso Gordilho, pela Diretoria do Arquivo, Divulgação e
Estatística da Prefeitura do Salvador. É o dito álbum um pequeno e breve primor
no que diz respeito à ideia de sua concepção, que é simples e direta: com
breves legendas, nos são revelados alguns cenários da cidade registrados em
diferentes épocas que, postos lado a lado, nos fazem ver as mudanças que
ocorreram até aquele momento. Já no texto de apresentação, Altamirando Requião,
então membro da Academia de Letras da Bahia, nos oferta uma narrativa que é um
misto de lamento pelas transformações e espanto com o que foi posto no lugar:
Esta
metrópole de quatrocentos e alguns anos envelheceu, remoçando-se... A pouco e
pouco, foi perdendo os traços vivos de sua ancianidade e as tintas fortes de
sua feição colonial, nas demolições e nas remodelações, que fizeram da Praça da
Parada a majestosa Praça Municipal; que transformaram as gargantas
circumvizinhas da Catedral e do Palácio do Arcebispo, na arejada e formosa
Praça da Sé; que substituiram a centenária Rua dos Mercadores na opulenta Rua
Chile; que contrastearam a “Casa dos Sete Candieiros” com o arranha-céo (do Ipase), ora em
conclusão estonteante [...]
Foi-se a igrejinha branca dos Nobregas e dos Aspilcuetas, e surgiu a Capela leviana de Júlio Brandão. Foi-se a pesada Matriz do Largo de S. Pedro e ficou, adeante, na Piedade, a silhueta esguia levantada pelo arquiteto Rossi Batista. Foi-se a vetusta Casa da Câmara, do vetusto Ginga da Cadeia, e sobreviveu o Palácio renascentista da Prefeitura. desapareceu a Casa do Governo, levantada pelo 1º e reconstruída, em pedra e cal, pelo 3º Governador, e lá se ostenta, em seu lugar, o Palácio Rio Branco. Foram-se a Relação e a Casa da Moeda, e brotaram do solo, como se por milagres de uma vegetação portentosa, circundante, os Edificios Lacerda e da Imprensa Oficial.
Bahia,
que ainda és a da Cruz do Pascoal e a do Cruzeiro do São Francisco; que ainda
permaneces a das Portas do Carmo e a dos Quinze Mistérios; que ainda relutas,
contra os alviões do progresso, nas fortalezas conservadoras de tua Quitandinha
do Capim e da tua Rua dos Marchantes; até quando, impávida, resistirás, ainda
para que não te convertam numa grande Cidade Maravilhosa, igual às outras
maravilhosas cidades do Brasil?. (16)
E
folheando o álbum vemos o quanto que “os alviões do progresso” redesenharam
e/ou deformaram vários recantos da cidade, como a Praça Castro Alves – era o
antigo Largo do Teatro por causa do Teatro São João, que foi consumido pelo
fogo em 1918 -, o Palácio Rio Branco, a Ladeira de São Bento, a Praça 13 de
Maio e a já mencionada Rua Chile, que já se chamou Rua Direita do Palácio.
Ainda
durante a gestão do prefeito Osvaldo Veloso Gordilho veio a lume o Roteiro
turístico da cidade do Salvador, recheado com fotos, desenhos e
mapas. No texto em que assinou, datado de fevereiro de 1952, o burgomestre
Gordilho destacou que Salvador não parara no tempo, como Olinda e Ouro Preto; e
que ela “Possúe todas as características de uma metrópole, civilizada e
próspera, com um porto movimentado e um grande comércio”. (17) Mais adiante – e antes de o leitor
ser apresentado a inúmeras descrições de monumentos, lugares, festas, desenhos
de Lygia, fotografias, mapas, horários de partida de bondes e toda sorte de
informações úteis aos que buscavam a cidade naqueles dias, lemos essa quase
nota explicativa saída da pena de Albano Frederico Marinho de Oliveira que para
mim continua soando como uma verdade dos dias de agora:
Bahia,
terra única. Dentro da grandeza do presente, com seus arranha-céus , seus
jardins, o passado está bem vivo, nas cousas que ainda restam [grifo meu]:
solares, igrejas, fortes, “bahianas”, efós, acarajés e tantas outras tradições. (18)
A
terceira publicação que merece ser apreciada é esta coisa primorosa intitulada
Lembranças do Brasil: as capitais brasileiras nos cartões-postais e álbuns de
lembranças, organizada por João
Emilio Gerodetti e Carlos Cornejo. Nela nos deparamos com vários flagrantes da
capital baiana registrados principalmente nas três primeiras décadas do século
XX, como um que os autores acreditam que remonte a 1905, no qual aparece a área
vizinha ao antigo prédio da alfândega – o prédio depois seria convertido no
atual Mercado Modelo – que, tempos depois, seria aterrada. São igualmente
impressionantes os postais que revelam trechos da antiga e extensa Av. Sete de
Setembro que permanece sendo uma das mais importantes artérias da cidade.
Não serão pequenos os esforços dos administradores da capital baiana para, ao longo de praticamente todo o século XX, promover a expansão do tecido urbano; e, nesse movimento, a cidade antiga foi sendo também ela descaracterizada e ocupada por construções outras que emulavam as da cidade nova.
Se era verdade, como escreveu Gabriel Soares de Souza no seu Tratado descritivo do Brasil em 1587 que, quando chovia, os céus da Bahia exibiam “formosas mostras de nuvens de mil cores e grande resplendor”, (19) foram negras as que pairaram sobre o firmamento soteropolitano num largo período do século passado, tempo esse em que as picaretas ditavam o compasso pondo abaixo inúmeras edificações para que, entre 1938 e 1942, durante a administração do prefeito Durval Neves da Rocha, fosse aberta a Praça da Sé.
Não serão pequenos os esforços dos administradores da capital baiana para, ao longo de praticamente todo o século XX, promover a expansão do tecido urbano; e, nesse movimento, a cidade antiga foi sendo também ela descaracterizada e ocupada por construções outras que emulavam as da cidade nova.
Se era verdade, como escreveu Gabriel Soares de Souza no seu Tratado descritivo do Brasil em 1587 que, quando chovia, os céus da Bahia exibiam “formosas mostras de nuvens de mil cores e grande resplendor”, (19) foram negras as que pairaram sobre o firmamento soteropolitano num largo período do século passado, tempo esse em que as picaretas ditavam o compasso pondo abaixo inúmeras edificações para que, entre 1938 e 1942, durante a administração do prefeito Durval Neves da Rocha, fosse aberta a Praça da Sé.
O
sociólogo Gilberto Freyre que em 1926 escreveu um poema intitulado “Bahia de todos os
santos e de quase todos os pecados”, que tem um trecho em que ele diz que ali
as casas aparecem “trepadas umas por cima das outras”, como “gente se
espremendo pra sair num retrato de revista ou jornal” (20) , publicou no periódico A Manhã, do
Rio de Janeiro, no dia 29 de janeiro de 1944, um artigo sob o título
“Agradecimento aos baianos” no qual disse considerar a Bahia “a cidade mais
verdadeiramente cidade do Brasil”. (21). E por
falar em poemas, o alagoano Jorge de Lima escreveu outra coisa bem gostosa de
ler tomando a cidade de Salvador como tema e publicou-a em 1927. Em “Bahia de
todos os santos” – e não é tarde para dizer que durante muito tempo quem dizia
Bahia, dizia Salvador – o bom do Jorge disse assim:
És
tão cheia de altos e baixos,
Bahia,
gostosa dos dendês, jilós acaçás e pimentas-de-cheiro.
Lamento
o mau gosto dos teus turistas
que
te conhecem de oitiva,
e
não vão além de tua Rua Chile, asfaltada, de tuas avenidas
que
o Seabra alargou. (22)
O
Seabra em questão é o mesmo José Joaquim Seabra que lá pelas tantas, naquele
poema de Gilberto Freyre, é mencionado nestes termos, depois que a Rua Chile é
citada: “viva J. J. Seabra/ morra J. J. Seabra”. (23) E essa, digamos, indignação de Freyre se deve, creio eu, pelo fato de que foi durante as administrações de J. J. Seabra no governo da Bahia (1912-1916/1920-1924) e na do seu aliado Antonio Muniz (1916-1920), que Salvador perdeu uma parte significativa do seu patrimônio edificado. Em virtude de disputas políticas pelo governo estadual - chegou-se a querer transferir a capital para Jequié com o fito de postergar as eleições -, em janeiro de 1912 parte da cidade foi bombardeada. O bombardeio destruiu o Palácio do Governo e atingiu o Teatro São João e sobrados da Rua Chile; e provocou um incêndio que consumiu a Biblioteca Pública, causando a perda de livros e documentos raros porque era nela que também funcionava o Arquivo Público da Bahia. Os desdobramentos desse janeiro tenebroso resultaram na chegada de Seabra à chefia do executivo estadual. O seabrismo é um dos capítulos mais negros da memória urbana da capital baiana. Durante as administrações de J. J. Seabra foi aberta a Av. Sete de Setembro e promovidas, claro, várias demolições que levaram de roldão, entre inúmeras outras edificações, a Igreja de São Pedro e a de Nossa Senhora da Ajuda.
Foi
ainda durante a efervescente década de 1940 – é de 1943 o icônico Edifício
Oceania – que aportou em Salvador e por ela se apaixonou completamente – como,
aliás, ocorreu com, entre outros forasteiros, o argentino Hector Julio Paride
Bernabó, conhecido como Carybé – o francês Pierre Verger, que nos legou uma
quantidade enorme de fotografias retratando a cidade – uma pequena mostra de
sua produção dos anos de 1946, 1947 e 1949 foi reunida em forma de vinte
cartões-postais e lançada como estreia da Coleção Ponto de Vista pela Corrupio
Edições, de Salvador, em 1992. Verger, que amava a Bahia fervorosamente,
retratou não só o espaço físico baiano, mas também os tipos humanos, as festas,
as comidas e tudo o mais que enchia os seus olhos de estrangeiro faminto de
tantas coisas.
Um
exame bem acurado da realidade socioeconômica de Salvador durante o período que
vai da década de 1930 até meados de 1970 pode ser verificado no conjunto de
artigos que constituíram a obra Bahia de todos os pobres, lançada em 1980, cujos
estudos buscaram situar a capital baiana e sua Região Metropolitana dentro de um
quadro de transformações que flagraram uma época de baixa na economia agrícola
e a industrialização que será impulsionada pela criação da Superintendência
para o Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e, principalmente, da Petrobras. Os
autores da coletânea de artigos deixam ver, em seus enfoques, a cidade de Salvador para
além dos cenários turísticos das praias, dos berimbaus e orixás, revelando que
a riqueza que foi chegando produziu também pobreza, como a favela Nova Brasília
que, em dado momento da narrativa nos é apresentada assim: “Em Nova Brasília,
até agora existe apenas um serviço precário de fornecimento de luz, que passou
a existir depois que alguns moradores começaram a puxar a força da rua
diretamente [...] A água é obtida através de cisternas que recolhem água da
chuva”. (24) Faltou a esse conjunto de ensaios pelo
menos um estudo que nos pusesse em contato com outros grupos marginalizados da
capital, como as prostitutas que trabalhavam em pontos como o Bar Flor de São
Miguel, que o xilogravurista alemão Karl Heinz Hansen – ele depois adotaria o
nome artístico Hansen Bahia – conheceu em meados da década de 1950 – existiam dezenas
de prostíbulos no centro antigo de Salvador nos anos 50 e 60 do século passado –
e do qual evocou esta lembrança:
Maria
Helena canta: “Bahia, terra da felicidade”. Maria Helena tem quinze anos e já
abortou duas vezes, e Maria Helena, como todas as crianças de sua idade, brinca
com bonecas. “Quando era pequena”, conta ela, “não tinha bonecas, a mãe também
fazia vida. Mas, agora, que possuo dinheiro meu, comprarei minha boneca”. (25)
Hora de aprender, aprender: professora Lúcia Góes sabe das coisas. Obrigado pelos ensinamentos, minha querida! |
Eu e a professora Lúcia Góes em cliques feitos por Beth Fernandes |
Amigas de todas as horas: Lúcia Góes, Beth Fernandes e Eliana Pedroso |
No rastro
dessa economia emergente, a cidade de Salvador e as do seu entorno verão crescerem não somente seus contingentes
populacionais bem como a expansão das favelas em contraste com os prédios de
alto padrão que ditarão uma norma de ocupação, principalmente, das zonas próximas
às praias e ao centro histórico, nas derradeiras décadas do século XX,
realidade essa que se manterá firme e determinante já no novo milênio,
confirmando um diagnóstico feito pelo escritor Jorge Amado ainda na década de
1970, quando ele relatou no volume da Coleção Mercator dedicado à Bahia, que,
em Salvador, “Ao lado dos arranha-céus, dos edifícios moderníssimos, da
arquitetura audaciosa e rica, se levanta o mundo dos Alagados, audaciosa e
mísera arquitetura, cidade de palafita sobre a lama, o mangue e o mar, onde a
pobresa (sic) é infinita a resistência do homem, sua capacidade de viver”. (26)
III
III
Assim
como acontece com as obras literárias muito famosas e comentadas, de algumas
cidades, como Salvador, ficamos sabendo e/ou conhecendo detalhes – ao menos os
detalhes que interessam ao setor turístico divulgar – sem nunca termos nelas
pisado. De modo que, quando eu dei por mim em plena capital baiana pela primeira
vez, em outubro de 2013 – eu voltaria a revê-la em pedra, praia, casario e
quitutes em dezembro de 2017 -, eu já estava, digamos, bastante familiarizado
com vários aspectos de sua singular beleza e, ainda assim, quando me vi ali na
Cidade Baixa e na Cidade Alta e nas águas da Baía de Todos os Santos mirando
todo aquele cenário, eu percebi que tinha chegado o tempo da alegria aos meus olhos
e ao meu pensamento.
Não consegui
conter o espanto ao me deparar na parte de ocupação mais remota daquele centro
urbano com prédios muito degradados, de modo que a alegria que me tomara quando
lá cheguei, principiou a dar lugar a uma tristeza em conta-gotas e a uma
preocupação renitente com o futuro daquelas construções. Difícil acreditar que,
àquela altura do campeonato, parte do patrimônio edificado da mais antiga
cidade brasileira e da primeira capital do país estivesse naquele estado de
deterioração. “Como pode ser isso?”, eu me perguntava. “Será que os órgãos de
proteção e salvaguarda do patrimônio não estão sabendo disso?”, ingenuamente eu
me dizia. E a cada logradouro percorrido e a cada recanto atravessado eu fui me
certificando de que, para além das bonitas imagens que eu vira com frequência
na televisão e mesmo nos cenários registrados em cartões-postais, aqui e ali
uma parede expunha suas fraturas, aqui e ali escoras faziam o possível para
segurar fachadas inteiras de velhos sobrados. Era nítido e cristalino que, no
emaranhado das ruas do sítio histórico, e até no colorido e muito procurado
Pelourinho, que é vendido ao mundo como um resumo de toda a cidade, Salvador
necessitava urgentemente de alguém e/ou algo que a salvasse.
Fiz, em princípio, um roteiro típico de turista, percorrendo os espaços do Pelourinho subindo pelo Elevador Lacerda, vi o Mercado Modelo, o Forte de Santo Antônio. Provei da boa comida baiana. Adentrei em igrejas e museus. Naveguei nas águas da baía mirando a cidade de longe, vendo com que força e vigor construções novas tomaram espaços da antiga urbe. Mas os meus olhos não são olhos de turista que só se contentam e se dão por satisfeitos ao contemplar coisas belas. Meus olhos querem o além disso – e até o que disfarçadamente se busca esconder.
Fiz, em princípio, um roteiro típico de turista, percorrendo os espaços do Pelourinho subindo pelo Elevador Lacerda, vi o Mercado Modelo, o Forte de Santo Antônio. Provei da boa comida baiana. Adentrei em igrejas e museus. Naveguei nas águas da baía mirando a cidade de longe, vendo com que força e vigor construções novas tomaram espaços da antiga urbe. Mas os meus olhos não são olhos de turista que só se contentam e se dão por satisfeitos ao contemplar coisas belas. Meus olhos querem o além disso – e até o que disfarçadamente se busca esconder.
Fui me
afastando do sítio histórico percorrendo ruas e ladeiras de dia e de noite,
olhando em derredor impressionado com a existência de tantos edifícios de alto
padrão erguidos em encostas contrastando com cenários favelizados por
construções desordenadamente ocupando morros.
Tomei
o rumo da Igreja Basílica de Nosso Senhor do Bonfim. Era uma sexta-feira, “O dia
maior”, me disse uma senhorinha que ia chegando, Dona Marina do Rosário. Muita
gente muita se juntando para entrar no templo e receber a bênção do Padre João
de Deus, como fez Ernani Neves, meu companheiro naquela viagem. O gradil da igreja estava quase todo ele revestido com as famosas fitinhas do Senhor do Bonfim, o
Oxalá, o maior dos orixás do candomblé na dupla pertença das religiões de
matriz africana: amarre uma fita no pulso e faça um pedido. No adro, de onde se
tem uma visão ampla dos morros da cidade, pais de santo e baianas, também
ricamente trajadas e empunhando ervas, abordam os passantes querendo ganhar
algum trocado oferecendo benzeduras – ouvi dizer que o padre ordenou que eles
não tomassem as escadas da basílica para também ali não importunarem os
visitantes. Daquele templo, daquele culto e daquele recanto acolhedor de
Salvador, Afranio Peixoto assim escreveu em seu Breviário da Bahia: “Não sei me
decidir: eu que, infelizmente, não tenho fé, mas que, felizmente, adoro o Senhor
do Bonfim”. (27)
Na manhã
de um domingo o meu destino foi o Dique do Tororó, onde imponentes e senhores
do lugar, os orixás “flutuam” na água. Tudo arrumadinho no entorno do dique:
crianças brincando, pedalinhos, pesca, reunião de famílias. Ali defronte o
Estádio da Fonte Nova preparado para receber jogos da Copa do Mundo de Futebol
de 2014. Quantos milhões não foram gastos ali, hein?! De um lado o estádio novo
de muitos cifrões, do outro lado, construções desordenadas preenchendo um
morro, ambos retratos de uma cidade desigual.
Tanta coisa que eu vi em Salvador naquele outubro de 2013 – o que não pude ver por dentro foi o Forte de São Marcelo, que estava fechado para visitação -: a estação ferroviária; casarões deteriorados no Largo do Bonfim; a Igreja de São Joaquim que, segundo me informou o porteiro, que disse que não gostava de dizer o seu nome, abrigava o colégio militar desde o ano anterior; a Praça Visconde do Cayru; o prédio modernoso da Prefeitura fazendo feia figura no conjunto arquitetônico de outro tempo; a Praça da Sé onde uma Subway exibia sua logomarca encobrindo parte da fachada de um sobrado; o casario antigo vivo, ocupado por lojas, restaurantes e casas lotéricas; obras de calçamento na Rua das Portas do Carmo e reordenamento no entorno do Forte de Santo Antônio; roda de capoeira na Praça da Sé; prédio abandonado na esquina da Av. Sete de Setembro com o Largo de São Bento; a serena Lagoa do Abaeté; o magnífico Gabinete Português de Leitura; a belíssima fachada da igreja da Ordem Terceira de São Francisco... Poxa, como eu andei!
Tanta coisa que eu vi em Salvador naquele outubro de 2013 – o que não pude ver por dentro foi o Forte de São Marcelo, que estava fechado para visitação -: a estação ferroviária; casarões deteriorados no Largo do Bonfim; a Igreja de São Joaquim que, segundo me informou o porteiro, que disse que não gostava de dizer o seu nome, abrigava o colégio militar desde o ano anterior; a Praça Visconde do Cayru; o prédio modernoso da Prefeitura fazendo feia figura no conjunto arquitetônico de outro tempo; a Praça da Sé onde uma Subway exibia sua logomarca encobrindo parte da fachada de um sobrado; o casario antigo vivo, ocupado por lojas, restaurantes e casas lotéricas; obras de calçamento na Rua das Portas do Carmo e reordenamento no entorno do Forte de Santo Antônio; roda de capoeira na Praça da Sé; prédio abandonado na esquina da Av. Sete de Setembro com o Largo de São Bento; a serena Lagoa do Abaeté; o magnífico Gabinete Português de Leitura; a belíssima fachada da igreja da Ordem Terceira de São Francisco... Poxa, como eu andei!
Entrei
no sebo Porto dos Livros na tardinha de um sábado. E me demorei um bocado ali
garimpando livros e discos e trocando figurinhas com sua proprietária Cristina
Fonseca que, na ocasião, estava em companhia de sua amiga Luana Monteiro. Coisa
boa tê-las conhecido. E para ser preciso, o Porto dos Livros é mais do que um sebo, é um espaço de agito cultural.
Da janela
do quarto do hotel, em Amaralina, eu mirava o mar pensando em cada pequena
coisa com que me ocupara naquela viagem e me dizendo que era só uma questão de
tempo para que eu voltasse a pisar naquele chão.
Desde
que eu regressei da viagem feita em 2013, me mantive com a ideia fixa de voltar
para lá. Não me perguntem por que, afinal, tantas coisas na vida não têm
explicação, não é mesmo? Mas eu vou me arriscar a dar um esclarecimento. Fui à
capital baiana pela primeira vez carregando na bagagem um punhado de
referências lítero-musicais alinhavadas pelo meu ofício de pesquisador. E quando
eu vivenciei a cidade por alguns dias, arregalando os olhos tanto para os seus
encantos como para os seus desencantos, para as suas coisas belas como para as
suas coisas sujas e feias, me vi tomado por um sentimento de pertencimento
àquela terra que eu jamais poderia imaginar que sentiria. “Por que isso?”, eu
ainda hoje me pergunto. Talvez a condição talássica da cidade seja a
responsável por essa atração. Talvez o passado detido em seu presente também. Talvez
as gentes que vi por lá tenham me deixado preso às suas peculiaridades. De modo
que uns versos da canção “Na Baixa do Sapateiro”, do Ary Barroso – justamente os
que dizem assim: “Ô Bahia, Bahia que não me sai do pensamento” – ficaram ecoando
em meus ouvidos como que me dizendo que eu precisava e deveria voltar para lá. E
assim foi que, quatro anos depois da primeira incursão, eu voltei à capital
baiana - desta vez sozinho - sequioso de rever paisagens e sobretudo de percorrer outros caminhos.
Cheguei
a Salvador no comecinho da tarde do dia 8 de dezembro, em pleno feriado
dedicado à Nossa Senhora da Conceição. Havia uma agitação tremenda na Cidade
Baixa porque na Bahia vigora uma propensão para tudo carnavalizar, inclusive o
lado profano das festas religiosas.
Almocei
um pouco afastado da muvuca. Em seguida, entrei no Elevador Lacerda – nesse dia
não estavam cobrando os R$ 0,15 do acesso – querendo encontrar hospedagem no
Pelourinho, o que não demorou a acontecer: em pleno Largo da Sé eu consegui um
quarto individual no Hostel Pelourinho. Sem perda de tempo eu acomodei os meus
troços no quarto e voltei para a rua a fim de começar a me esbaldar na cidade
no primeiro dos três dias que eu passaria ali.
Retornei
à Cidade Baixa sem acessar o elevador. A caminho da Igreja de Nossa Senhora da
Conceição da Praia, onde ainda ocorriam missas pelo dia festivo, observei que
várias das ruínas que eu vira em 2013 permaneciam por ali enfeiando o
cartão-postal. Ao lado esquerdo dessa igreja uma obra de restauração estava em
andamento com o fito de recuperar os dois edifícios bastante deteriorados que
se encontravam em vias de desaparecer da paisagem soteropolitana. Pertinho dali,
nos arredores do muito procurado Mercado Modelo, como a Rua Portugal, prédios
em ruínas – não por acaso ladeados por estacionamentos para automóveis, porque
poucas coisas são tão lucrativas neste nosso tempo do que esses empreendimentos
– marcavam horrivelmente o cenário e davam um tom melancólico ao meu passeio.
Nessa minha segunda viagem a Salvador eu me permiti experienciar alguns passeios que não fizera anos antes. Eu percorri a pé, por exemplo, de uma ponta a outra, a Av. Sete de Setembro, a Av. José Joaquim Seabra e todo o trajeto do Pelourinho até a feira livre de São Joaquim, o que me possibilitou dar de cara não só com outras ruínas e flagrantes outros de deterioração e deformação da estrutura predial e paisagística da cidade antiga, mas também certos encantos que os meus olhos não encontraram anos atrás, como os planos inclinados – eu até embarquei no Plano Inclinado Gonçalves. Não encontrei o Porto dos Livros aberto. No mesmo dia em que eu busquei esse sebo, eu prestigiei a feira de antiguidades e artes montada na Praça 2 de Julho, no bairro do Campo Grande; também vi que o entorno da Igreja e Mosteiro de São Bento permanece degradado, com construções abandonadas; e ainda sacolejei o esqueleto no evento Coro na Rua, na Rua do Couro, que reuniu uma galera animadíssima.
Nessa minha segunda viagem a Salvador eu me permiti experienciar alguns passeios que não fizera anos antes. Eu percorri a pé, por exemplo, de uma ponta a outra, a Av. Sete de Setembro, a Av. José Joaquim Seabra e todo o trajeto do Pelourinho até a feira livre de São Joaquim, o que me possibilitou dar de cara não só com outras ruínas e flagrantes outros de deterioração e deformação da estrutura predial e paisagística da cidade antiga, mas também certos encantos que os meus olhos não encontraram anos atrás, como os planos inclinados – eu até embarquei no Plano Inclinado Gonçalves. Não encontrei o Porto dos Livros aberto. No mesmo dia em que eu busquei esse sebo, eu prestigiei a feira de antiguidades e artes montada na Praça 2 de Julho, no bairro do Campo Grande; também vi que o entorno da Igreja e Mosteiro de São Bento permanece degradado, com construções abandonadas; e ainda sacolejei o esqueleto no evento Coro na Rua, na Rua do Couro, que reuniu uma galera animadíssima.
Tomei
parte em algumas das atividades apresentadas pelo projeto Pelourinho Dia e
Noite, promovido pela Prefeitura Municipal de Salvador com o intuito de fazer a
população em geral e não apenas os turistas vivenciar com mais intensidade a
área do Pelourinho, com toda a riqueza histórica, artística e cultural que ele
encerra: vi o desfile da Banda Didá; acompanhei eufórico o musical de rua
Circuito Jorge Amado, uma experiência, poxa, incrível; e assisti à palestra “Afrodescendência:
religião e poder” ministrada pela bonita, bem articulada e muito simpática
professora Lúcia Góes numa tenda montada no Terreiro de Jesus como parte da Maratona
Clic, um concurso-relâmpago de fotografias por celular para jovens de 14 a 24
anos de idade que, após as palestras, têm o desafio de, em uma hora, divididos
em grupos, fazer um registro fotográfico sobre um dado tema.
Abordei
a professora Lúcia Góes parabenizando-a pela palestra e por apoiar a iniciativa
do projeto. Ela me apresentou à Eliana Pedroso, diretora de Gestão do Centro
Histórico, que na noite do dia anterior, ao término da apresentação do musical
de rua, no restaurante Cantina da Lua, fez um breve discurso convocando as
pessoas a não deixarem de aproveitar as atividades do projeto destacando: “O
Pelourinho é seguro, é iluminado e tem estacionamento”. Lúcia e Eliana eram um
entusiasmo só.
Entre
a Salvador antiga e a Salvador dos prédios e empreendimentos luxuosos – o Fasano
está finalizando as obras do hotel que abrirá com vistas para a Praça Castro
Alves num prédio da década de 1930 onde funcionou o jornal A Tarde – a pobreza continua sendo vista na quantidade enorme dos moradores de
rua que estão espalhados por vários espaços da cidade, como na Praça da Piedade.
Nos
dias que passei em Salvador em dezembro passado, o assunto do momento, com
direito a capas de jornais e reportagens na TV, era o caso envolvendo Mãe Stela de Oxóssi e a sua companheira Graziela Domini que, para alguns era a responsável pelo
fato de a ialorixá ter abandonado o Terreiro Ilê Opô Afonxá.
No final
da tarde do sábado 9 de dezembro o céu ficou cinzentamente escuro no
Pelourinho. Parecia que era um tufão que estava se formando ali. Alguém falou
até em Armagedon. E não eram poucas as pessoas que filmavam o fenômeno climático
com celulares. E choveu sobre a capital baiana, dispersando a multidão que
enchia aquelas ruas seculares.
Noite
fria aquela. E no dia seguinte pela primeira vez eu vi Salvador amanhecer sem a
luz máscula do sol a intensificar seu colorido. Manhã cinzenta. E a Baía de
Todos os Santos como que em dia de luto, monocromática. Da varanda do hostel vi
uma “baiana” – pelo menos pela fantasia ela era baiana – feliz da vida
recebendo dinheiro de um grupo de turistas idosos e estrangeiros que pareciam
ser alemães, pela fala que ouvi do guia diante da estátua do bispo Dom Pedro
Fernandes Sardinha.
Quando,
na segunda-feira, pela manhã, eu comecei a deixar Salvador rumando para outras
paragens de uma longa viagem, senti que parte da cidade iria continuar dentro
de mim sempre me dizendo que eu poderia voltar a qualquer tempo para rever a outra, que ficara por lá. É que algumas cidades que conhecemos ficam todo tempo a nos chamar para que a elas voltemos. E é exatamente isso que Salvador faz comigo.
Ah, mestre Dorival Caymmi, eu não tenho razão nenhuma para negar isso: eu já estou morrendo de saudade da Bahia.
Ah, mestre Dorival Caymmi, eu não tenho razão nenhuma para negar isso: eu já estou morrendo de saudade da Bahia.
Notas:
1- Enciclopédia
dos Municípios Brasileiros. Vol. XXI, p. 185.
2- Id. Ibid. p. 186.
3- Gaspar Barleaus. História dos feitos recentemente praticados, p. 79.
4- Nestor Goulart Reis. Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial, p. 43.
5- Luiz dos Santos Vilhena. Recopilação de noticias soteropolitanas e brasilicas. Livro I.
Carta
primeira, p. 34-35.
6- Johann Moritz Rugendas. Viagem pitoresca através do Brasil, p. 75.
7- Maria Grahan. Diário de uma viagem ao Brasil. Citações por ordem de aparição: p.
164, 165, 165, 168 e 170.
8- George Gardner. Viagem ao interior do Brasil, principalmente nas províncias do Norte e
nos distritos do ouro e do diamante durante os anos de 1836-1841, p. 47.
9- Daniel Parish Kidder. Reminiscências de viagens e permanências nas províncias do Norte do
Brasil: compreendendo notícias históricas e geográficas do Império e das
diversas províncias, p. 23.
10- Id. Ibid. p. 25.
11- Enciclopédia
dos Municípios Brasileiros. Vol. XXI, p. 208 e 209.
12- Robert Avé-Lallemant. Viagens pelas províncias da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe: 1859,
p. 22.
13- Dom Pedro II. Viagens pelo Brasil: Bahia, Sergipe, Alagoas, 1859/1860, p. 53.
14- Mario Augusto da Silva Santos. “Habitação em
Salvador: fatos e mitos”. In Stella Bresciani (org.). Imagens da cidade – séculos XIX e XX, p. 103.
15- Enciclopédia
dos Municípios Brasileiros. Vol. XXI, p. 223-224.
16- Altamirando Requião. “Bahia de ontem e de hoje”
(apresentação). In Bahia de ontem e de
hoje, p. 1, 2 e 3.
17- Oswaldo Veloso Gordilho. In Roteiro turístico da cidade do Salvador,
p. 10.
18- Albano Frederico Marinho de Oliveira. In Roteiro turístico da cidade do Salvador,
p. 10.
19- Gabriel Soares de Souza. Tratado descritivo do Brasil em 1587, p. 133.
20- Gilberto Freyre. “Bahia de todos os santos e
de quase todos os pecados”. In Bahia e
baianos, p. 15.
21- Gilberto Freyre. “Agradecimento aos baianos”.
In Bahia e baianos, p. 133.
22- Jorge de Lima. “Bahia de todos os santos”. In Poesia completa. Vol. I, p. 79.
23- Gilberto Freyre. “Bahia de todos os santos e
de quase todos os pecados”. Op. cit. p. 18.
24- Angela Ramalho Viana. “Estratégias de
sobrevivência num bairro pobre de Salvador”. In Guaraci Adeodato Alves de Souza
e Vilmar Faria (orgs.). Bahia de todos os
pobres, p. 189. A autora nos informa que o seu trabalho de campo foi realizado no período de julho e agosto de 1976.
25- Hansen Bahia. Flor de São Miguel. p.. 18.
26- Jorge Amado. Bahia colorida, p. 10.
27- Afranio Peixoto. “Senhor do Bonfim”. In Breviário da Bahia, p. 129.
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O descaso em face ao patrimônio histórico, parece ser de caráter geral, haja visto, que em são luis do Maranhão, casarões que deveriam estarem sendo restaurados pelo IPHAN, continuam em pleno abandono, caindo aos pedaços. Recentemente, MP Federal entrou com uma ação civil publica, para impedir e punir estado e seus responsáveis por estarem utilizando este casarões como estacionamentos privados. é um descaso a historia de cada cidade e do Brasil.
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