22 de junho de 2019

José Luiz Mota Menezes: um amante quase todo fiel ao Recife


Por Clênio Sierra de Alcântara

Foto: Arquivo do Autor
O professor José Luiz Mota Menezes no auditório do Museu do Estado de Pernambuco antes de começar a palestrar sobre o seu novo livro



Alagoano da cidade do Pilar, onde nasceu no dia 19 de março de 1936, o urbanista, arquiteto e historiador José Luiz Mota Menezes é um desses forasteiros que emigraram para a capital pernambucana e nela construíram uma carreira sólida e gloriosa, como ocorreu também com o paraibano Ariano Suassuna e o norte-rio-grandense Nilo Pereira, intelectuais, como ele, de boa e invejável cepa.


Amigo das minúcias e dos detalhes o professor Zé Luiz, como eu costumo chamá-lo, o Vovôgode, como o chama um seu neto, possui uma lista enorme de bons serviços prestados a Pernambuco, em geral, e ao Recife, em particular, com uma série de estudos criteriosos que tratam da formação do universo recifense desde os seus primórdios, no século XVI, e das incessantes transformações pelas quais esse burgo passou e vem passando ao longo de todo esse tempo.


Os oitenta e três anos de vida do professor Zé Luiz não fizeram diminuir nele o seu grande interesse e o seu empenho de se manter com a pena em dia, pesquisando, explicando e registrando vários aspectos da memória urbana do Recife em estudos que sempre ganham o status de obras referenciais.


No último dia 29 de maio eu compareci às dependências do Museu do Estado de Pernambuco, na Av. Rui Barbosa, no bairro das Graças, no Recife, para prestigiar mais uma vez o lançamento de uma obra de autoria do incansável professor Zé Luiz. Tratou-se do livro Palacetes e solares dos arredores do Recife, que contou com o patrocínio do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura) e a produção do Bureau de Cultura.


O que me levou àquela instituição cultural naquele comecinho de noite de uma para mim muito movimentada quarta-feira, não foi só uma, digamos, gratidão ao professor Zé Luiz pelo tanto que eu já aprendi com os textos que ele escreveu não apenas sobre o território recifense, como também a respeito de Olinda e da capital paraibana, e que aparecem perfilados nas estantes de minha biblioteca. Fui até o Museu do Estado de Pernambuco, naquele dia, levado igualmente por um sentimento de admiração e porque não queria perder a oportunidade de estar ao lado e de ouvir um dos mais brilhantes intelectuais que eu já conheci e que é possuidor, como diria o meu amigo Edson Nery da Fonseca, de um sense of humour admirável.


Como demorasse para chegar outra leva de livros – a organização do evento subestimou a quantidade de pessoas que afluiriam para ali a fim de saudar e adquirir a obra -, o autor resolveu antecipar a apresentação do seu estudo falando ao público que o aguardava no auditório.


Pouco depois do início de sua palestra, que não foi demorada, ocorreu um problema no microfone e o professor Zé Luiz levou a coisa no gogó mesmo. De modo muito didático, como é característico de suas performances, o ilustre pilarense foi falando e exibindo imagens do material do seu estudo – “A imagem é tudo”, ele disse, afirmando que é discípulo da escola europeia de design -, deixando o tempo todo transparecer nos seus gestos, na modulação de sua voz e no seu olhar o amor que ele sente pelo Recife, pelo Recife que ele começou a conhecer ainda menino acompanhado pelo pai e pelos passeios que fazia de bicicleta pelos recantos dessa cidade que logo o fascinou. “Toda cidade tem um início, mas não um fim”, ele destacou; e essa é a razão por que, segundo ele, “Cada geração conhece uma cidade diferente”. Sim, o Recife ainda segue conservando muito de sua memória urbana, lembrou o professor Zé Luiz, sem deixar de dizer que nela assistiu à derrubada de muitos imóveis e à transformação de várias de suas paisagens. E para confirmar que é também um bom animador de plateia ele nos disse assim: “Vocês não imaginam o trabalho que dá fazer um livro. E mais trabalho ainda escrever as dedicatórias”. Risos e aplausos encheram o auditório depois dessa sua fala de encerramento. E pouco a pouco as pessoas se dirigiram ao hall para entrar na filha e sair dali depois de posar para fotos ao lado do mestre e, claro, levando uma dedicatória no exemplar que adquiriram do livro.


Apesar de ter sido breve, a palestra proferida pelo professor José Luiz Mota Menezes foi muito esclarecedora e elucidativa não somente a propósito da obra que veio a lume naquele dia, como também denunciadora de quem fez do estudo das cidades uma missão e uma profissão de fé, percorrendo uma rota e um caminho, segundo as suas próprias palavras, “sem se perder pelas veredas”.


Em sua explanação que foi, por assim dizer, mais uma declaração do seu amor pelo Recife, tanto que a certa altura ele chegou mesmo a dizer que aquele seu livro recém-publicado “Vai ajudar a amar, a gostar dessa cidade bela”, o professor José Luiz Mota Menezes poderia, naquela ocasião, recitar os versos de um outro alagoano de enorme quilate como ele, Lêdo Ivo, que escreveu no seu “Recife, poesia”: “Amar mulheres, várias/Amar cidade, só uma – Recife”. Só que não dava, não é professor Zé Luiz? E por quê?


Talvez nenhum outro intelectual pernambucano – Mario Sette está no seu encalço – tenha feito do Recife sua cidade-pátria como o colosso chamado Gilberto Freyre. O Recife em Gilberto Freyre é tão visceral quanto a sua propalada vaidade e a sua profunda consciência de homem que veio ao mundo para escrever a respeito de tudo o que lhe despertava interesse. E, no entanto, e, apesar desse apego e desse amor pela capital pernambucana que ele sempre anunciava, o autor do Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife (1934) e de O Recife, sim! Recife, não! (1967) não se importou em apoiar a destruição da Igreja do Senhor Bom Jesus dos Martírios que existia no coração do bairro de São José até os primeiros anos da década de 1970, e que levou junto com ela dezenas de outros prédios antigos.


No fervor das discussões a respeito do megaempreendimento imobiliário chamado Novo Recife que, a despeito dos inúmeros protestos da sociedade civil organizada, como do movimento Ocupe Estelita, erguerá edifícios de alto padrão no Cais José Estelita, no esquecido e abandonado pela Prefeitura do Recife, bairro de São José, eis que o professor José Luiz Mota Menezes, tão amante e defensor da preservação da memória urbana do Recife – como estagiário do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) ele, inclusive, integrava a linha de intelectuais e estudiosos que defendia a salvaguarda daquela igreja que Gilberto Freyre e o historiador Flávio Guerra apoiaram a derrubada nos anos 70 , como eu já disse aqui –, apareceu cerimonioso num comercial veiculado pela televisão apoiando aquele projeto da Construtora Moura Dubeux. Recordo que, quando eu vi o professor Zé Luiz desempenhando o papel de garoto propaganda de um projeto imobiliário tão controverso e nocivo ao núcleo urbano primitivo do Recife, senti que desmoronava ali o bastião da pessoa mais ajuizada e competente para falar e defender a preservação  da essência urbana da capital de Pernambuco. Agindo como agiu, o professor Zé Luiz acabou repetindo a máxima que diz que, nestas terras nordestinas, neste Recife já tão dilapidado, mesmo os seus amantes mais ardorosos são capazes de ser-lhes infiéis.


Ali no hall do auditório do Museu do Estado de Pernambuco relembramos, eu e Carlos Miranda, renomado lente do curso de História da Universidade Federal de Pernambuco, o triste e lamentável episódio protagonizado pelo professor Zé Luiz, tendo ele comentado: “O professor Zé Luiz não precisava ter feito aquilo”. Realmente não precisava. Mas ele o fez. E eu nunca soube a troco de quê e nem por que ele manchou a sua reputação e a sua trajetória brilhante de reconhecida luta em defesa do Recife se sujeitando àquilo.

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