8 de junho de 2019

Uma mistura de cores, intuição e talento: entrevista com Eziel dos Anjos

Por Clênio Sierra de Alcântara


Fotos: Arquivo do Autor

A literatura, a música e a pintura figurativa - nesta ordem - compõem a tríplice corrente da arte que enchem a minha vida de uma satisfação plena. Dentro do universo da história da arte eu sou extremamente fascinado pelos estudos de exegese de pinturas figurativas que nos lançam em interpretações, decifrações e também especulações a respeito de uma dada obra. Por que o céu em quadros do Franz Post, apesar de retratarem paisagens tropicais, não contém a luminosidade solar das terras deste nosso Novo Mundo? Será que algum dia iremos nos deparar com a elucidação do enigma da Mona Lisa, do Leonardo Da Vinci? Curioso é que nessa jornada de reconhecimento de pinturas cada um de nós, amantes dessa arte, independentemente do lastro livresco que tenha ou não nesse quesito, põe-se a também especular sobre aquilo que está vendo num quadro com um furor interpretativo que não cessa nunca.

Na tarde do último dia 15 de março, dia esse em que Pernambuco celebrava o nascimento de um dos seus filhos mais ilustres e gloriosos, o mestre de mestres e sociólogo e historiador e antropólogo e escritor e pintor Gilberto Freyre, a quem eu fui reverenciar num evento ocorrido na manhã daquela  sexta-feira na Fundação Joaquim Nabuco, no bairro de Casa Forte, eu estava a flanar pelo Recife – e naquele momento específico na Rua da Aurora – quando, examinando os títulos disponíveis no sebo do meu camarada Paulo Pereira, me deparei, entre os livros, com um pequeno retrato do Carlos Drummond de Andrade e fiquei encantado com o misto de singeleza e alegria que aquela pintura irradiava.








Estando com a tela em mãos perguntei ao Paulo Pereira como eu poderia entrar em contato com o artista; e ele de pronto me repassou o cartão de visita do Eziel Batista dos Anjos; e eu, também sem demora, procurei me comunicar com o tal sujeito primeiro falando ao telefone e, depois, via WhatsApp. Conversa vai, conversa vem eu lhe encomendei quatro telas na mesma dimensão da do retrato do poeta mineiro e igual técnica nele utilizada, acrílica sobre tela. Para ficarem ao lado do autor de “E agora, José?” eu pedi ao Eziel dos Anjos que retratasse alguns dos autores que fazem parte do meu oratório literário: Lima Barreto, Clarice Lispector, Manuel Bandeira e Augusto dos Anjos.

É muito interessante notar nos trabalhos que o Eziel dos Anjos desenvolveu até agora, tanto nas pinceladas com tinta acrílica quanto nas com tinta a óleo, que, em que pese, digamos assim, a sua “formação” através de um grande fascínio pelos gibis de super-heróis e pelas revistas em quadrinhos em si – fascínio esse surgido na adolescência -, esse gosto e essa trajetória formativa autodidata não conseguiram enrijecer o traço dele; não se enxerga em suas produções a rigidez de formas humanas que se vê comumente nos desenhos de super-heróis que, por serem sobre-humanos, sempre ou quase sempre nos são apresentados em formas vigorosas e musculosas. Ao contrário das formas rígidas o que se vê nas produções desse artista recifense são uma suavidade e uma delicadeza que beiram o lirismo. A pintura figurativa do Eziel dos Anjos encerra em si, por vezes, o encontro da forma com a cor numa atmosfera de sonho, ainda que ele se empenhe em ser fiel ao real ao concebê-la.






Acredito que os artistas, quando não fazemos concessões de nenhuma ordem em nossa arte, ainda que sejam apenas para nós mesmos, deixamos de conhecer possibilidades outras de nós, uma vez que nos prendemos a esquemas, digamos, consagrados e/ou consolidados e nos afastamos da possibilidade de adentrar no outro lado de algo ou no avesso do avesso do pequeno ou grande mundo particular que porventura criamos para nele habitarmos.

Foi numa morna tarde outonal recifense que eu conheci pessoalmente o Eziel dos Anjos. Sob as sombras das árvores do Parque 13 de Maio, no bairro da Boa Vista, área central da capital pernambucana, esse artista que, no último dia 23 de maio, completou 45 anos de vida, entregou as minhas encomendas e me concedeu a entrevista que vocês lerão a seguir.


No artigo “Sociologia, literatura e arte”, publicado pela revista O Cruzeiro em 12 de maio de 1951, o autor de Região e tradição perguntou ao seu público leitor: “Que é então que dá permanência ao clássico em literatura como em pintura, escultura ou arquitetura ou música?”. E foi ele mesmo quem respondeu: “Sua capacidade de resistir a influências simplesmente de época. A modas ou caprichos de momento”. Eis aí uma lição do meu mestre Gilberto Freyre que eu espero que acompanhe o fazer artístico do Eziel dos Anjos ao longo do seu vital exercício pictórico, de modo que, em algum momento, surja nele uma identidade que seja absolutamente própria e só dele, essa aura que reveste a criação artística e faz com que ao mirarmos um dado objeto, uma dada expressão de arte, reconheçamos de imediato a sua autoria e sem hesitar dizemos: “Isto é um Vicente do Rego Monteiro!”, “Isto é um João Câmara!”.

Vamos à entrevista.


Eziel quando foi que você começou a desenhar e a pintar?

Olha, eu comecei já na adolescência, influenciado por gibis e revistas em quadrinhos. Como lá em casa não tinha televisão, meus pais eram evangélicos bem radicais, eu passava as minhas horas de ócio desenhando, né? Comprava aquelas revistas em quadrinhos. E aí fui pegando toda a história dos desenhos; toda uma anatomia dos super-heróis. Pra mim foi uma escola e é uma escola até hoje, como eu sou autodidata. Aí tem sido essa a grande influência. É claro que hoje em dia eu já estudo algumas técnicas, já vejo umas coisas, mas o meu princípio foi esse.

Você então não tem formação na área?

Não, eu sou autodidata, não tenho formação. Tudo é intuitivo. Através das coisas que eu via na infância e na adolescência. Não fiz nenhum curso. É tudo natural mesmo.

Do universo dos quadrinhos quais são os seus personagens e desenhistas favoritos?

Tem o Stan Lee. Pra mim ele é o principal desenhista. Eu gostava muito de desenhar as figuras que ele produzia, que na época eram o Homem-aranha, o Batman. E eu admirava aqueles movimentos e tentava acompanhar tudinho no caderno, inclusive, eu criava até estórias com minha autoria. E isso foi muito bom. É uma recordação boa.

Tem algum tema do qual você mais gosta de desenhar e pintar?

Olha, o tema que eu mais gosto é paisagismo. Monumentos, casarios antigos. O paisagismo é uma área que eu gosto de brincar com a paisagem. Eu vejo uma paisagem assim que me encanta, eu já penso logo em chegar em casa e retratar aquilo, e transferir pra tela. É o meu tema favorito.

Sei que você também faz trabalhos por encomenda. Você vive desse trabalho?

Não, não. Até agora não. Queria eu. Meu sonho é viver só dependendo disso. Mas eu tenho outras coisas. Eu sou músico também. Trabalho em pintura predial. Toda a pintura predial, emassamento, que é a minha profissão mesmo, pintor predial. E trabalhei na área de música bastante tempo, ainda sou músico. Mas tô começando a tomar gosto agora, tentar ver se consigo dar os meus primeiros passos na área da pintura em tela. A gente no Brasil tem que ser muito versátil, tem que navegar em vários mares diferentes.

Há algum nome da história da arte que você admira?

Olha, tem muitos, tanto os pintores antigos, tipo [Paul] Cézanne, o próprio Leonardo Da Vinci. Tem um que eu tava pesquisando ele ultimamente chamado Thomas Cole, que é um inglês naturalizado americano, que ele tem uma pintura muito boa, muito expressiva assim; e os quadros dele retratam uma história, toda uma história, do começo ao fim, do ser humano. Fora isso, dos pintores contemporâneos tem muitos; tem o Kevin Hill, que é um pintor de fora; tem o Michael James, que retrata paisagismo. E por aí vai. Fora os grandes, tipo [Pablo] Picasso. Daqui, tem o Cândido Portinari, Tarsila do Amaral. É uma gama de várias referências boas que eu pesquiso.

Como você faz para promover e divulgar o seu trabalho?

Eu estou divulgando muito através de redes sociais, através do Instagram. Eu tenho o meu Instagram, tem o Facebook. Tem a coisa do boca a boca também (risos). E os contatos via amigos. E tentando agora através de exposições; tô acabando uma exposição agora, aqui no Recife, num espaço chamado Caldo de Boteco [na Rua da Soledade, nº 58, na Boa Vista], é um bar-restaurante. A gente tá terminando a exposição agora, dia 11. Vou tentar outras exposições. Isso tudo é meio de divulgação.



Esta obra e a seguinte são na técnica óleo sobre tela: Eziel dos Anjos vem a cada dia aprimorando não apenas o seu olhar, a sua apreensão e a fixação dos seus temas favoritos, como também estudando técnicas, conhecendo o legado de outros pintores e se aprofundando no entendimento de que a arte é um aprendizado contínuo, estimulante e desafiador




Você está participando de uma exposição neste momento. Já pensou em participar de concursos de desenhos e pinturas?

De concurso eu nunca participei e, talvez, nem participe, porque eu tenho aversão a disputas. Eu não entro em disputas. Acho que as coisas têm que acontecer naturalmente. Essa coisa de quem ganha e quem perde, entendesse?, é uma coisa muito relativa. Eu acho que às vezes o camarada que perde tem um nível até melhor do que muitos que ganham. Eu já vi isso com os meus próprios olhos. Aí eu sou assim meio, não tenho muita afinidade com concurso, com disputa e tal. Mas pra quem gosta é legal, porque é uma oportunidade a mais, né? Mas eu quero que as coisas, pra mim, pelo menos, aconteçam naturalmente, que alguém veja o meu trabalho e reconheça que ali existe um artista, existe uma pessoa que tá na luta também.

O que é que inspira o artista Eziel dos Anjos?

O que me inspira é a vida, né? É a visão (disse isso alteando a voz, enfatizando). É feito Jesus disse: “Os olhos é a candeia do corpo”. E tudo o que entra, que os olhos, que a sua visão capta do exterior pra mim é uma inspiração. O colorido do dia, as árvores, um pássaro no céu voando, o mar e a vida em geral. Tudo isso aí é uma base muito forte na minha inspiração, a natureza em geral.

O Recife é uma cidade inspiradora para você?

Com certeza. Eu tenho o maior orgulho de morar no Recife, de ter nascido aqui. Apesar de muitas vezes o artista aqui ser incompreendido, eu tenho muito orgulho da minha cidade. Inclusive, eu já tive até oportunidade e convites de amigos pra ir pra fora. Uns amigos chamam: “Vem te embora”. Nos Estados Unidos tem um amigo, na Noruega, no Canadá também tem um amigo. Um sobrinho meu tá na Irlanda. Mas, assim, eu não me vejo morando fora. Acho que se eu morasse fora, se eu visse uma imagem do Recife, do Brasil, eu acho que eu chorava na hora. Apesar dos pesares, que a gente luta pra caramba aqui, é tudo difícil, mas eu amo a minha cidade, é uma cidade muito linda, inspiradora; e eu me orgulho dessa inspiração que eu tenho aqui no Recife.

Você convive com outros artistas, seja pessoalmente, seja através das redes sociais?

Eu estou começando a minha divulgação. Eu convivo com poucos artistas. Tô começando a caminhar agora. Teve essa exposição que eu tô em parceria com a minha esposa e com outro artista plástico, Givaldo Ferreira, que é um pintor bem interessante. Rosângela Araújo, minha esposa, e Givaldo. Tem outro rapaz, também de Olinda, que foi da minha época, Alberto. Tenho poucos contatos. Espero, assim, me infiltrar melhor, fazer um intercâmbio. Tem o Zé Som, um artista já conhecido em Olinda, também. É muito intercâmbio com a arte, com pessoas que falam a mesma linguagem.

Como você se enxerga como artista?

Eu me enxergo como um ser humano que tá tentando cada vez mais evoluir. Tentando evoluir na minha arte e como ser humano também. E cada dia mais galgando um espaço, tentando ocupar um espaço e evoluindo, né? Evoluindo no dia a dia, na arte, na técnica. E eu vejo assim, a minha vida como uma evolução: cada dia aprendendo coisas diferentes.



Aqui o Drummond que eu encontrei entre os livros do Paulo Pereira; e, logo abaixo, as telas que eu encomendei: Clarice Lispector, Lima Barreto, Manuel Bandeira e Augusto dos Anjos










O que é fazer arte para você?

Fazer arte é você transferir... Tem uma frase muito interessante que eu guardo no meu coração que Eric Clapton, guitarrista de blues, falou que ele como um branco, ele tocava tão bem um blues, que era resumido a negros, e ele simplesmente falou assim; que ele simplesmente coloca o coração na ponta dos dedos para tocar, né? Quer dizer, a gente que é artista, em tudo o que a gente fizer tem que colocar o coração. Você coloca o coração, coloca a sua alma naquilo e as coisas vão fluir; com certeza vai sair coisas boas.

Além do valor comercial você atribui algum outro à sua arte?


Não, acho que a arte, além do valor comercial, eu acho que o artista ele deve fazer o que gosta. Agora se surgir o lado das vendas, da ascensão, acho que vai acontecer naturalmente. Mas eu não vejo, assim, eu não entendo o artista que ele começa a fazer uma arte pensando em bens monetários, em vender. Eu acho assim: o verdadeiro artista não pensa primeiro no dinheiro, porque aí eu acho que a arte não flui, entendesse? Eu acho que o artista ele deve pensar primeiramente na arte, no que ele vai produzir ali. Agora, se surgir algum lucro ali, através disso, vai surgir depois, pelo trabalho esboçado por ele, pelo bom trabalho. Acho que é isso aí, a partir disso.

5 comentários:

  1. Um artista da atualidade!!! Amei todos!!! Certamente é uma viagem neste mundo fantástico sobre tela.

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  2. Esse é meu tio, minha inspiração na arte. Parabéns pela matéria e muito sucesso a esse artista tão humano.

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  3. A humildade é marca registrada desse homem "humano-falho" que se chama Eziel. O destino foi muito bom por ter me feito vizinho desse cara. Vitória na guerra!

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  4. Grande ser humano acima de tudo, sempre combinei de forma inconsciente da forma de pensar de Eziel, realmente é um brinde a arte de hoje ter pessoas como ele no front.

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  5. Admiro seu olhar Eziel,a arte está dentro de nós. E você sabe muito bem transferir isto com excelência.
    Quero uma tela."Pássaro"

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