16 de novembro de 2019

Personas urbanas (23)

Por Clênio Sierra de Alcântara

Você abusou, tirou partido de mim, abusou [..]
Mas não faz mal, é tão normal ter desamor
Que eu já não sei se é meninice ou cafonice o meu amor [..]
Você abusou, tirou partido de mim, abusou.
                                                 Você abusou. Antônio Carlos/Jocafi




Eu não troco carinho por desprezo e nem estima por descaso. Não sou nenhuma flor que se cheire. Eu tenho plena consciência de que não sou uma pessoa fácil de lidar, porque sou muito dado a pequenas e grandes explosões de desconforto e de insatisfação em situações as mais diversas, mas, sobretudo, quando elas dizem respeito ao trato com indivíduos com os quais eu esteja intimamente envolvido. E por quê? Porque o meu ser autoritário e mandão não tem paciência para lidar com o "talvez", com o "eu vou pensar", com o "eu não sei ainda".

Uma das coisas que mais me matam é a impaciência. E eu não compreendo qual é a dificuldade que algumas pessoas têm para, numa discussão de uma relação, elas não dizerem o que realmente está lhes incomodando no trato com a sua cara-metade; qual é o verdadeiro sentimento que está ligando-as ao outro; e, muito pior, por que elas resolvem manter um relacionamento que desde o início tomam como incômodo e sem futuro.

Por vezes eu me vejo como alguém que jamais irá conseguir construir uma relação amorosa e/ou afetiva com substância suficiente e com base sólida que me encaminhe para a possibilidade de dividir um cantinho, coabitar com uma pessoa. Estou já – uns dizem ainda – com 45 anos de idade e sem carregar na minha mochila nem sequer um grama de ilusão e de um ideal de felicidade. Para ser bem sincero com você que me lê neste momento, só ainda há pouco foi que eu cheguei à conclusão de que isso de felicidade é uma entre muitas bobagens que inventaram, deram nome e puseram numa lista como uma espécie de doutrinação para nos fazer crer que, caso não alcancemos tudo o que está no bendito rol, não seremos gente que se deu bem na vida. Por meu turno, assim como eu até agora abri mão da paternidade, da crença numa suposta divindade, da repressão sexual – um conhecido meu me disse que eu preciso fazer uso do que ele chamou de “mentiras sociais”; de pronto eu lhe disse que eu não quero saber disso – e  da propagandeada necessidade de casamento, eu não dou mais ouvido à sereia que em seu canto louva, sem especificar e nem descrever com precisão o que é isso que tantos dizem ser tão essencial quanto a água e o ar e que se chama felicidade. Não caio mais nessa. Eu me dei conta de que isso é um dos grandes contos do vigário com que começaram a encher os meus ouvidos quando eu era ainda uma ingênua criança e não sabia pensar por mim mesmo. As pessoas traem umas as outras; as pessoas escravizam seus semelhantes; as pessoas assassinam, enganam, estupram, furtam, humilham, ofendem, massacram, contaminam, explodem, difamam, rejeitam e condenam os seus pares e ainda vêm com essa coisa estúpida de felicidade. É demais, não é?

Uma vez que eu passei a pensar por mim mesmo e me desprendi de, entre outros penduricalhos, da crença no sobrenatural e de certos determinismos da vida em sociedade, não enxergo mais a existência como uma oportunidade que me foi dada para que eu fosse obedientemente cego e submisso e aceitasse a dor com firmeza e resignação. Para mim a vida, o viver não é um milagre, não é uma dádiva: é um acontecimento inexplicável e ponto.

Como eu ia dizendo antes dessas digressões, não entendo como certas criaturas são incapazes de tratar com clareza os seus sentimentos quando se veem envolvidas num relacionamento afetivo. Isso é terrível porque o outro, sem saber com quem realmente está lidando, planeja e concebe situações crente de que o seu par está em sintonia com o seu pensamento, o que nem sempre é o que ocorre. O silêncio num relacionamento é uma armadilha cruel e impiedosa, porque, não raro, resvala para a indiferença no que diz respeito ao sentimento do outro.

Recentemente eu caí numa dessas armadilhas, logo eu que sou sempre de jogar limpo. Chamei a pessoa na boa e perguntei qual era a dela para que não houvesse qualquer engano entre nós, como tem de ser. Ocorreu que, mesmo tendo dito que gostava de mim, que eu era uma pessoa boa e tal, a criatura começou a me evitar e a inventar desculpas para não me ver mais, ainda que sabendo dos meus sentimentos, do meu entusiasmo e do meu enorme tesão para consigo. Precisava ela ter agido assim? Eu penso que não. Bastava tão somente dizer em claro e bom som que não me queria mais, apenas isso. Em vez disso ela preferiu emendar um “eu não posso te ver hoje” atrás do outro, brincando, espezinhando os meus sentimentos e me fazendo amargar seguidas frustrações. Eu lhe pedia atenção e ela dizia que eu fazia drama. Não poderíamos mesmo dar certo.

Não tenho paciência, como eu já disse; e não sei e nem quero aprender a fazer os meus pretendentes me enxergarem como alguém diferente do que eu na verdade sou. Eu me recuso terminantemente a usar disfarces e a fazer uso de quaisquer outros expedientes para que me vejam de uma forma que não seja essa configuração que eu possuo. Sendo assim e, como eu não tenho dificuldade em romper laços puídos, eu disse àquela pessoa que eu desistira dela porque jamais, em hipótese alguma eu trocaria carinho, generosidade, confiança, cumplicidade e estima por desprezo e descaso. E caí fora; e tirei o meu time de campo certo de que fiz o que tinha de ser feito para o bem de nós dois.

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