30 de novembro de 2019

Por que rejeitamos os testemunhos do nosso passado?

Por Clênio Sierra de Alcântara


Foto: Arquivo do Autor
Imóvel antigo no centro comercial de Belém, no Pará, onde estive em outubro deste ano, que foi quase que inteiramente destruído para dar lugar a um estacionamento de automóveis, um negócio, sem dúvida, bastante lucrativo


Desde que eu comecei a me interessar, ainda nos anos de minha formação na universidade, pelas políticas de preservação do patrimônio histórico edificado, um questionamento não parou de perseguir as minhas inquietações de pesquisador e apreciador dessas construções: por que nós, brasileiros, rejeitamos os testemunhos de nosso passado histórico contidos nessas edificações?

A partir de dado momento eu resolvi – atendendo a um ensinamento do meu mestre maior Gilberto Freyre – que era preciso realizar viagens de formação, era necessário que eu conhecesse in loco certos cenários e paisagens que o universo livresco me apresentava em minúcias. Gilbertianamente eu compreendi que o conhecimento de dada realidade material de alguma maneira faria com que eu ampliasse o meu entendimento e a minha assimilação das matérias discutidas e analisadas nos livros.

Pensando assim, anos atrás eu comecei a pegar a estrada com o objetivo de percorrer e explorar sítios históricos urbanos quer estivessem eles ou não nos planejamentos e/ou sob a proteção das políticas preservacionistas levadas a cabo pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o órgão federal que, desde a sua criação, em 1937, empreende uma luta permanente contra o que eu chamo de “insensibilidade histórica” do brasileiro para com o seu patrimônio cultural.

Como eu vinha dizendo, o processo de jornada das viagens – e elas permanecem em curso, mesmo porque eu costumo retornar a localidades que já visitei – me pôs em contato direto com diferentes graus e patamares de preservação e valorização do patrimônio histórico edificado, bem como com cenários cujos níveis de degradação e de abandono absoluto eram espantosos, como se tais edificações, neste caso, representassem não somente um sinal e um sintoma de atraso e de impedimento de algum progresso para as áreas nas quais elas foram erguidas, mas também como motivos de vergonha para a população – e/ou para grande parte dela – dos sítios urbanos onde elas se encontravam.

Costumeiramente eu repiso falas, eu repito avaliações, eu torno a dizer o que eu disse em narrativas anteriores, porque, por mais que eu assimile com bastante clareza o fato de que este país é uma nação de desníveis socioeconômicos abissais, onde barracos de palafitas são vistos numa mesma paisagem de skylines de edifícios luxuosos, eu me recuso terminantemente a aceitar que, em vista disso, tenhamos de ver sacrificado o nosso patrimônio histórico edificado, como se a sua preservação significasse um acinte, uma provocação, um insulto em meio a uma realidade onde tantas pessoas vivem abaixo da linha da pobreza e os recursos públicos, por mais abundantes que sejam, não são suficientes, de acordo com os indivíduos que os gerenciam, para dar conta de uma demanda tão enorme e urgente.

Ocorre que a ordem desse discurso é precária na medida mesma em que, na imensa maioria dos casos – e esta é uma avaliação pessoal, uma hipótese – de destruição do patrimônio edificado, tais construções pertencem a pessoas endinheiradas que, sem senso algum de preservação e objetivando outro destino para o terreno onde a edificação existe, tratam de deixá-la entregue à própria sorte – isso quando não buscam de algum modo acelerar o processo de ruína, retirando o telhado dela, por exemplo – para que a estrutura fique de tal forma comprometida, as rachaduras danifiquem e fragilizem de tal maneira o prédio que não haja outra solução – restaurar nem pensar, não é esse o objetivo, até porque os proprietários alegam logo não ter dinheiro para isso – que não seja garantir a sua inabitabilidade e posterior demolição com o aval da Municipalidade.

Tenho andado por este país afora e me deparado com uma infinidade de cenários de ruínas. Muito embora aqui e ali eu venha encontrando exemplos admiráveis de preservação, são os prédios abandonados e/ou destruídos quase integralmente para abrigar geralmente estacionamentos, que têm feito com que eu perceba que nossas cidades de existência mais antiga e que abrigam grande parte da memória urbana desta nação, estão perdendo de modo acelerado uma quantidade expressiva de seus patrimônios históricos edificados, o que é uma evidente demonstração de uma indigência de respeito e de valorização dos testemunhos de nossa História. Nossas cidades mais antigas vão dia a dia acumulando ruínas e isso, ao que parece, é uma realidade irrefreável.

 Milhares, milhões de brasileiros anualmente viajam para o exterior e se esbaldam tirando selfies em monumentos e casarios que remontam há séculos atrás, enquanto aqui, não raro, menosprezam o patrimônio nacional e não levantam a voz para lutar por sua preservação.

Nós, brasileiros, parecemos ser criaturas que abdicam de suas raízes e se envergonham do seu passado.



Nenhum comentário:

Postar um comentário