5 de setembro de 2020

Chica Xavier, Chadwick T’Challa Boseman e a representatividade como um dos atos de resistência mais potentes que existem sob o império do negricídio

 Por Clênio Sierra de Alcântara


Imagem: Internet
A ideia de que a negritude deve ser guiada pelo discurso e pelo pensamento da branquitude, de alguma forma estabelece a manutenção de paradigmas de dominação e/ou subordinação. A representatividade da comunidade negra deve ser estabelecida pelo que ela própria pensa


Há pouco mais de um mês – precisamente no dia 2 de agosto -, a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz, uma das mentes mais prodigiosas deste país e autora de inúmeras obras que examinaram a presença do negro na história do Brasil – em minha biblioteca repousam nas estantes um muitíssimo bom Dicionário da escravidão e liberdade, que ela organizou com Flávio dos Santos Gomes; Retrato em branco e negro; Lima Barreto: triste visionário; e Sobre o autoritarismo brasileiro -, publicou na Folha de S. Paulo um artigo em que avaliou o filme Black is king, da cantora negra norte-americana Beyoncê. Intitulado “Filme de Beyoncê erra ao glamorizar negritude com estampa de oncinha”, o texto é uma narrativa que, a meu ver, fica quase que o tempo todo querendo pôr nos pratos de uma balança uma avaliação estética do álbum visual da artista de um lado e de outro uma análise histórico-política do produto musical. Nem preciso dizer que a tentativa de conseguir equilibrar os dois lados da balança foi um desastre, considerando a enxurrada de críticas – e várias delas severas e pesadas – que Lilia sofreu por se meter a dizer, ao fim e ao cabo, que Beyoncê precisava “deixar a história começar outra vez, e em outro sentido”, como que dando uma ordem, como se fosse uma sinhá a tratar com uma mucamazinha rebelde.

Muito embora eu, como um intelectual e um construtor de narrativas que de modo algum faz concessões e/ou é condescendente com quem quer que seja e/ou com o que quer que seja, mantenha até agora a opinião de que Lilia Moritz Schwarcz errou ao quase, por assim dizer, se ajoelhar pedindo desculpas pelo que escreveu – ela chegou mesmo a dizer que o título e o subtítulo do artigo foram obras dos editores do jornal e não dela -, como se tivesse cometido um crime e um crime hediondo ainda por cima, compreendo que todos os ataques e/ou quase todos os ataques que ela sofreu se deveram fundamentalmente por ela ser uma branca falando de atitudes, comportamentos e arte negra; e, mais do que isso, por dizer como uma negra deveria agir e o que deveria fazer com seus dotes e suas interpelações e admoestações artísticas ao mirar a posição do negro na sociedade. Respeito e admiro muito Lilia Moritz Schwarcz, mas penso que, apesar de toda a sapiência que possui, parece que ela ainda não se deu conta de que a ideia de que a negritude deve ser guiada pelo discurso e pelo pensamento da branquitude, de alguma forma estabelece a manutenção de paradigmas de dominação e/ou subordinação, algo do qual a comunidade negra até hoje luta para se ver completamente livre.

A questão da branquitude foi tão forte nesse caso que Black is king chegou a ser mal avaliado também por intelectuais negros e esses não foram rechaçados pela comunidade negra. E por que isso se deu? Porque uma das ações de afirmação da comunidade negra, dentro dos seus movimentos de contestação e de combate ao racismo e/ou aos racismos, como o estrutural, consiste em afirmar – e o que eu vou dizer aqui agora é uma avaliação que eu, um intelectual pardo quase negro, faço – que o que é do negro e sobre o negro tem de ser avaliado e feito pelo próprio negro, sem ter o discurso e o pensamento do branco como esteio. É como que um grito de chega disso, de basta desse processo de colonização e dessa ordem branca que insistem em querer nos dizer como nós podemos e devemos existir; e como nós podemos e devemos protestar contra esse estado de coisas.

No intervalo de vinte e um dias a comunidade negra perdeu dois artistas, dois admiráveis e talentosos artistas que fizeram da arte da atuação um meio de fincar a bandeira da representatividade da negritude. Num mundo onde negros são abatidos como se fossem animais caçados em um safári e onde eles sofrem toda sorte de preconceito por causa da cor de sua pele, Chica Xavier, falecida no dia 8 de agosto, e Chadwick T’Challa Boseman, falecido no dia 29 do mesmo mês, eram representantes grandiosos de seus pares num universo – o da dramaturgia e da atuação – que, como quase tudo o que existe neste nosso mundo, é dominado por pessoas brancas.

Bem mais velha que Boseman – ela tinha 88 anos e ele 43 -, Chica Xavier não era somente uma boa atriz; ela era uma mulher negra profundamente consciente de sua negritude, que ela exaltava, inclusive, em seus cultos de religião de matriz africana; ela compreendia e tinha clareza da dimensão do significado de representatividade que figuras como ela detém para a comunidade negra. A propósito eu recordo aqui um depoimento que ela prestou a Sandra Almada. Quando perguntada se o racismo também poderia ser “justificado” pela ignorância das pessoas, Chica Xavier disse assim:

Também pode. E pode ser dissimulado pela cultura da pessoa. Quer dizer, à medida que você tem uma compreensão maior das coisas, a tendência é não ser racista. Mesmo que, no fundo, a pessoa tenha um certo preconceito, que não queira uma negra para casar com o filho dela, ou um negro para casar com a filha, ela acaba achando natural que uma pessoa negra esteja no seu habitat, no seu meio. Ela gosta muito daquela pessoa, que é um colega ilustre, uma colega inteligente, se sente bem com essa pessoa, mas não admite misturar o sangue. Então, a pessoa que tem cultura, que tem instrução, disfarça muito bem isso. Agora, tem outras que não conseguem se dominar e mostram o racismo em pequenas coisas, pequenos gestos, pequenas frases, como numa apresentação do tipo: “Olha, você conhece Chica? É atriz de televisão. Você já viu o trabalho dela, não é?” (Risos). Isso acontece demais, mas isso também acontece entre nós, negros, entre as pessoas mais pobres, mais simples. Aí, já é diferente. É uma maneira de mostrar que tem uma amiga, negra, como ela, mas que é importante: é atriz de televisão, jogador de futebol, cantor. Então, dizem: “Olha, eu sou amiga de fulano...”. Nesse caso, também é uma valorização de si próprio (Chica Xavier. “No Brasil, é muito difícil lutar contra um preconceito que ‘não existe’”. In Sandra Almada. Damas negras: sucesso, lutas, discriminação: Chica Xavier, Léa Garcia, Ruth de Souza e Zezé Motta. Rio de Janeiro: Mauad, 1995, p. 36-37).

Quando Chica Xavier diz, especificamente, “É uma maneira de mostrar que tem uma amiga, negra como ela, mas que é importante”, porque “é uma valorização de si próprio”, o valor, a potência e a necessidade que a população negra tem de uma boa re-pre-sen-ta-ti-vi-da-de ficam mais que expostos. Representatividade é algo muito forte, gente; forte, encorajador e estimulante. Ao se ver e se enxergar e se notar representado, o indivíduo se reveste, eu acredito, de uma pensamento que pode ser resumido desta maneira: “Ele é um negro. Ela é igual a mim. Ele e ela sendo negros, como eu sou, puderam fazer isso e eu também posso”.

O objetivo da representatividade positiva para os negros estabelece um patamar cujo nivelamento é para cima e não para baixo. Ver, por exemplo, uma Maria Júlia Coutinho, um Heraldo Pereira, uma Zileide Silva e um Márcio Bonfim apresentando telejornais na emissora mais assistida do país é de um significado extremamente poderoso para a comunidade negra, em particular, e para a sociedade como um todo, porque, além de nos mostrar que o indivíduo negro é capaz, é competente, é inteligente e é talentoso, como qualquer branco, diz ainda que o lugar do negro é onde ele possa e/ou queira estar; e que a existência de, por assim dizer, “senzalas” aqui e ali, é um indicativo da persistência de um preconceito feroz e de que a luta pelos direitos e pela representatividade e contra o racismo não deve sair de pauta.

Num ano em que o slogan black lives matter se espalhou pelos quatro cantos do mundo em decorrência de episódios como a morte de George Floyd e os tiros disparados contra Jacob Blake, ocorridos nos Estados Unidos, aqui no Brasil, o extermínio de negros, o negricídio continua firme e inabalável desde sempre. Segundo o levantamento do Atlas da Violência referente a 2018, do total de homicídios registrados em todo o país, naquele ano, 75% das vítimas eram negras.

Afora o negricídio que impera neste Brasil desigual, amargamos ainda o infortúnio de ter como presidente da Fundação Palmares um negro que não se reconhece como tal; e que, certamente por isso, nega a sua ancestralidade defendendo entusiasmadamente o linchamento da figura de Zumbi dos Palmares, que é o símbolo maior do Movimento Negro. Mas não se poderia esperar boa coisa de quem, além de negar sua negritude, é aliado de um presidente da República misógino, homofóbico, desrespeitador da imprensa e exaltador de torturadores. Costumo dizer que o desejo que certos negros têm de a todo custo pertencer à “casa-grande”, por vezes obscurece em muitos deles a compreensão da realidade e promove a negação existencial da “senzala”.

Muitos e muitos são os negros deste país que, infelizmente, não conseguem escapar da dominação da “casa-grande”, como deixam o tempo todo evidente as favelas, os subempregos e as elevadas taxas de homicídios que marcam essa grande parcela da população brasileira. Digo isso recordando o triste episódio da morte do menino Miguel Otávio, de 5 anos de idade, que caiu do nono andar de um prédio de luxo, no Recife, no último dia 2 de junho. Bastante simbólico que o caso do Miguel tenha tido como cenário o Recife, uma das “cidades negras” do Brasil voltadas para o Oceano Atlântico – como, aliás, o prédio de alto padrão do qual o garotinho caiu para a morte -, por onde navegaram milhões de negros que foram trazidos da África como mercadorias para serem vendidos como escravos e que, ao serem desembarcados, “ficavam armazenados em depósitos próximos aos portos, durante algumas semanas, para recuperar o peso e a aparência” (Juliana Barreto Farias, Flávio dos Santos Gomes, Carlos Eugênio Líbano Soares e Carlos Eduardo de Araújo Moreira. Cidades negras: africanos, crioulos e espaços urbanos no Brasil escravista do século XIX. São Paulo: Alameda, 2006, p. 15). Mirtes Souza, mãe da criança, é uma mulher negra que, no dia fatídico, em plena pandemia de um vírus mortal, estava exercendo o seu ofício de empregada doméstica, passeando com um cachorro da patroa, que ficara “cuidando” do pequeno Miguel, que tinha nome de anjo, mas não asas para voar.

Ruth de Souza, Gésio Amadeu, Chica Xavier e Chadwick T’Challa Boseman foram alguns dos grandes valores que a comunidade negra, que o Movimento Negro perdeu nos últimos meses; uma perda de todo significativa e robusta de representatividade para uma gente e para um povo que diariamente clama pelo fim do preconceito racial, do racismo e sobretudo do negricídio.

A força dominantemente branca é brutal, feroz, preconceituosa e assassina. Libertados, fora de todos os grilhões e revoltados, os negros precisamos ter uma clareza de percepção e de entendimento que nos faça enxergar a dimensão e a importância do nosso papel dentro das engrenagens socioeconômicas, a fim de que nos inteiremos do real valor que nós temos no seio da sociedade, que não é pequeno. Continuemos marchando com toda a resiliência e com toda a resistência com que até hoje os nossos corpos negros, que dobram, mas não quebram, foram capazes de lutar.

Avante! Nós podemos fazer por nós muito mais do que imaginamos.

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