3 de setembro de 2022

Bicentenário da Independência: o Brasil do futuro permanece firmemente preso às forças do autoritarismo e do atraso

 Por Sierra

 

Independência ou morte, obra do paraibano Pedro Américo
 Na idealização de um ato, o simbolismo de todo um ideal de nação. Rupturas sucessivas ocorridas desde aquele 7 de setembro de 1822 ainda não fizeram com que este país conseguisse de fato trilhar os caminhos de um bom futuro


Nada mais comum do que aproveitar grandes datas marcantes da História nacional para fazer como que um balanço de tudo que transcorreu do tempo em que se deu o evento até os dias que correm. Neste contexto, na próxima quarta-feira, outra vez o Brasil marcará mais um aniversário de sua Declaração de Independência, num real e também muito simbólico bicentenário.

Olhando para trás, olhando para os rumos que o país tomou desde aquele 7 de setembro de 1822, observamos quão marcado por grandes rupturas foi o destino desta nação. Ruptura assinalada pelo fim do vergonhoso e maldito regime de escravização da gente negra, de cujas consequências talvez nunca nos libertemos, porque a escravização, os rigores, os martírios e a desumanização do escravismo permanecem como uma ferida acesa em nossa sociedade, como prognosticou Joaquim Nabuco em seu Minha formação. Ruptura verificada no ponto final que se deu a mais longa monarquia então vigente nas Américas. Ruptura com uma aliança inconveniente, inadequada e medonha que punha de mãos dadas Estado e Igreja, instituindo a laicidade estatal. Ruptura com o domínio do mundo rural sobre o mundo urbano quando, em massa, milhões de pessoas deixaram os campos para viver em cidades. Rupturas sucessivas, ao longo do século XX, com a ordem democrática estabelecendo em seu lugar a vileza, os absurdos, os desmandos, as perseguições, as torturas, os desaparecimentos e a tirania próprios, muito próprios, de regimes ditatoriais

Foram duzentos anos desde aquele 7 de setembro de 1822; e, em que pesem as rupturas aqui assinaladas, quais consequências elas nos trouxeram e nos legaram desde que irromperam entre nós? Lembrando o título de um dos livros mais conhecidos do antropólogo Roberto DaMatta eu me e vos pergunto: o que faz e/ou o que fez o Brasil ser o que é desde então?

Duzentos anos de uma história conturbada e atravessada por arroubos autoritários definiram os destinos desta nação que, a meu ver, ainda não conseguiu romper em definitivo as raízes dos males oriundos do Período Colonial. As raízes do Brasil – recorrendo ao nome da mais celebrada obra de Sérgio Buarque de Holanda – continuam de algum modo fincadas e presas no terreno pantanoso das brenhas da época do domínio português de antes de 1808, quando de tudo se fazia para que esta então Colônia só servisse, só efetivamente servisse como um grande fornecedor de riquezas naturais, sem livros, sem escolas, sem trabalho livre, sem autonomia alguma. Nós, que somos tão obstinadamente dados ao desmatamento e à destruição, não conseguimos nos livrar de tais raízes.

Transcorridos duzentos anos desde o famigerado “Independência ou morte” de Dom Pedro I, nós continuamos sendo uma das nações de mais acentuado nível de desigualdade social do mundo; nós continuamos com um contingente de milhões de analfabetos com tantos ditos progressistas demonizando a pedagogia da autonomia, de Paulo Freire; nós continuamos sem entender, sem respeitar e, numa palavra, sem humanizar inteiramente os negros, como que mantendo de pé a casa-grande & a senzala dissecadas no famoso livro de Gilberto Freyre; nós continuamos selvagens ao extremo, cometendo assassinatos aos magotes com uma sanha e uma voracidade que tem o seu quê daquele criminoso “refluxo para o passado” de que nos disse Euclides da Cunha em Os sertões; nós continuamos a ser o chamado “celeiro do mundo” onde milhares – talvez milhões – de indivíduos passam fome e/ou não têm segurança alimentar sem que o poder público trace a geografia da fome, como alertava Josué de Castro, e tome a fome como um tema proibido, como se ela não existisse nestas paragens.

A marca de duzentos anos e, como eu disse, o simbolismo da data, deveriam ser, apesar e apesar e apesar de tudo, de alguma maneira comemorados. Ocorre que, como se não bastassem todas as mazelas que seguem dominantes, a construção da ordem – daquela ordem de que nos falou José Murilo de Carvalho e que resultou nestas dos dias atuais – que por ora domina o poder desta sempre e constantemente testada República democrática, vivemos dias aterrorizantemente sombrios, no qual se propagam discursos de ódio na esfera política de modo a dividir a sociedade e mantê-la num permanente clima de iminente batalha campal e até de decretação de outro período ditatorial a fim de atender aos anseios e às pretensões do atual mandatário da nação que, em seus arroubos autoritários e retrógrados, diz falar por todos os cidadãos. O 7 de setembro era para de algum modo ser comemorado, mas, pelo contrário, até a próxima quarta-feira chegar, iremos nos manter apreensivos e com certo medo diante das constantes ameaças que uns e outros têm feito aos pilares da democracia, querendo, mais uma vez, fazer com que recuemos para o passado num outro refluxo, desdenhando e pisoteando num idealizado e esperançoso projeto de bom futuro para este país.

Eis paulopradianamente o retrato esboçado e acabado do Brasil, da tristeza do Brasil, do lamento do Brasil, da tragédia do Brasil e da trajetória de um país que, ao largo de uma independência e de uma muito desejada libertação de um jugo, continua firmemente preso às forças do autoritarismo e do atraso.

Nenhum comentário:

Postar um comentário