Por Sierra
Nada mais comum do que
aproveitar grandes datas marcantes da História nacional para fazer como que um balanço
de tudo que transcorreu do tempo em que se deu o evento até os dias que correm.
Neste contexto, na próxima quarta-feira, outra vez o Brasil marcará mais um
aniversário de sua Declaração de Independência, num real e também muito
simbólico bicentenário.
Olhando para trás, olhando
para os rumos que o país tomou desde aquele 7 de setembro de 1822, observamos
quão marcado por grandes rupturas foi o destino desta nação. Ruptura assinalada
pelo fim do vergonhoso e maldito regime de escravização da gente negra, de
cujas consequências talvez nunca nos libertemos, porque a escravização, os
rigores, os martírios e a desumanização do escravismo permanecem como uma
ferida acesa em nossa sociedade, como prognosticou Joaquim Nabuco em seu Minha formação. Ruptura verificada no
ponto final que se deu a mais longa monarquia então vigente nas Américas. Ruptura
com uma aliança inconveniente, inadequada e medonha que punha de mãos dadas
Estado e Igreja, instituindo a laicidade estatal. Ruptura com o domínio do
mundo rural sobre o mundo urbano quando, em massa, milhões de pessoas deixaram
os campos para viver em cidades. Rupturas sucessivas, ao longo do século XX,
com a ordem democrática estabelecendo em seu lugar a vileza, os absurdos, os
desmandos, as perseguições, as torturas, os desaparecimentos e a tirania
próprios, muito próprios, de regimes ditatoriais
Foram duzentos anos desde
aquele 7 de setembro de 1822; e, em que pesem as rupturas aqui assinaladas,
quais consequências elas nos trouxeram e nos legaram desde que irromperam entre
nós? Lembrando o título de um dos livros mais conhecidos do antropólogo Roberto
DaMatta eu me e vos pergunto: o que faz e/ou o que fez o Brasil ser o que é
desde então?
Duzentos anos de uma
história conturbada e atravessada por arroubos autoritários definiram os
destinos desta nação que, a meu ver, ainda não conseguiu romper em definitivo
as raízes dos males oriundos do Período Colonial. As raízes do Brasil –
recorrendo ao nome da mais celebrada obra de Sérgio Buarque de Holanda –
continuam de algum modo fincadas e presas no terreno pantanoso das brenhas da
época do domínio português de antes de 1808, quando de tudo se fazia para que
esta então Colônia só servisse, só efetivamente servisse como um grande
fornecedor de riquezas naturais, sem livros, sem escolas, sem trabalho livre,
sem autonomia alguma. Nós, que somos tão obstinadamente dados ao desmatamento e
à destruição, não conseguimos nos livrar de tais raízes.
Transcorridos duzentos anos desde
o famigerado “Independência ou morte” de Dom Pedro I, nós continuamos sendo uma
das nações de mais acentuado nível de desigualdade social do mundo; nós
continuamos com um contingente de milhões de analfabetos com tantos ditos
progressistas demonizando a pedagogia da autonomia, de Paulo Freire; nós
continuamos sem entender, sem respeitar e, numa palavra, sem humanizar
inteiramente os negros, como que mantendo de pé a casa-grande & a senzala
dissecadas no famoso livro de Gilberto Freyre; nós continuamos selvagens ao
extremo, cometendo assassinatos aos magotes com uma sanha e uma voracidade que
tem o seu quê daquele criminoso “refluxo para o passado” de que nos disse
Euclides da Cunha em Os sertões; nós
continuamos a ser o chamado “celeiro do mundo” onde milhares – talvez milhões –
de indivíduos passam fome e/ou não têm segurança alimentar sem que o poder
público trace a geografia da fome, como alertava Josué de Castro, e tome a fome
como um tema proibido, como se ela não existisse nestas paragens.
A marca de duzentos anos e,
como eu disse, o simbolismo da data, deveriam ser, apesar e apesar e apesar de
tudo, de alguma maneira comemorados. Ocorre que, como se não bastassem todas as
mazelas que seguem dominantes, a construção da ordem – daquela ordem de que nos
falou José Murilo de Carvalho e que resultou nestas dos dias atuais – que por
ora domina o poder desta sempre e constantemente testada República democrática,
vivemos dias aterrorizantemente sombrios, no qual se propagam discursos de ódio
na esfera política de modo a dividir a sociedade e mantê-la num permanente
clima de iminente batalha campal e até de decretação de outro período
ditatorial a fim de atender aos anseios e às pretensões do atual mandatário da
nação que, em seus arroubos autoritários e retrógrados, diz falar por todos os
cidadãos. O 7 de setembro era para de algum modo ser comemorado, mas, pelo
contrário, até a próxima quarta-feira chegar, iremos nos manter apreensivos e
com certo medo diante das constantes ameaças que uns e outros têm feito aos
pilares da democracia, querendo, mais uma vez, fazer com que recuemos para o
passado num outro refluxo, desdenhando e pisoteando num idealizado e
esperançoso projeto de bom futuro para este país.
Eis paulopradianamente o
retrato esboçado e acabado do Brasil, da tristeza do Brasil, do lamento do
Brasil, da tragédia do Brasil e da trajetória de um país que, ao largo de uma
independência e de uma muito desejada libertação de um jugo, continua
firmemente preso às forças do autoritarismo e do atraso.
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