28 de dezembro de 2024

Na festa dos 200 anos do Maracatu Estrela Brilhante, de Igaraçu

 Por Sierra




Fotos: Arquivo do Autor
Sede do Maracatu Estrela Brilhante, de Igaraçu: a força e a resistência da cultura popular atravessando e desafiando o tempo


Como muito bem destacou o historiador britânico Eric Hobsbawm, as tradições são invenções humanas; e elas, muitas vezes, parecem ou são consideradas antigas e podem, na verdade, ser invenções bastante recentes e que se estabeleceram com enorme rapidez. Disse-nos ele no clássico livro A invenção das tradições, que organizou com Terence Ranger: "Consideramos que a invenção das tradições é essencialmente um processo de formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao passado, mesmo que pela imposição da repetição. Os historiadores ainda não estudaram adequadamente o processo exato pelo qual tais complexos simbólicos e rituais são criados". (1)

Manifestações que figuram entre as mais celebradas e replicadas no panorama do folclore e da chamada cultura popular pernambucana, os maracatus carregam consigo simbolismos e histórias ancestrais. Existem em Pernambuco dois tipos de maracatu:  os maracatus rurais, típicos da zona canavieira do estado, também chamados de maracatus de baque solto; e os maracatus nação africana ou de baque virado, categoria do Estrela Brilhante, de Igaraçu.






Estandartes do grupo










Fazendo ajustes nos tambores



A tradição sendo passada para as crianças, porque elas são a garantia do futuro dos grupos da cultura popular

O pesquisador e estudioso Roberto Benjamin enfatizou, numa de suas obras, que, embora se afirme e se atribua essa denominação de nação africana ao maracatu de baque virado, não existe na África nada parecido com nos nossos maracatus. Leiamos parte do seu relato:

O maracatu é um folguedo criado pelos negros no Brasil. A sua origem é a festividade católica de reis Negros celebrada na Festa do Rosário [...] Hoje o folguedo se resume ao cortejo - o desfile de uma corte real negra. A organização do cortejo obedece ao estilo das procissões católicas. Os trajes procuram imitar o vestuário do que teria sido a corte portuguesa dos tempos coloniais, sendo visível a influência da roupagem da estatuária barroca, especialmente das imagens de Nossa Senhora [...] A marca da cultura africana está, sem dúvida, na música e na dança, como também na organização dos grupos e sua ligação com os cultos afro-brasileiros. Esta ligação é tão forte que o maracatu tem sido tomado como uma expressão de religiosa. Na verdade o Maracatu é manifestação lúdica, dos grupos religiosos de culto gêge-nagô do Recife. Como a religião é vivenciada plenamente por seus praticantes, é sempre possível encontrar aspectos religiosos nas manifestações profanas. Nos Maracatus são realizados cerimônias propiciatórias, para a obtenção de proteção dos Orixás, visando o sucesso das apresentações e a realização dos desfiles sem incidentes. Também a boneca [a calunga] recebe reverências de natureza religiosa. (2)


A calunga Dona Emília na sexta-feira...


... E no sábado


O bacamarteiro Luiz



A bacamarteira Maria de Lourdes







Eu todo amostrado com minha camiseta alusiva aos 200 anos do maracatu









O polímata admirável Valdemar de Oliveira defendia a ascendência africana dos maracatus de baque virado. Segundo ele, as origens do folguedo estão ligadas à escravaria africana "que se reunia, à porta de certas igrejas como as duas que o Recife tem, do Rosário dos Pretos, ali coroando soberanos negros fictícios - ou, talvez, reais, entre os trazidos no bojo dos navios negreiros". (3) Ainda de acordo com mestre Valdemar de Oliveira, outro indicativo, outra prova da ascendência africana desses maracatus era a presença da figura de um animal sobre rodas - elefante, no Maracatu Elefante; e o leão no Maracatu Leão Coroado - abrindo passagem para os desfiles dos grupos. (4)

No dizer do geógrafo, escritor e poeta Mauro Mota, pernambucano de Nazaré da Mata, a cidade onde os maracatus rurais são uma forte expressão cultural, "O maracatu é um dos aspectos mais pernambucanos do Carnaval de Pernambuco; reminiscência dos antigos reinados do Congo"; (5) e que suas "cantigas refletem a nostalgia ancestral". (6)


Maracatu Estrela Brilhante


E o Maracatu Estrela Brilhante, de Igaraçu, como surgiu? Onde e quando ele começou a ganhar vida? Para contar a você, leitor, um pouco da história desse maracatu bicentenário, eu recorri a um texto da pesquisadora Maria Alice Amorim que faz parte do livro Patrimônios Vivos de Pernambuco.


Eu com o mestre Gilmar de Santana





















Acompanhando a narrativa de Maria Alice Amorim nós ficamos sabendo que, embora a história oral diga que o surgimento do Maracatu Estrela Brilhante remonte ao ano de 1730, a data oficial de sua fundação é 8 de dezembro de 1824, dia de celebração de Nossa Senhora da Conceição; e que seu surgimento ocorreu em Vila Velha, em terras da Ilha de Itamaracá, numa época em que a ilha fazia parte do território de Igaraçu. 

Sem informar em que ano ocorreu a mudança dos indivíduos que mantinham o folguedo para o Alto do Rosário, já na parte de ocupação urbana mais antiga de Igaraçu, onde o maracatu permanece até os dias de hoje, Maria Alice Amorim narrou ainda sobre alguns brincantes que comandaram o maracatu antes que o bastão passasse para o mestre Gilmar de Santana.




























Dona Mariassu, que morreu aos 115 anos, comandava o Maracatu Estrela Brilhante junto com o marido e costurava manualmente as roupas do grupo. A filha do casal, chamada Maria Sérgia da Anunciação e conhecida como Mariú, nasceu em 8 de dezembro de 1898; e começou a participar do brinquedo aos 12 anos, sempre na função de dama-regente. O pai dela, João Francisco da Silva, passou a liderança do maracatu para o marido da filha, Manoel Próximo de Santana, conhecido como Seu Neusa. O tempo correu. E através de gerações o Maracatu Estrela Brilhante sobreviveu: filha do casal Dona Mariú e Seu Neusa, Olga de Santana Batista, nascida em 28 de fevereiro de 1939 e brincante desde os 10 anos, figurou como matriarca e guardiã da tradição, quando sua mãe faleceu; e, após o seu falecimento, o seu filho caçula, que já auxiliava a mãe , passou a comandar o maracatu. Contudo, ainda segundo Maria Alice Amorim, tal percurso não se deu de modo contínuo e ininterrupto, pelo menos no que diz respeito à apresentação pública do maracatu. Contou-nos ela o seguinte:

Entre o final dos anos 1970 e início dos 1980, o maracatu passou quatro anos sem se apresentar, conforme registrado numa reportagem do Diario de Pernambuco, em 11 de fevereiro de 1982, intitulada: "Maracatu volta a desfilar". Adiante, após mais alguns anos desativado em decorrência do falecimento de seu Neusa e da impossibilidade de locomoção de dona Mariu, um grupo de estudiosos da Comissão Pernambucana de Folclore, presidida pelo pesquisador Roberto Benjamin, realizou, durante 1993, um levantamento das toadas e da história do grupo e, assim, foi responsável pela retomada do grupo, em janeiro de 1994. (7)


A festa


Muito embora eu já conhecesse e tivesse acompanhado apresentações do Maracatu Estrela Brilhante, de Igaraçu (existe um homônimo no Recife), eu até então não conhecia a sua sede. E eu fui conhecê-la na sexta-feira 6 de dezembro. E, quando eu cheguei lá, o cenário da festa estava arrumado; e já havia ocorrido a apresentação do grupo Sociedade dos Bacamarteiros do Cabo de Santo Agostinho, segundo me disse o bacamarteiro Luiz, de 77 anos.

Andei por ali. Fotografei a calunga Dona Emília. Comprei ao mestre Gilmar de Santana uma camiseta alusiva aos 200 anos do maracatu que agora está sob a sua direção. E fiquei matutando cá comigo, enquanto mirava uma coisa e outra, que aquela festa não era e/ou não estava condizente com a importância de uma agremiação bicentenária. A mim me pareceu que o evento poderia ter sido maior e com mais visibilidade.










Eu com a historiadora Rita de Cássia Barbosa de Araújo





Como naquela noite de sexta-feira eu me encontrava cansado, porque fora do meu trabalho para lá e as atrações musicais demorassem a chegar para dar início às apresentações, eu vim embora para casa dizendo a mim mesmo que eu voltaria no dia seguinte.

No sábado eu novamente me dirigi até o Alto do Rosário. Encontrei desta feita uma movimentação maior de pessoas nas proximidades do palco e circulando entre as barracas de comida e de artesanato. Integrantes de alguns dos maracatus convidados já estavam se arrumando para abrilhantar a festa. Um bolo com cobertura azul e branco estava no fundo do palco. Lá dentro da sede, tambores ganhavam tratamento. E Dona Emília, no seu cantinho, no seu nicho, trajava outra roupa.

A elegante apresentadora foi para o palco dar as boas-vindas a todos que estavam ali prestigiando o evento. Entre a pequena multidão eu encontrei a historiadora Rita de Cássia Barbosa de Araújo, da Fundação Joaquim Nabuco. E eu acompanhei as apresentações dos seguintes grupos: Maracatu Raízes de Pai Adão, Maracatu Encanto do Dendê e Maracatu Aurora Africana.

A Animação estava boa por lá. E o meu corpo aguentou o quanto pôde a dança e o divertimento, de modo que eu não fiquei ali até o final da festa. E tudo foi tão bom. E o som dos tambores ficou ecoando dentro de mim como a trilha sonora de um grande contentamento. Que coisa boa sentir isso!

Eu espero que o Maracatu Estrela Brilhante, de Igaraçu, permaneça como retrato vivo de uma cultura popular que carrega consigo não apenas beleza e resistência, mas também a alegria e a potência de saberes ancestrais que devem ser preservados.


Notas 


1- Eric Hobsbawm. "Introdução: A invenção das tradições". In Eric Hobsbawm e Terence Ranger (orgs.). A invenção das tradições, p. 15.

2- Roberto Benjamin. Folguedos e danças de Pernambuco, p. 81.

3- Valdemar de Oliveira. "Maracatu". In Arte popular do Nordeste, p. 57.

4- Id. ibid., p. 58.

5- Mauro Mota. "Maracatu". In Folguedos populares, s. p. Leitor, trata-se da reedição de textos referentes aos folguedos populares do Roteiro de arte popular de Pernambuco, publicado sob o patrocínio do Departamento de Extensão Cultural da Universidade Federal de Pernambuco e da Empesa Pernambucana de Turismo. Nesta reedição - e eu não sei qual foi o formato da edição anterior - os textos vieram em pequenas pranchas soltas; e são dez, ao todo, cada qual com ilustrações em preto e branco assinadas por Francisco Neves; e reunidas numa espécie de envelope.

6- Id. ibid.

7- Maria Alice Amorim. "Estrela Brilhante de Igarassu". In Patrimônios Vivos de Pernambuco, p. 93.


Fontes e referências bibliográficas


AMORIM, Maria Alice. "Estrela Brilhante de Igarassu". In Patrimônios Vivos de Pernambuco. 2ª edição revista e ampliada. Recife: Fundarpe, 2014 (p. 91-94).

BENJAMIN, Roberto. Folguedos e danças de Pernambuco. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1989.

HOBSBAWM, Eric. "Introdução: A invenção das tradições". In HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence (orgs.). A invenção das tradições. Trad. Celina Cardim Cavalcante. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012 (p. 11-29).

MOTA, Mauro. "Maracatu". In Folguedos populares. Recife: Bandepe/Comper, 1974.

OLIVEIRA, Valdemar de. "Maracatu". In Arte popular do Nordeste. Hermilo Borba Filho (coord.). Recife: Secretaria de Educação e Cultura da Prefeitura Municipal do Recife/Universidade Federal de Pernambuco, 1966 (p. 57-59).

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