1 de novembro de 2025

Rio de Janeiro: entre o glamour dos cartões-postais e a barbárie disseminada nas favelas e periferias

 Por Sierra

 

Penso no homem que dorme 

nas ruas do Rio

e agora flutua nos rios da rua.

E os barracos na beira do abismo 

deslizam no cinismo da Vieira Souto.

                                                                   Tempestade. Zélia Duncan/Christiaan Oyens

 

Pois paz sem voz, paz sem voz 

não é paz, é medo.

                         Minha alma (A paz que eu não quero). Lauro Farias/Marcelo Lobato/Xandão/Marcelo Yuka/Falcão

 

 

Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress
A imagem do terror e da barbárie praticada pelo Estado. A chacina ocorrida nos complexos de favelas da Penha e do Alemão expôs mais uma vez a este país como o poder público continua, ano após ano, tratando as questões da segurança pública de modo mambembe, cruel e desumano. Não é apenas o Rio de Janeiro que está de luto


A terça-feira, 28 de outubro de 2025, foi mais um dia para não ser esquecido no enredo medonho e lamentável da crônica policial do estado do Rio de Janeiro. Naquele dia uma megaoperação policial nos complexos de favelas do Alemão e da Penha foi deflagrada contra o grupo criminoso Comando Vermelho (CV). As primeiras informações que foram chegando deram conta de que o saldo de mortos durante a operação totalizava mais de 60 vítimas, incluindo 4 policiais, dois civis e dois militares. As horas foram passando, veio a noite e, no dia seguinte, o Brasil e o mundo viram uma dessas imagens aterrorizantes que ficam marcadas para sempre em nossas retinas: dezenas de cadáveres enfileirados no meio de uma praça. Naquele momento, o saldo de mortos saltara para quase o dobro, porque os próprios moradores trataram de recolher os corpos que haviam ficado no meio da mata durante os confrontos.

A lógica perversa de um pensamento dominante numa sociedade doente, violenta e cansada de ver uma Justiça que não pune com severidade delinquentes de todos os matizes e classes sociais, assevera que "bandido bom é bandido morto". Acontece que, além de ser algo absolutamente contrário ao processo civilizatório e à ideia de um Estado democrático garantidor de direitos e deveres para seus cidadãos, essa lógica perversa, que vai muito além da Lei de Talião, só é dirigida ou é dirigida majoritariamente para os pobres, despossuídos e marginalizados, enquanto para os criminosos endinheirados e engravatados, dão-se os privilégios das chicanas jurídicas e o tratamento VIP das prisões domiciliares.

Quem conhece pelo menos um pouco da história da formação e da evolução urbana do Rio de Janeiro, sabe como os pobres, tidos como "indesejáveis" pelas elites, foram, ao longo de todo século XX e depois, entregues à sua própria sorte - caso tenham interesse, leiam livros como Os bestializados (José Murilo de Carvalho), A Revolta da Vacina (Nicolau Sevcenko), Recordações do escrivão Isaías Caminha (Lima Barreto), Cidade febril (Sidney Chalhoub) e Belle époque tropical (Jeffrey Needell) -, expulsos dos espaços centrais da "cidade maravilhosa" e levados a ocupar morros e encostas, sobretudo a partir de uma repelente "belle époque" que tratou de "higienizar" e "embelezar" o centro urbano ao mesmo tempo em que tratava de se livrar dos desvalidos, como quem coloca entulhos num caminhão de coleta de lixo e espera que eles sejam levados para muito, muito longe do local onde eles foram recolhidos.

A formação e a existência de favelas - e ainda mais na quantidade e com as dimensões que elas existem no Rio de Janeiro - por si só são um indicativo vergonhoso e grandiloquente da inoperância, da incompetência e da incapacidade do Estado para garantir condições de vida digna para todos os seus cidadãos. E, onde o Estado é ausente e aonde o Estado não vai, a precariedade de existência se agrava dia após dia.

Não, não Francisco de Goya, não é apenas o sono da razão que produz monstros. Todos e cada um de nós sabemos que viver com dignidade, que viver com confiança no futuro, que viver bem, enfim, requer uma série de demandas da vida prática, quais sejam: moradia em lugares salubres, seguros e de fácil acesso; atendimento em hospitais e postos de saúde; ingresso em estabelecimentos de ensino; disponibilidade de transporte público de passageiros de qualidade; oferta de espaços de lazer, prática de esportes e entretenimento; vagas de empregos nas mais diversas áreas; policiamento e delegacias em pleno funcionamento; etc., etc. E, quando o Estado falha em oferecer tudo isso à população, quando os cidadãos são largados pelo caminho como se não tivessem valia e nem serventia, eles começam a ser aliciados, oprimidos, ameaçados, acossados, dominados e subjugados por um poder paralelo formado por traficantes e também por milicianos que, em troca de alguma suposta proteção, ditam as regras de convivência nessas comunidades, impondo um terror marcado, principalmente, pela exploração de serviços como venda de botijão de gás e serviço de provedor de internet; e cobrando dos comerciantes uma espécie de alvará de funcionamento; além, claro, de inserir jovens da própria comunidade no mundo do crime. Ah, e não podemos nos esquecer de que, nesses lugares dominados por um poder paralelo, a Justiça imperante é a que é estabelecida pelos criminosos que instituem um chamado Tribunal do Crime; e, nesse tribunal, os julgamentos são sumários e com requintes de crueldade, para dizer o mínimo. 

Dentro da lógica perversa, excludente e desumana do "bandido bom é bandido morto", que é uma senha para a prática de todo tipo de desumanidade, cabe uma outra, que é a que leva ao raciocínio medieval de ditos civilizados contra os chamados bárbaros, que quer fazer crer que todos e cada um que habitam em favelas dominadas por criminosos são igualmente criminosos; e, sendo assim, os civilizados apoiam quaisquer ações que visem não a amparar, proteger e estabelecer definitivamente a presença do Estado nesses lugares, e, sim, para varrê-los do mapa. Simples assim. Mas não é assim que deve ser. O Estado precisa estar presente de forma permanente nesses territórios. Aparecer de vez em quando só para pedir votos e matar pessoas aos magotes não soluciona nada. Chacinas não devem ser tomadas como itens de planos de segurança pública. O Estado não deve agir como agem os criminosos.

Infelizmente, nós ainda precisamos evoluir muito no terreno do processo civilizatório. As ações do último dia 28 de outubro das polícias civil e militar do Rio de Janeiro comandadas por Cláudio Castro, um indivíduo que como político e governador é um ótimo crooner que aparenta estar com olhos de permanente ressaca, são mais uma página de terror praticado pelo Estado contra as favelas e periferias cariocas.

Os especialistas em segurança pública são quase unânimes em defender ações efetivas de inteligência das polícias contra o crime organizado, investigando os canais que liberam a entrada ilegal de fuzis e outras armas no país, combatendo o narcotráfico, bloqueando bens e contas, enfim, fazendo com que o poder financeiro desses grupos seja minado, porque, só assim, eles serão enfraquecidos e derrotados.

 Invadir favelas e comunidades para promover matança pode até ser um espetáculo midiático macabro. Só que esse espetáculo expõe não apenas a incapacidade e o descaso do Estado para com a segurança pública; ele revela que a barbárie ainda está no cerne do poder público como panaceia para tudo aquilo que ele não consegue resolver e um completo desprezo para com as vidas dos "indesejáveis" que vivem nas favelas, comunidades e nos tristes e esquecidos subúrbios.

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