Por Sierra
Penso no homem que
dorme
nas ruas do Rio
e agora flutua nos
rios da rua.
E os barracos na
beira do abismo
deslizam no cinismo
da Vieira Souto.
Tempestade. Zélia Duncan/Christiaan Oyens
Pois paz sem voz, paz
sem voz
não é paz, é medo.
Minha
alma (A
paz que eu não quero). Lauro Farias/Marcelo Lobato/Xandão/Marcelo
Yuka/Falcão
A terça-feira, 28 de outubro de 2025, foi mais um dia
para não ser esquecido no enredo medonho e lamentável da crônica policial do
estado do Rio de Janeiro. Naquele dia uma megaoperação policial nos complexos
de favelas do Alemão e da Penha foi deflagrada contra o grupo criminoso Comando
Vermelho (CV). As primeiras informações que foram chegando deram conta de que o
saldo de mortos durante a operação totalizava mais de 60 vítimas, incluindo 4
policiais, dois civis e dois militares. As horas foram passando, veio a noite
e, no dia seguinte, o Brasil e o mundo viram uma dessas imagens aterrorizantes
que ficam marcadas para sempre em nossas retinas: dezenas de cadáveres enfileirados
no meio de uma praça. Naquele momento, o saldo de mortos saltara para quase o
dobro, porque os próprios moradores trataram de recolher os corpos que haviam
ficado no meio da mata durante os confrontos.
A lógica perversa de um pensamento dominante numa
sociedade doente, violenta e cansada de ver uma Justiça que não pune com
severidade delinquentes de todos os matizes e classes sociais, assevera que
"bandido bom é bandido morto". Acontece que, além de ser algo
absolutamente contrário ao processo civilizatório e à ideia de um Estado
democrático garantidor de direitos e deveres para seus cidadãos, essa lógica
perversa, que vai muito além da Lei de Talião, só é dirigida ou é dirigida
majoritariamente para os pobres, despossuídos e marginalizados, enquanto para
os criminosos endinheirados e engravatados, dão-se os privilégios das chicanas
jurídicas e o tratamento VIP das prisões domiciliares.
Quem conhece pelo menos um pouco da história da
formação e da evolução urbana do Rio de Janeiro, sabe como os pobres, tidos
como "indesejáveis" pelas elites, foram, ao longo de todo século XX e
depois, entregues à sua própria sorte - caso tenham interesse, leiam livros
como Os bestializados (José Murilo de
Carvalho), A Revolta da Vacina
(Nicolau Sevcenko), Recordações do
escrivão Isaías Caminha (Lima Barreto), Cidade
febril (Sidney Chalhoub) e Belle
époque tropical (Jeffrey Needell) -, expulsos dos espaços centrais da
"cidade maravilhosa" e levados a ocupar morros e encostas, sobretudo
a partir de uma repelente "belle époque" que tratou de
"higienizar" e "embelezar" o centro urbano ao mesmo tempo
em que tratava de se livrar dos desvalidos, como quem coloca entulhos num
caminhão de coleta de lixo e espera que eles sejam levados para muito, muito
longe do local onde eles foram recolhidos.
A formação e a existência de favelas - e ainda mais na
quantidade e com as dimensões que elas existem no Rio de Janeiro - por si só
são um indicativo vergonhoso e grandiloquente da inoperância, da incompetência
e da incapacidade do Estado para garantir condições de vida digna para todos os
seus cidadãos. E, onde o Estado é ausente e aonde o Estado não vai, a
precariedade de existência se agrava dia após dia.
Não, não Francisco de Goya, não é apenas o sono da
razão que produz monstros. Todos e cada um de nós sabemos que viver com
dignidade, que viver com confiança no futuro, que viver bem, enfim, requer uma
série de demandas da vida prática, quais sejam: moradia em lugares salubres,
seguros e de fácil acesso; atendimento em hospitais e postos de saúde; ingresso
em estabelecimentos de ensino; disponibilidade de transporte público de
passageiros de qualidade; oferta de espaços de lazer, prática de esportes e
entretenimento; vagas de empregos nas mais diversas áreas; policiamento e
delegacias em pleno funcionamento; etc., etc. E, quando o Estado falha em
oferecer tudo isso à população, quando os cidadãos são largados pelo caminho
como se não tivessem valia e nem serventia, eles começam a ser aliciados,
oprimidos, ameaçados, acossados, dominados e subjugados por um poder paralelo
formado por traficantes e também por milicianos que, em troca de alguma suposta
proteção, ditam as regras de convivência nessas comunidades, impondo um terror
marcado, principalmente, pela exploração de serviços como venda de botijão de
gás e serviço de provedor de internet; e cobrando dos comerciantes uma espécie
de alvará de funcionamento; além, claro, de inserir jovens da própria
comunidade no mundo do crime. Ah, e não podemos nos esquecer de que, nesses
lugares dominados por um poder paralelo, a Justiça imperante é a que é estabelecida
pelos criminosos que instituem um chamado Tribunal do Crime; e, nesse tribunal,
os julgamentos são sumários e com requintes de crueldade, para dizer o
mínimo.
Dentro da lógica perversa, excludente e desumana do
"bandido bom é bandido morto", que é uma senha para a prática de todo
tipo de desumanidade, cabe uma outra, que é a que leva ao raciocínio medieval
de ditos civilizados contra os chamados bárbaros, que quer fazer crer que todos
e cada um que habitam em favelas dominadas por criminosos são igualmente criminosos;
e, sendo assim, os civilizados apoiam quaisquer ações que visem não a amparar,
proteger e estabelecer definitivamente a presença do Estado nesses lugares, e,
sim, para varrê-los do mapa. Simples assim. Mas não é assim que deve ser. O
Estado precisa estar presente de forma permanente nesses territórios. Aparecer
de vez em quando só para pedir votos e matar pessoas aos magotes não soluciona
nada. Chacinas não devem ser tomadas como itens de planos de segurança pública.
O Estado não deve agir como agem os criminosos.
Infelizmente, nós ainda precisamos evoluir muito no
terreno do processo civilizatório. As ações do último dia 28 de outubro das
polícias civil e militar do Rio de Janeiro comandadas por Cláudio Castro, um
indivíduo que como político e governador é um ótimo crooner que aparenta estar com olhos de permanente ressaca, são
mais uma página de terror praticado pelo Estado contra as favelas e periferias
cariocas.
Os especialistas em segurança pública são quase
unânimes em defender ações efetivas de inteligência das polícias contra o crime
organizado, investigando os canais que liberam a entrada ilegal de fuzis e
outras armas no país, combatendo o narcotráfico, bloqueando bens e contas,
enfim, fazendo com que o poder financeiro desses grupos seja minado, porque, só
assim, eles serão enfraquecidos e derrotados.
Invadir favelas e comunidades para promover matança pode até ser um espetáculo midiático macabro. Só que esse espetáculo expõe não apenas a incapacidade e o descaso do Estado para com a segurança pública; ele revela que a barbárie ainda está no cerne do poder público como panaceia para tudo aquilo que ele não consegue resolver e um completo desprezo para com as vidas dos "indesejáveis" que vivem nas favelas, comunidades e nos tristes e esquecidos subúrbios.

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