26 de agosto de 2010

A Praça Olavo Bilac

Por Clênio Sierra de Alcântara

Fotos: Ernani Neves


Tempos atrás - há cinco anos precisamente - eu abordei num artigo, ainda que de passagem, o estado deplorável em que, na ocasião, se achavam algumas praças do Recife. Trago outra vez o assunto para a ordem do dia por conta do anúncio de que algumas delas - particularmente as que comportam projetos paisagísticos elaborados pelo renomado Roberto Burle Marx, nos anos 30 do último século, como a Praça Euclides da Cunha, na Madalena, a Praça Artur Oscar (Praça do Arsenal da Marinha), no Recife Antigo, e a Praça da República, em Santo Antônio - estão em processo de tombamento pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), o que pode nos levar a pensar que, agregando esse valor, elas passarão a ser efetivamente mais bem cuidadas.

Desculpe-me o leitor pelo meu olhar voltado quase sempre para os bairros centrais da capital. Isso se deve a basicamente três motivos: o primeiro é o fato de eu manter um contato mais intenso para com eles; o segundo é por enxergá-los como quase resumos do todo; o terceiro é por acreditar que muitos dos vícios das políticas de administração municipal no Brasil, em geral, e no Recife, em particular, continuam a grassar nesses espaços, muito embora - o que é uma contradição desmedida - os burgomestres queiram apresentá-los como cartões-postais, relegando os subúrbios ao segundo plano - não foi, portanto, mero desabafo de um revoltado, quando, referindo-se ao Rio de Janeiro, o escritor Lima Barrreto disse que "os subúrbios são sempre tristes". E, cá para nós, se um prefeito não cuida bem nem dos bairros tradicionais da cidade que administra, que dirá daqueles outros, que constituem a periferia.

No dizer de Murilo Marx, no seu livro Cidade brasileira, a praça, como tal, para reunião de um sem-número de atividades diferentes, surgiu entre nós, de maneira marcante e típica, diante de capelas, de conventos ou das irmandades religiosas. E completou, enfatizando, que ela "Destacava, aqui e ali, na paisagem urbana estes estabelecimentos de prestígio social. Realçava-lhes os edifícios; acolhia os seus frequentadores". Considerando a avaliação feita por esse estudioso, ainda que se leve em conta as mudanças por que passaram as funções desse concorrido equipamento citadino ao longo do tempo, a Praça Olavo Bilac, localizada  entre dois corredores de ônibus, na Rua do Hospício, no bairro da Boa Vista, área central do Recife, perdeu desde há muito esse status. Abandonada há pelo menos dez anos pela Prefeitura, a pracinha, dedicada ao autor do poema Via-láctea, é um dos recantos da cidade no qual se enxerga com grande nitidez o quanto é daninho para os centros urbanos o descaso para com seus passeios públicos.


Não seria exagero dizer que poucos dos muitos dos transeuntes que por ela passam todos os dias sabem que aquele espaço sujo e abandonado constitui na verdade uma praça com nome de batismo e tudo. Talvez mais o soubessem se lessem as placas que deveriam estar afixadas ao busto do "primeiro príncipe dos poetas brasileiros". Mas o busto fica em meio a uma vegetação que compõe um cenário onde não raro se alojam moradores de rua que, claro, intimidam os passantes; e uma das duas placas que nele havia foi desde há muito subtraída.



Busto de Olavo Bilac



A Praça Olavo Bilac está situada num trecho repleto de histórias da cidade. De um lado, escondidos atrás de barracas mal aparelhadas e de entorno repleto de sujeira e águas servidas, estão alguns prédios de bonitas fachadas, como o Brasil Hotel e o núcleo de práticas jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco. Do outro lado, o Parque 13 de Maio, uma das grandes áreas verdes do município, e - eis um dos maiores absurdos que se vê nessa urbe repleta de acentuados contrastes - o imponente edifício-sede da Câmara Municipal. Eu me pergunto: como podem os legisladores do município conviver durante tanto tempo com uma área tão degradada como a que constitui a pequena e singela Praça Olavo Bilac? Como podem essas autoridades proclamar que trabalham em prol da cidade se a praça, que está bem abaixo dos seus narizes, encontra-se em estado tão lamentável?


A respeito do legado do paisagista Roberto Burle Marx para os espaços públicos da capital pernambucana, a pesquisadora Ana Rita Sá Carneiro escreveu no artigo "A paisagem cultural e os jardins de Burle Marx no Recife", que integra o livro História e Paisagem: Ensaios urbanísticos do Recife e de São Luís, que ele "instalou uma nova postura de projeto paisagístico e função urbana do jardim, além de vivência do espaço público em que se entrelaçam a vegetação, o casario, a dinâmica social e a história procurando firmar as raízes brasileiras". Dito isso, é perfeitamente louvável o intento da Fundarpe de querer tombar essas praças. Mas é justo que as outras se mantenham entregues ao abandono? A memória de uma cidade não está apenas em suas grandes representações; mas também em seus espaços mínimos, porque, também eles, agregam significados e valores que contribuíram para o entrelaçamento da trama que constituiu o tecido de sua história.


A política de proteção ao patrimônio histórico no Brasil não é efetiva no sentido de que ela não protege de fato, ela não ampara, ela não garante ao monumento, ao objeto, à manifestação cultural recursos que viabilizem sua existência, sua permanência enquanto signo representativo do patrimônio cultural material e imaterial do país. Quem visita centros históricos e é um observador atento, verifica que há sempre algo ameaçando ruir, ser restaurado ou que está praticamente perdido. Quem acessa o site do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) fica espantado ao ver como é enorme a lista dos bens culturais roubados por este país afora. O roubo do quadro O enterro, de Cândido Portinari, ocorrido recentemente, no Museu de Arte Contemporânea de Olinda, não me surpreendeu nem um pouco, porque, certa feita, quando estive naquele lugar, fiquei tomado de assombro ao ver como o ambiente era desprovido de vigilância; parecia até que as obras ali expostas não tinham o valor que têm; guardadas as devidas proporções, me pareceu, o ambiente, com a sala de uma casa em cujas paredes repousam algumas dessas reproduções de quadros famosos que são vendidas em lojas de artigos de decoração. E o que dizer então dos grandes sobrados do centro histórico de Salvador - enfatize-se que eles eram tombados pelo Iphan - que desabaram nos últimos dias? Segundo os dados divulgados pela Defesa Civil soteropolitana, mais de cem prédios correm o risco de ter o mesmo destino.






Para uma cidade como o Recife, que tem um histórico de destruição do seu patrimônio que é estupidamente vergonhoso, para dizer o mínimo, políticas que promovam a preservação de sua memória serão sempre bem-vindas. O que quero salientar neste artigo é que patrimônio histórico não é grife; e que as iniciativas de preservação deste país não devem contemplar tão-somente os "grandes nomes" que estão por trás do que se  busca preservar, porque o patrimônio histórico só é, de fato, representativo quando não lhe falta, em seu conjunto, nenhuma peça: nem a grande nem a pequena.



 
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