10 de agosto de 2010

Gilberto Freyre e o concreto desconcerto de Brasília

Por Clênio Sierra de Alcântara


imagem: urbanamente.net




Regionalista, tradicionalista e ao mesmo tempo modernista – ele acreditava nessa conciliação de aparentes contrários – Gilberto Freyre tinha, por assim dizer, certas obsessões de ordem intelectual – e pessoal, vide, por exemplo, as tantas vezes em que desancou a figura de Agamenon Magalhães, por motivos sobejamente conhecidos - ; uma delas, sem dúvida alguma, era Brasília, a cidade que se convencionou chamar de “capital da esperança”, e que, no 21 de abril passado comemorou os 50 anos de sua fundação. Na obra freyreana essa cidade aparece repetidas vezes como construção modernista na qual não se soube efetivamente conciliar os saberes das engenharias física, humana e social.
Assim como Palmas, Belo Horizonte, Goiânia, Londrina e Maringá, Brasília goza do status de ser uma cidade planejada num país no qual, de maneira geral, os núcleos urbanos foram surgindo a partir de pequenas povoações, elas próprias constituídas sob os mais diferentes propósitos: ocupações destinadas à defesa territorial; povoados originados a partir de certa atividade econômica e/ou religiosa; emancipação política de determinada área com relação à outra, etc., como tão bem demonstrou Pedro Pinchas Geiger em Evolução da rede urbana brasileira. E, diferentemente do que muitos pensam, dada a sua pouca idade, digamos assim, não foi erigida a partir de um sonho de Juscelino Kubitschek. Ela foi pensada, como capital, ainda no século XIX. Data de 1823 a proposta de José Bonifácio de Andrada e Silva, um dos patronos da Independência, para que a capital do país fosse erguida no interior, longe, portanto, da zona litorânea. Desse modo, quando JK inaugurou a “cidade-monumento”, no Planalto Central, em 1960, exaltando a concretização de uma visão onírica de Dom Bosco – e todos nós sabemos o quanto Juscelino carregou nas tintas para propagar esse suposto onirismo dombosqueano -, realizou, na verdade, um anseio de longa data, por mais nocivo que o empreendimento fosse para o Rio de Janeiro, no que diz respeito ao fato de destituir a “cidade maravilhosa” do posto de sede do governo central.
Do alto da Vivenda Santo Antônio, em Apipucos, no Recife, o autor de Casa-grande e senzala via para além das muito incensadas linhas de concreto armado que tomava o cerrado brasileiro nos meados da década de 50. E não gostava nem um pouco do que os seus olhos aquilinos estavam a enxergar.
No ano de 1960 foi publicada pela Editora Livros do Brasil, de Lisboa – e eu não sei dizer se a coincidência da data foi algo pensado ou mera casualidade, se bem que, em se tratando de acontecimentos relacionados com o autor de Sobrados e mucambos, nada deve ser tomado como fruto do acaso -, a obra na qual aparecem aqueles que devem ser os textos inaugurais da crítica freyreana ao erguimento, como tal, de Brasília. No livro em questão, que é Brasis, Brasil e Brasília, Gilberto Freyre expõe, com sua conhecida verve, os porquês de não aprovar a nova capital que, à época de elaboração dos escritos que comporiam a obra, ainda se encontrava em construção.
Era o autor de Aventura e rotina contrário à Brasília como capital? Não, não era. E isso ele deixa claro ainda no prefácio – atente-se que aqui falo do prefácio à edição brasileira, que é de 1968 -, quando diz que não se deve repudiá-la, uma vez que “representa ela um triunfo brasileiro grande demais para que seus erros sejam considerados à revelia das suas virtudes”. Para logo em seguida deixar bem evidente qual seria o tom da crítica que permearia os artigos do livro referentes a ela: “Mas é preciso que nos resguardemos da repetição dos seus erros e, em arquitetura, pensemos regionalmente e não apenas modernisticamente [...]”.
No dizer do eminente sociólogo Brasília, a “cidade cidadíssima”, era “monumental embora desordenada”; uma “expressão magnífica do que há atualmente de boêmio e de improvisado em quase tudo que se faz de grande e de pequeno no Brasil”. Na conferência intitulada Sugestões em torno de uma nova orientação para as relações inter-regionais no Brasil, proferida na sede da Federação das Indústrias de São Paulo, em 16 de agosto de 1958, na qual defendeu de maneira veemente não só o respeito aos costumes regionais, mas também um modo de desenvolvimento socioeconômico que impedisse de se verem repetidos no país desajustamentos profundos entre populações rurais e urbanas – Canudos e a Revolta do Quebra-quilos foram exemplos disso, segundo avaliou -, numa abordagem em que já insere o conceito de rurbanização, do qual tratará especificamente numa outra obra, anos depois, ele se pergunta que atenção estava se dando, na construção da nova capital, a problemas como esses: “Que participação está tendo o industrial nessa construção monumental? O cientista social? O operário, o arquiteto, o artista capaz de opinar sobre a contribuição da arte na organização do lazer destinado a roubar ao trabalho longas porções de tempo vivo?” Ao que ele próprio responde: “Parece-me que nenhuma ou quase nenhuma”.

Foi, contudo, no artigo Brasília, daquele livro saído pela primeira vez em 1960, que o Mestre de Apipucos expôs de forma mais contundente suas críticas à cidade em processo de construção. Gilberto Freyre fez questão de lembrar que, antes de Brasília veio Goiânia; ou seja, já se dispunha de uma experiência anterior. Registrou que de modo algum estranhava o fato de cidades surgirem assim do dia para noite com arrojos os mais modernos de arte urbana; o que lhe causava estranhamento era elas surgirem “fazendo-se embelezar pelos arquitetos e polir pelos urbanistas”, ignorando – a expressão precisa que ele usa é “à revelia” – os saberes dos sociólogos, dos antropólogos, dos biólogos, dos psicólogos, dos geógrafos – esse discurso será muito repisado numa de suas últimas produções que é Homens, engenharias e rumos sociais, aparecida em 1987, ano de seu falecimento – “capazes de as dotarem de aptidões para seus deveres menos ostensivos e mais terra-a-terra, porém tremendamente mais graves e mais sérios que os apenas urbanísticos, de futuras mães de brasileiros, filhos dessas cidades novas casadas com sertões antigos”.
Em outubro de 1958 ocorreu no Rio de Janeiro um Seminário Internacional sobre “criação de cidades novas”, promovido pela UNESCO. Segundo nos informa Freyre, a discussão que houve ali, no que diz respeito à Brasília, só fez confirmar o que ele vinha desde há muito defendendo: “que, como cidade nova, Brasília não é para ser considerada um problema de arquitetura ou, sequer, de urbanismo, mas de ecologia”. Dessa forma, continua o autor de Região e tradição, não era correto um país pobre como o Brasil “dar-se ao luxo de levantar uma cidade só de arquitetura escultural, com a sua edificação ordenada exclusivamente por arquitetos”.
Outro ponto a destacar nessa tomada de posição de Gilberto Freyre é de que ele de modo algum tomou partido contra Lucio Costa e Oscar Niemeyer. Pelo contrário. Louvo-os muitas vezes a ponto de dizer que a arquitetura escultural de Brasília, além de bela, era “das maiores e das mais puras que já se criaram em qualquer parte do mundo” – bem é verdade que, em Homens, engenharias e rumos sociais, ele os designe como profissionais talentosos, talvez geniais, e “mestres de uma superior arquitetura estética”; mas também como “Suas Majestades Imperiais” que “revelaram-se arcaicos no seu conhecimento do que deva ser a extensão de espaço, numa moderna comunidade urbana, destinada à recreação e ao esporte” -, mas não admitia de jeito nenhum que eles se posicionassem como sendo uma equipe inteira, dispensando a colaboração de estudiosos das mais diversas áreas, chegando “a ponto do arquiteto poder extremar-se em dizer, no caso de Brasília: ‘Brasília c’est moi’”. Continuou pregando que, em vez de terem dado ao Brasil, elitistamente, uma cidade modernistamente européia – ou subeuropéia -, poderiam ter feito de Brasília um grande foco de rurbanização, ou seja, um centro que combinasse valores e estilos de vida rurais com valores e estilos de vida urbanos. E acrescentou que, na construção de Brasília, como foi realizada – “arbitrária e, num mau sentido, ditatorial ou faraonescamente” -, tais arquitetos seguiram os ditames de Charles Edouard Jeanneret-Gris, dito Le Corbusier, “Mais consagrado, oficialmente, num país para o qual não se destinava sua arquitetura de europeu ecologicamente não tropical, do que na sua própria terra, sempre desfavorável ao seu modo de ser modernista”.
Em sua marcha contra Brasília – repita-se, como tal – Gilberto Freyre também procurou destacar juízos de valor de outras autoridades que fossem alinhados com os seus. De acordo com ele, o mestre italiano de arquitetura Bruno Zevi, então professor do Instituto Superior de Arquitetura da Universidade de Veneza, teria dito que o plano da capital sofreria até de “planificação de rigor militar para uma democracia”; além disso, receava Zevi, que o conjunto urbanístico de Brasília tivesse sido condicionado por um plano demasiadamente fechado no seu rigor e que sua arquitetura estivesse sendo a principalmente estética ou decorativa. Já do autor de Admirável mundo novo, o inglês Aldous Huxley, que visitou Freyre em sua residência, no dia 29 de agosto de 1958, reproduziu a seguinte fala no anexo de Brasis, Brasil e Brasília: “[...] Cheguei a S. Paulo vindo de Brasília uns poucos dias depois de suas conferências e soube dos seus reparos sobre Brasília: que estava sendo construída como pura obra de arquitetura e de urbanismo, sem estarem sendo ouvidos os cientistas sociais e que isto importava num erro tremendo. Disse aos jornalistas, mas parece que eles não compreenderam bem meu inglês, que estava de inteiro acordo dom V. e que além dos cientistas sociais, deviam estar sendo ouvidos também os biólogos. Uma cidade nova é um problema de vida e portanto de antropologia, de sociologia e de biologia. De modo algum, um problema apenas de arquitetura”.
Talvez porque fosse inconveniente falar em censura em pleno 1968, ano do decreto do AI-5, foi só no artigo Retornando ao assunto em Brasília na Fundação Milton Campos, que integra a obra Rurbanização: que é?, lançada em 1982, que Gilberto Freyre tornou público que o livro Brasis, Brasil e Brasília não pôde primeiramente ser lançado no Brasil porque fora objeto de uma censura, ainda que não aberta nem declarada, mas uma censura ambígua da parte de editores admiradores quer do presidente Juscelino Kubitschek, quer dos arquitetos Lucio Costa e Oscar Niemeyer, por conta do teor acerbo das abordagens ( no texto introdutório do livro Oh de casa!, aparecido em 1979, Freyre nos conta que quando publicou na revista The Reporter, de Nova York, um artigo enfocando que em Brasília não se recorreu às engenharias humana e social e só à física, defensores da cidade o atacaram bastante; um deles chegou mesmo a dizer que a crítica se dava senão por despeito contra Juscelino, por este não lhe haver dado a Embaixada de Londres, quando Presidente da República.).
É impossível deixarmos de ver em todas essas avaliações feitas por Gilberto Freyre à construção de Brasília, como tal, um certo ressentimento. Vaidoso de seu saber como somente o são nós os pernambucanos – Freyre era o “ditador intelectual” da província, no dizer de João Cabral de Melo Neto -, ele está a todo tempo como que querendo dizer com suas argumentações-protestos: “Poxa, eu dei tantas sugestões ao Juscelino e ele não acatou nenhuma!”. Afinal de contas, é dele próprio a narrativa – contida no aludido artigo mencionado no parágrafo anterior – na qual nos conta que fora convidado pelo presidente Juscelino Kubitschek, seu “amigo pessoal”, para opinar sobre como estava decorrendo, ainda a meio, a construção de Brasília – e que opinara.
Ao confrontarmos a maioria das críticas atuais que são feitas à condição de Brasília, como cidade – e aqui eu quero deixar claro que não incluo os discursos chorosos que a maldizem por ela ter tirado do Rio de Janeiro a condição de capital do país -, com o discurso freyreano, percebemos o quanto são válidas as que foram sustentadas por Gilberto Freyre décadas atrás. O que a mim causa certo espanto é que, no discurso freyreano, seja exaltado, como exemplo eficaz da conciliação das engenharias física, humana e social numa obra de reestruturação urbana, o projeto de repaginação do Rio de Janeiro, verificado durante a Belle Époque carioca, na administração do presidente Rodrigues Alves (1902-1906) – e ele criticou deveras certos aspectos da ação do prefeito Pereira Passos no livro Ordem e Progresso -, quando tomamos conhecimento, através de estudos como Literatura como missão, do Nicolau Sevcenko, e Os bestializados, do José Murilo de Carvalho, do quanto foi daninha para o povo despossuído essa modernização levada a cabo, na verdade, à maneira do que Georges-Eugène Haussmann realizou na Paris baudelaireana, o que quer dizer, autoritária, arbitrária e excludente.
Embora nunca tenha admitido – pelo menos que eu saiba – Gilberto Freyre era um ardoroso militante da visão de Camillo Sitte a respeito das cidades. E tão apaixonado era ele pelo modo sitteano de enxergar o universo citadino – tudo está contido no belo A construção das cidades segundo seus princípios artísticos, de autoria desse escritor vienense cujas idéias foram duramente rechaçadas por Le Corbusier – que, talvez também por isso, até hoje seus críticos não o perdoem pelo fato de ele ter apoiado a derrubada da Igreja do Senhor Bom Jesus dos Martírios – uma construção do século XVIII, que deu lugar a uma avenida funcionalmente irrelevante – no Recife da década de 70, que teve entre os seus defensores – vejam só que ironia – o mestre Lucio Costa.

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