Por Clênio Sierra de Alcântara
A minha lembrança mais remota do Natal é toda ela marcada por um parque de diversões. Isto porque na cidade em que nasci, Abreu e Lima – e é assim até hoje -, logo nos primeiros dias de dezembro um enorme parque começava a ser montado no imenso pátio da antiga feira livre; e as noites do período eram marcadas pelas idas e vindas de centenas de pessoas que afluíam para lá, oriundas até de cidades vizinhas. Não havia em Abreu e Lima outro evento festivo que atraísse tanta gente como o parque de diversões. Que eu me lembre, nunca minha mãe me levou até ele; sendo eu uma criança que sempre teve plena liberdade de, como se diz por aqui, ganhar o mundo, grandes momentos de alegria eu vivenciei sozinho ali, no meio da multidão. Adorava – e continuo considerando-a uma coisa muito bonita – comer maçã-do-amor, ainda que por vezes eu tivesse dificuldade com o doce que grudava nos dentes; curtia demais – e com um frio danado na barriga, porque pensava que em algum momento o maquinismo que a prendia iria arrebentar – o brinquedo que chamávamos de barcaça; torcia muito para quando estivesse na roda-gigante, ela estacionasse justamente no instante em que eu me encontrasse no ponto mais elevado de sua movimentação; e nunca fui ao pavilhão da Monga, a mulher-macaco, porque eu morria de medo – falavam, eu nunca esqueci disso, que, na escuridão, pessoas se aproveitavam para sacanear outras batendo nelas.
Nunca acreditei em Papai Noel. Natal, para mim, foi, pelo menos até os
doze anos de idade, sinônimo de parque de diversões. E o encanto acabou quando,
em 1987, fui passar as festas em Olinda, na casa dos meus padrinhos, e lá não
havia parque nenhum, de modo que, para mim, na verdade, Natal não existia ali,
só em Abreu e Lima. Foi uma completa e total frustração a que vivi naquela
noite.
Não sei a partir de que momento eu comecei a tomar abuso dessa coisa
macaqueada que é montar “árvores de Natal” e os patéticos presépios, pôr
guirlandas aqui e ali, encher lugares com pisca-piscas, fazer imitação de neve
e ficar olhando para essa figura grotesca que é chamada de Papai Noel. Na minha
casa, a depender de mim, não é posto nada que sequer faça mera alusão às comemorações
natalinas.
Poucos dias antes do Natal passado eu concluí a leitura do pequeno livro Quarto de despejo, da Carolina Maria de Jesus. Negra, mãe solteira
de três filhos – dois meninos e uma menina -, paupérrima e moradora da Favela
do Canindé, em São Paulo, bem pertinho do Rio Tietê, sua vida foi, durante
muitos anos, uma medonha e triste sucessividade de privações, humilhações,
tristeza e fome.
Passei alguns maus bocados na vida. Morei durante muitos anos numa
modestíssima casa de taipa; minha mãe, que também amargou a condição de ser
solteira com dois filhos para cuidar, apanhou de madrugada – para que não a
vissem fazendo isso -, no lixo, uma privada para pôr no nosso banheiro; fui
várias vezes humilhado nas casas de pessoas que diziam à minha mãe que estavam
me oferecendo abrigo; e enfrentei na infância situações ruins típicas da idade adulta... Mas nada do que vivi se compara com os sofrimentos
enfrentados por Carolina e pelos seus rebentos, porque eu pelo menos não cheguei a passar
fome.
Diariamente a destemida Carolina Maria de Jesus deixava muito cedo o seu
barraco e percorria logradouros como a Av. Tiradentes e a Rua Porto Seguro para
catar papel, garrafas, ferro e tudo o que pudesse ser convertido em dinheiro
para que ela garantisse, ao menos naquele dia, algum alimento para João José,
José Carlos e Vera Eunice, seus filhos. Nem sempre o material arrecadado gerava
o suficiente para a compra de comida. Então a incansável Carolina catava uma
coisa e outra no chão da feira livre, pedia ossos num frigorífico para fazer
sopa e apanhava comida jogada no lixo – algo que os seus filhos também faziam.
“Tudo quanto eu encontro no lixo eu cato para vender [...] Fiquei pensando que
precisava comprar pão, sabão e leite para a Vera Eunice. E os 13 cruzeiros não
dava [...] Cato papel, lavo roupa para dois jovens, permaneço na rua o dia
todo. E estou sempre em falta”, registrou Carolina na página do seu diário no
dia 16 de julho de 1955, que foi, aliás, o segundo dia de registros no caderno
achado num monturo que ela resolveu converter em um confessor de infortúnios e
sonhos.
Tantas e tão sérias privações por mais que às vezes levassem Carolina a
pensar em desaparecer do mundo cometendo suicídio, não retiraram dela anseios e
fantasias. Mergulhada num universo de pobreza extrema, Carolina Maria de Jesus
chegara à favela já sabendo ler e escrever, o que era algo espantoso, visto que
seus vizinhos eram muitos deles analfabetos. E, ao longo das páginas que ela
foi preenchendo, nota-se como era nítida sua consciência de que detinha um
poder verdadeiro: saber ler e escrever, mais do que simples habilidades, eram até armas de vingança – aqui e ali ela ameaça colocar fulano e sicrano no seu
“livro”: “[...] Vocês são incultas, não pode compreender. Vou escrever um livro
referente a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês me fazem
[...] A Silvia pediu-me para retirar o seu nome do meu livro”, ela anotou no
dia 19 de julho de 1955. Carolina alimentava o propósito de ver seus escritos
transformados em livro. Chegou até a enviar os originais para o Reader’s
Digest; e recebeu-os de volta.
Não se pense que os registros do diário são um primor de literatura. Na
verdade são descrições simples e cruas recheadas de erros gramaticais e eivadas de uma
dose consistente de desilusões e tristezas: “No sonho eu estava alegre”, ela
destacou em 17 de outubro de 1958. Nelas a sofrida Carolina vai esmiuçando o
cotidiano de privações dos moradores da Canindé apontando vícios e cenas de
violência sem esquecer de mencionar a presença sazonal de políticos em busca de
votos. Em mais de um apontamento ela expõe o seu desejo de conseguir algum dia
deixar a favela e ir morar noutro lugar, numa casa de alvenaria: “Hoje eu
amanheci rouca. Era 4 horas quando eu fui pegar agua. Puis agua para fazer café
[...] Estou tão triste! Se eu pudesse mudar desta favela! Isto é obra do
Diabo”, foi assim que ela iniciou a anotação do dia 29 de junho de 1959.
Percorrer as páginas do diário de Carolina Maria de Jesus é uma
experiência necessária como conhecimento do retrato de uma época, conquanto
ainda hoje neste país que tanto avançou em termos socioeconômicos nas últimas
décadas, se conservem em todos os seus quadrantes inúmeras favelas onde
pessoas permanecem em condições subumanas como nas que viviam Carolina e os
demais moradores da Favela do Canindé.
Com o auxílio precioso do jornalista Audálio Dantas – muitas vezes em
nossa vida precisamos do auxílio de uma mão amiga -, o diário de Carolina Maria
de Jesus saiu de uma reportagem publicada pela revista O Cruzeiro, em junho de 1959, para as páginas de um livro intitulado Quarto de despejo, lançado no Brasil no ano seguinte pela Editora
Francisco Alves, do Rio de Janeiro, e que seria traduzido em pelo menos treze
idiomas. (A edição que eu possuo é a terceira; e foi lançada pela Editora
Edibolso, de São Paulo, em 1976). Em outubro do ano passado, na ocasião em que
visitei a Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, vi expostos alguns dos
cadernos que pertenceram à Carolina, numa acanhadíssima alusão pela passagem do
centenário do seu nascimento.
Catando papel e toda sorte de material que pudesse render algum
dinheiro, Carolina Maria de Jesus foi atravessando seu cotidiano de miséria
como quem vive à espera de ver expiada a sua condenação. Carolina escrevia
versos. Carolina quis um dia ir cantar – ela compunha; e chegou lançar um disco
pela RCA Victor em 1961 – no Circo Irmãos Mello. Carolina tinha plena
consciência de que o mundo da favela e as privações por que passava eram muito
mais do que um estado de existência: “Dizem que o Brasil já foi bom. Mas eu não
sou da epoca do Brasil bom... Hoje eu fui me olhar no espelho. Fiquei
horrorizada. O meu rosto é quase igual ao de minha saudosa mãe. E estou sem
dente. Magra. Pudera! O medo de morrer de fome!”, eis o que foi registrado por
ela no dia 22 de junho de 1959. Por essa época o Brasil oficial assombrava o
mundo com a construção de Brasília no Planalto Central. Era como se o país
tivesse alcançado um nível de desenvolvimento socioeconômico como poucos. Era
como se as encantadoras melodias da Bossa Nova embalassem um estilo de vida que
era de todos os brasileiros. Era como se os quartos de despejo só existissem na
imaginação fértil de Carolina Maria de Jesus.
Não se vê os movimentos de consciência negra falarem de personagens como
a mineira de Sacramento Carolina Maria de Jesus. O chamado Movimento Negro só
quer saber de Zumbi dos Palmares, da escravidão e dos cultos religiosos de
matriz africana, esquecendo que indivíduos como o poeta Cruz e Souza, o
romancista Lima Barreto, o marinheiro João Cândido, a catadora de recicláveis
Carolina Maria de Jesus e tantos outros são também eles parte integrante da
longa história de resistência e superação da população negra no Brasil; e ignorar nos debates a trajetória de pessoas como essas é repetir o
feitio dos ditos dominadores: é narrar uma história repleta de lacunas; é
perpetuar uma mais do que execrável lei do silêncio e da omissão.
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