31 de janeiro de 2015

Vai embora, miséria!


Por Clênio Sierra de Alcântara




Foto: internet.   Consagração: Carolina Maria de Jesus ao lado de Clarice Lispector. Embora muitíssimo distante da relevância literária alcançada pela autora de Felicidade clandestina, Carolina ficou também imortalizada ao descrever um cotidiano todo ele marcado por privações. Adoro esta foto porque ela mostra duas mulheres - uma branca e outra negra - que se firmaram nas letras de modo marcante, cada uma a seu modo, descrevendo instâncias diversas da existência humana. Coincidentemente elas nos deixaram no mesmo ano de 1977.



A minha lembrança mais remota do Natal é toda ela marcada por um parque de diversões. Isto porque na cidade em que nasci, Abreu e Lima – e é assim até hoje -, logo nos primeiros dias de dezembro um enorme parque começava a ser montado no imenso pátio da antiga feira livre; e as noites do período eram marcadas pelas idas e vindas de centenas de pessoas que afluíam para lá, oriundas até de cidades vizinhas. Não havia em Abreu e Lima outro evento festivo que atraísse tanta gente como o parque de diversões. Que eu me lembre, nunca minha mãe me levou até ele; sendo eu uma criança que sempre teve plena liberdade de, como se diz por aqui, ganhar o mundo, grandes momentos de alegria eu vivenciei sozinho ali, no meio da multidão. Adorava – e continuo considerando-a uma coisa muito bonita – comer maçã-do-amor, ainda que por vezes eu tivesse dificuldade com o doce que grudava nos dentes; curtia demais – e com um frio danado na barriga, porque pensava que em algum momento o maquinismo que a prendia iria arrebentar – o brinquedo que chamávamos de barcaça; torcia muito para quando estivesse na roda-gigante, ela estacionasse justamente no instante em que eu me encontrasse no ponto mais elevado de sua movimentação; e nunca fui ao pavilhão da Monga, a mulher-macaco, porque eu morria de medo – falavam, eu nunca esqueci disso, que, na escuridão, pessoas se aproveitavam para sacanear outras batendo nelas.

Nunca acreditei em Papai Noel. Natal, para mim, foi, pelo menos até os doze anos de idade, sinônimo de parque de diversões. E o encanto acabou quando, em 1987, fui passar as festas em Olinda, na casa dos meus padrinhos, e lá não havia parque nenhum, de modo que, para mim, na verdade, Natal não existia ali, só em Abreu e Lima. Foi uma completa e total frustração a que vivi naquela noite.

Não sei a partir de que momento eu comecei a tomar abuso dessa coisa macaqueada que é montar “árvores de Natal” e os patéticos presépios, pôr guirlandas aqui e ali, encher lugares com pisca-piscas, fazer imitação de neve e ficar olhando para essa figura grotesca que é chamada de Papai Noel. Na minha casa, a depender de mim, não é posto nada que sequer faça mera alusão às comemorações natalinas.

Poucos dias antes do Natal passado eu concluí a leitura do pequeno livro Quarto de despejo, da Carolina Maria de Jesus. Negra, mãe solteira de três filhos – dois meninos e uma menina -, paupérrima e moradora da Favela do Canindé, em São Paulo, bem pertinho do Rio Tietê, sua vida foi, durante muitos anos, uma medonha e triste sucessividade de privações, humilhações, tristeza e fome.

Passei alguns maus bocados na vida. Morei durante muitos anos numa modestíssima casa de taipa; minha mãe, que também amargou a condição de ser solteira com dois filhos para cuidar, apanhou de madrugada – para que não a vissem fazendo isso -, no lixo, uma privada para pôr no nosso banheiro;  fui várias vezes humilhado nas casas de pessoas que diziam à minha mãe que estavam me oferecendo abrigo; e enfrentei na infância situações ruins típicas da idade adulta... Mas nada do que vivi se compara com os sofrimentos enfrentados por Carolina e pelos seus rebentos, porque eu pelo menos não cheguei a passar fome.

Diariamente a destemida Carolina Maria de Jesus deixava muito cedo o seu barraco e percorria logradouros como a Av. Tiradentes e a Rua Porto Seguro para catar papel, garrafas, ferro e tudo o que pudesse ser convertido em dinheiro para que ela garantisse, ao menos naquele dia, algum alimento para João José, José Carlos e Vera Eunice, seus filhos. Nem sempre o material arrecadado gerava o suficiente para a compra de comida. Então a incansável Carolina catava uma coisa e outra no chão da feira livre, pedia ossos num frigorífico para fazer sopa e apanhava comida jogada no lixo – algo que os seus filhos também faziam. “Tudo quanto eu encontro no lixo eu cato para vender [...] Fiquei pensando que precisava comprar pão, sabão e leite para a Vera Eunice. E os 13 cruzeiros não dava [...] Cato papel, lavo roupa para dois jovens, permaneço na rua o dia todo. E estou sempre em falta”, registrou Carolina na página do seu diário no dia 16 de julho de 1955, que foi, aliás, o segundo dia de registros no caderno achado num monturo que ela resolveu converter em um confessor de infortúnios e sonhos.

Tantas e tão sérias privações por mais que às vezes levassem Carolina a pensar em desaparecer do mundo cometendo suicídio, não retiraram dela anseios e fantasias. Mergulhada num universo de pobreza extrema, Carolina Maria de Jesus chegara à favela já sabendo ler e escrever, o que era algo espantoso, visto que seus vizinhos eram muitos deles analfabetos. E, ao longo das páginas que ela foi preenchendo, nota-se como era nítida sua consciência de que detinha um poder verdadeiro: saber ler e escrever, mais do que simples habilidades, eram até armas de vingança – aqui e ali ela ameaça colocar fulano e sicrano no seu “livro”: “[...] Vocês são incultas, não pode compreender. Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês me fazem [...] A Silvia pediu-me para retirar o seu nome do meu livro”, ela anotou no dia 19 de julho de 1955. Carolina alimentava o propósito de ver seus escritos transformados em livro. Chegou até a enviar os originais para o Reader’s Digest; e recebeu-os de volta.

Não se pense que os registros do diário são um primor de literatura. Na verdade são descrições simples e cruas recheadas de erros gramaticais e eivadas de uma dose consistente de desilusões e tristezas: “No sonho eu estava alegre”, ela destacou em 17 de outubro de 1958. Nelas a sofrida Carolina vai esmiuçando o cotidiano de privações dos moradores da Canindé apontando vícios e cenas de violência  sem esquecer de mencionar a presença sazonal de políticos em busca de votos. Em mais de um apontamento ela expõe o seu desejo de conseguir algum dia deixar a favela e ir morar noutro lugar, numa casa de alvenaria: “Hoje eu amanheci rouca. Era 4 horas quando eu fui pegar agua. Puis agua para fazer café [...] Estou tão triste! Se eu pudesse mudar desta favela! Isto é obra do Diabo”, foi assim que ela iniciou a anotação do dia 29 de junho de 1959.

Percorrer as páginas do diário de Carolina Maria de Jesus é uma experiência necessária como conhecimento do retrato de uma época, conquanto ainda hoje neste país que tanto avançou em termos socioeconômicos nas últimas décadas, se conservem em todos os seus quadrantes inúmeras favelas onde pessoas permanecem em condições subumanas como nas que viviam Carolina e os demais moradores da Favela do Canindé.

Com o auxílio precioso do jornalista Audálio Dantas – muitas vezes em nossa vida precisamos do auxílio de uma mão amiga -, o diário de Carolina Maria de Jesus saiu de uma reportagem publicada pela revista O Cruzeiro, em junho de 1959, para as páginas de um livro intitulado Quarto de despejo, lançado no Brasil no ano seguinte pela Editora Francisco Alves, do Rio de Janeiro, e que seria traduzido em pelo menos treze idiomas. (A edição que eu possuo é a terceira; e foi lançada pela Editora Edibolso, de São Paulo, em 1976). Em outubro do ano passado, na ocasião em que visitei a Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, vi expostos alguns dos cadernos que pertenceram à Carolina, numa acanhadíssima alusão pela passagem do centenário do seu nascimento.

Catando papel e toda sorte de material que pudesse render algum dinheiro, Carolina Maria de Jesus foi atravessando seu cotidiano de miséria como quem vive à espera de ver expiada a sua condenação. Carolina escrevia versos. Carolina quis um dia ir cantar – ela compunha; e chegou lançar um disco pela RCA Victor em 1961 – no Circo Irmãos Mello. Carolina tinha plena consciência de que o mundo da favela e as privações por que passava eram muito mais do que um estado de existência: “Dizem que o Brasil já foi bom. Mas eu não sou da epoca do Brasil bom... Hoje eu fui me olhar no espelho. Fiquei horrorizada. O meu rosto é quase igual ao de minha saudosa mãe. E estou sem dente. Magra. Pudera! O medo de morrer de fome!”, eis o que foi registrado por ela no dia 22 de junho de 1959. Por essa época o Brasil oficial assombrava o mundo com a construção de Brasília no Planalto Central. Era como se o país tivesse alcançado um nível de desenvolvimento socioeconômico como poucos. Era como se as encantadoras melodias da Bossa Nova embalassem um estilo de vida que era de todos os brasileiros. Era como se os quartos de despejo só existissem na imaginação fértil de Carolina Maria de Jesus.

Não se vê os movimentos de consciência negra falarem de personagens como a mineira de Sacramento Carolina Maria de Jesus. O chamado Movimento Negro só quer saber de Zumbi dos Palmares, da escravidão e dos cultos religiosos de matriz africana, esquecendo que indivíduos como o poeta Cruz e Souza, o romancista Lima Barreto, o marinheiro João Cândido, a catadora de recicláveis Carolina Maria de Jesus e tantos outros são também eles parte integrante da longa história de resistência e superação da população negra no Brasil;  e ignorar nos debates a trajetória de pessoas como essas é repetir o feitio dos ditos dominadores: é narrar uma história repleta de lacunas; é perpetuar uma mais do que execrável lei do silêncio e da omissão. 

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