Quando,
na segunda metade da década de 90 do século passado, o Recife e a vizinha
Olinda fervilhavam com o Movimento Manguebeat, que, além de promover um, podemos
dizer, reprocessamento de ritmos genuinamente nordestinos – maracatu, coco, ciranda e embolada contribuíram para encorpar o apetecedor caldo cultural – com grupos como Chico Science e Nação Zumbi e Mundo Livre
S/A, se estendeu para outras frentes como moda e arte cinematográfica, propondo
não apenas uma redescoberta de valores culturais, mas também uma discussão e
/ou entendimento da realidade que marcava aquele momento de transição secular,
no qual palafitas, mocambos e favelas mostravam que homens-caranguejos e
homens-gabirus continuavam proliferando nos mangues, subterrâneos e arredores
da capital, figuras como Mestre Salustiano, Lia de Itamaracá e Selma do Coco,
guardiões e ícones de folguedos enquadrados no que se convencionou chamar de
“cultura popular”, ganharam uma projeção nunca antes vista.
Selma
Ferreira da Silva, pernambucana de Vitória de Santo Antão, onde nasceu em 1929,
foi uma dessas criaturas às quais a vida impõe duras penas e, talvez, como
compensação, lhes confere um talento artístico que faz delas como que espécies
de totens aos quais as reverências são parte de um rito mais do que merecido.
Repetindo um movimento de tantos que saem de seus lugares de origem e rumam
para a capital em busca de melhoria de vida, Selma amargou a dura realidade de
ser mulher, negra, pobre e analfabeta numa metrópole que nunca deixou de
ser excludente – como, aliás, o são todas as grandes cidades. Conciliando seu
cotidiano de necessidades com a venda de tapioca em Olinda, para onde se mudou
depois de deixar o Recife, e o envolvimento com o folguedo coco, Selma, que
ficaria conhecida como Dona Selma do Coco, viu a sua rotina diária virar um
rebuliço dos bons em meio à agitação que sacudia a Manguetown nos anos 90.
Ciceroneada
pelo produtor Beto Hees, Selma do Coco realizou diversas apresentações na
Alemanha e gravou um disco na cidade de Berlim, que foi programado para ser
lançado aqui no Brasil. De volta à terra natal e já gozando de certa fama –
nunca esqueci de uma narrativa publicada pela revista Marie Claire na qual ela contava da satisfação de ter virado pop star já então com mais de sessenta
anos de idade; também não esqueço que assisti à sua apresentação no Domingão do Faustão, performance esta
que foi prejudicada pela habitual truculência do abobalhado Fausto Silva -,
Dona Selma foi assediada pela gravadora Paradoxx Music, que queria aproveitar o
boom que a música pernambucana
atravessava e a notoriedade que essa artista alcançara. Desta forma, sem nem sequer
comunicar o fato àquele produtor, a coquista assinou contrato com a gravadora.
“É claro que pesou o fato de ela ser uma artista que deve ter sido muito
enganada na vida e tal. Sem contar que certamente ela estava deslumbrada com a
situação. Seja como for, eu fiquei muito triste quando soube que ela tinha
feito isso”, me falou em tom de desabafo Beto Hees. Beto me disse ainda que
esse dissabor não os afastou de maneira alguma; e que eles firmaram parceria em
outros projetos.
Foi
com a música “A rolinha”, que ela própria compôs, que Dona Selma do Coco caiu
na boca do povo. Não bastassem os versos que carregam um lascivo duplo sentido,
afinal, rola é, também, um dos nomes do pênis – diz o coro: “Oi corre, corre,
corre/ Pega, pega minha rola/ Avoa, avoa, avoa/ Pega, pega minha rola” -, o
modo escrachado, a greia, a marcação “Rá-rá, Rá-rá” e a descontração esfuziante
de Dona Selma contagiavam a plateia. Quem alguma vez a acompanhou durante um
show decerto que sentiu uma vontade danada de seguir a assistência e mexer o
corpo no ritmo do coco.
Em
decorrência de uma queda nas dependências de sua casa, em Olinda, Dona Selma fraturou
o fêmur direito e ficou hospitalizada durante quase um mês no Hospital Miguel
Arraes, em Paulista, onde faleceu no último dia 9 de maio. Muito embora tenha
feito a cobertura do festivo velório da artista, que foi sepultada no cemitério
de Guadalupe, em Olinda, a grande imprensa do estado não fez saber ao público
que a carismática cantora, uma senhora de 85 anos de idade, que era por lei
reconhecida como Patrimônio Vivo de Pernambuco e que se encontrava há tantos
dias internada num leito hospitalar, morreu sem ter chegado a receber uns
cachês que a Prefeitura do Recife lhe devia de apresentações ocorridas no
Carnaval passado.
De
maneira bastante crítica e esclarecedora Roberto Benjamin, a certa altura do
seu livro Folguedos e danças de
Pernambuco (2ª ed. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1989, p.
32), nos diz que, em determinadas circunstâncias, “as manifestações culturais
foram subordinadas aos interesses do atendimento turístico, sem nenhuma
preocupação com a desagregação e perda de autenticidade do folclore”. Quem
acompanha a luta que inúmeros artistas da quase sempre maltratada cultura
popular enfrentam para manter seus folguedos com alguma dignidade, compreende
que o que escreveu Roberto Benjamin continua na ordem do dia. Embora em um
momento tenha, digamos, feito parte do mainstream,
ao ter um disco lançado por uma gravadora de renome nacional, Dona Selma do
Coco era uma artista popular que se apresentava basicamente nos eventos
promovidos pelos governos estaduais e municipais que, como se sabe, costumam
contratar artistas como ela tratando-os como sub-artistas, com cachês por vezes
irrisórios que quase sempre demoram meses para serem pagos. Tratados como meros
personagens folclóricos e atrações de segunda categoria esses artistas preenchem
os espaços que sobram nas grades de programação oficiais como elementos
exóticos a serem apreciados por turistas. E só.
Com
a morte de Dona Selma do Coco – também recentemente faleceu Mestre Camarão – a
cultura pernambucana perdeu uma de suas figuras de proa. Selma esbanjava
alegria e talento e, com o perdão do clichê, vai realmente fazer falta.
(Artigo publicado também in O Monitor [Garanhuns], nº 174, maio de 2015, Opinião, p. 2)
(Artigo publicado também in O Monitor [Garanhuns], nº 174, maio de 2015, Opinião, p. 2)
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