15 de maio de 2015

Não cabe ninguém mais, não, motorista!

Por Clênio Sierra de Alcântara





Lotado: a precariedade do sistema de transporte público de passageiros penaliza milhares de pessoas todos os dias neste país e as autoridades continuam agindo como se isso não fosse algo importante


                                             Especialmente para Camila Mirele Pires da Silva, in memorian



Na noite do mesmo dia 8 de maio em que eu publiquei um artigo em que tratava dos problemas provocados pela superabundância de veículos nas ruas e da falta de ações eficazes do poder público e da sociedade civil organizada para enfrentar as questões de mobilidade urbana nas cidades, em geral, e no Recife, em particular – o texto tem por título “Cidades movidas a gasolina” -, eis que  a capital pernambucana foi cenário de um acontecimento trágico que diz muito da precariedade do sistema de transporte público de passageiros, algo que eu não esqueci de mencionar naquela abordagem: tendo embarcado num coletivo superlotado na Cidade Universitária, a jovem estudante de Biomedicina Camila Mirele Pires da Silva, de apenas 18 anos, caiu de um ônibus em movimento pela porta central que foi aberta, ao que parece, para que Camila conseguisse livrar sua bolsa que ficara presa (“Família de Camila em busca de justiça”. Diario de Pernambuco, Recife, 11 de maio de 2015, Local, p. A7). Caída na calçada, a adolescente ainda chegou a ser conduzida ao Hospital Getulio Vargas, mas não resistiu aos ferimentos e faleceu. 

Se existe um assunto sobre o qual eu posso falar com bastante propriedade é esse de utilização de transporte público de passageiros, porque sou usuário de ônibus desde que eu me entendo por gente. Em vista de tudo o que eu já presenciei em embarques, deslocamentos e desembarques, posso dizer, com absoluta franqueza, que o caso que vitimou a jovem Camila Mirele tratou-se fundamentalmente de uma tragédia anunciada e, de modo algum, de uma fatalidade, como alguns chegaram a declarar.

O sistema de transporte público de passageiros que opera na Região Metropolitana do Recife não é ruim, é péssimo. A frota de ônibus é constantemente renovada; busca-se criar linhas que atendam determinadas comunidades; há um evidente cuidado em manter os coletivos asseados; etc. Mas isso não resolve o fundamental, que é transportar com conforto e segurança a quantidade enorme de passageiros, sobretudo nos horários de pico. De modo que de nada adianta que se providenciem ônibus novos com ar-condicionado, câmeras de segurança e tudo mais e que se criem novas linhas para atender outros itinerários, se o essencial, que é a manutenção de um maior número de coletivos circulando em menores intervalos de tempo não ocorre. Desta forma, o que comumente se assiste é à cenas de coletivos superlotados cruzando as rodovias da Região Metropolitana do Recife que, como se sabe, é uma das maiores do pais.

A operacionalidade do sistema de transporte público de passageiros que vigora no Recife e nas cidades circunvizinhas apresenta flagrantes desrespeitos não apenas aos usuários, mas também às leis e aos regulamentos mais comezinhos. Quem circula nos ônibus verifica, por exemplo, que, embora aqui e ali apareçam afixados nas janelas avisos informando da proibição da ação de vendedores e pedintes no interior dos coletivos, dificilmente alguém faz uma viagem sem que seja importunado por pelo menos dois indivíduos que, além disso, embarcam sem pagar passagem.

A legislação vigente determina que uma van, um carro, uma kombi, um caminhão não podem conduzir um número de ocupantes maior do que a quantidade de assentos. A lei em vigor estabelece que motoristas e demais ocupantes de vans, carros, kombis e caminhões devem, obrigatoriamente, fazer uso do cinto de segurança. O marco legal tipifica como infração o ato de conduzir em automóveis crianças de um ano até quatro anos de idade, sem que elas estejam acomodadas em cadeirinhas que são presas aos assentos. Considerando que o desrespeito a tais determinações acarreta multa e pontos negativos na carteia de habilitação do condutor eu me pergunto, caro leitor, por que é que sobre o sistema de transporte público de passageiros essas regras não têm efeito? Por que é que, nos ônibus, motoristas, cobradores e passageiros não fazem uso do cinto de segurança? Por que é que, nos ônibus, bebês podem ser acomodados nos colos de suas mães e/ou responsáveis? Por que é que, nos ônibus, não vale a determinação de um número x de ocupantes e as pessoas podem ser conduzidas de pé e sem a mínima segurança?

Não sei se todos, mas pelo menos grande parte dos ônibus do sistema de transporte público de passageiros da Região Metropolitana do Recife trazem no painel, acima do tabeliê e próximo ao aviso “Fale com o motorista somente o indispensável”, a informação inteiramente irrelevante – para não dizer acintosa – sobre a quantidade máxima de passageiros de pé – isso mesmo, de pé – e sentados que o veículo pode – ou deveria – conduzir. Eu disse “informação inteiramente irrelevante” porque o tal adesivo preconiza algo que nunca é cumprido.

Para chegar ao meu local de trabalho eu faço uso de duas linhas: Ilha de Itamaracá/Igarassu e Igarassu/Macaxeira. Na primeira, ainda no perímetro da ilha, por vezes o ônibus lota; e os cidadãos de bem, essa gente que trabalha e paga suas contas com o suor de seu emprego, veem embarcar pelas portas do meio e traseira, dezenas de presidiários do regime semiaberto: no país de leis estapafúrdias, delinquentes têm mais direitos do que os cidadãos honestos. Pois bem, mais adiante, todos os que necessitam desembarcar no chamado Terminal Integrado de Passageiros de Igarassu, sabem que terão de enfrentar uma prova de fogo: somada à deficiência operacional que disponibiliza poucos ônibus em relação ao número de usuários, a selvageria de pessoas mal-educadas tornam o embarque um desafio tremendo. Fui testemunha em diversas ocasiões de bate-bocas, quedas, troca de socos e pontapés e ameaças... Tudo por causa de um assento no coletivo. Algumas vezes os ônibus já deixam o terminal bastante cheios quando não completamente lotados. Assim, ao longo do trajeto, várias paradas são ignoradas; e, quando o condutor cisma em querer que mais embarques ocorram, ouve xingamentos de todo tipo que vão de frases de baixo calção a coisas como estas: “Tu tás ganhando por cabeça é, motorista?”; e “Não cabe ninguém mais, não motorista!”. E a aventura da viagem prossegue com várias pessoas espremidas e sem segurança nenhuma rumo aos seus locais de trabalho, às suas escolas e faculdades, às suas consultas médicas, aos seus destinos, enfim, possivelmente precisando ainda fazer escalas em algumas das outras sucursais do inferno, que é como os terminais integrados são conhecidos.

De par com os intermináveis congestionamentos que tornam os deslocamentos rodoviários um exercício por demais desgastante e aborrecedor, a má qualidade do serviço de transporte público de passageiros que é ofertada à população da Região Metropolitana do Recife – e com tarifas que estão entre as mais caras do Brasil – expõem de maneira perfeitamente clara a complexidade da questão da mobilidade urbana.

Não acredito que a morte da estudante Camila Mirele desencadeará mudanças na estrutura do sistema de transporte público de passageiros que diariamente penaliza milhares de pessoas. Infelizmente, a curto prazo, continuaremos sendo expostos a uma realidade de que não apenas nos avilta mas também nos deixa à mercê do perigo constante e na iminência de que alguma desgraça, com a que vitimou aquela menina, nos acometa.

Wellington Pires e Verônica da Silva aceitem como pêsames este meu protesto particular.



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