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Lotado: a precariedade do sistema de transporte público de passageiros penaliza milhares de pessoas todos os dias neste país e as autoridades continuam agindo como se isso não fosse algo importante |
Especialmente para Camila
Mirele Pires da Silva, in memorian
Na noite do mesmo dia 8 de
maio em que eu publiquei um artigo em que tratava dos problemas provocados pela
superabundância de veículos nas ruas e da falta de ações eficazes do poder
público e da sociedade civil organizada para enfrentar as questões de
mobilidade urbana nas cidades, em geral, e no Recife, em particular – o texto
tem por título “Cidades movidas a gasolina” -, eis que a capital pernambucana foi cenário de um
acontecimento trágico que diz muito da precariedade do sistema de transporte
público de passageiros, algo que eu não esqueci de mencionar naquela abordagem:
tendo embarcado num coletivo superlotado na Cidade Universitária, a jovem
estudante de Biomedicina Camila Mirele Pires da Silva, de apenas 18 anos, caiu
de um ônibus em movimento pela porta central que foi aberta, ao que parece,
para que Camila conseguisse livrar sua bolsa que ficara presa (“Família de
Camila em busca de justiça”. Diario de
Pernambuco, Recife, 11 de maio de 2015, Local, p. A7). Caída na calçada, a
adolescente ainda chegou a ser conduzida ao Hospital Getulio Vargas, mas não resistiu
aos ferimentos e faleceu.
Se existe um assunto sobre o
qual eu posso falar com bastante propriedade é esse de utilização de transporte
público de passageiros, porque sou usuário de ônibus desde que eu me entendo
por gente. Em vista de tudo o que eu já presenciei em embarques, deslocamentos
e desembarques, posso dizer, com absoluta franqueza, que o caso que vitimou a
jovem Camila Mirele tratou-se fundamentalmente de uma tragédia anunciada e, de
modo algum, de uma fatalidade, como alguns chegaram a declarar.
O sistema de transporte público
de passageiros que opera na Região Metropolitana do Recife não é ruim, é
péssimo. A frota de ônibus é constantemente renovada; busca-se criar linhas que
atendam determinadas comunidades; há um evidente cuidado em manter os coletivos
asseados; etc. Mas isso não resolve o fundamental, que é transportar com
conforto e segurança a quantidade enorme de passageiros, sobretudo nos horários
de pico. De modo que de nada adianta que se providenciem ônibus novos com
ar-condicionado, câmeras de segurança e tudo mais e que se criem novas linhas
para atender outros itinerários, se o essencial, que é a manutenção de um maior
número de coletivos circulando em menores intervalos de tempo não ocorre. Desta
forma, o que comumente se assiste é à cenas de coletivos superlotados cruzando
as rodovias da Região Metropolitana do Recife que, como se sabe, é uma das
maiores do pais.
A operacionalidade do
sistema de transporte público de passageiros que vigora no Recife e nas cidades
circunvizinhas apresenta flagrantes desrespeitos não apenas aos usuários, mas
também às leis e aos regulamentos mais comezinhos. Quem circula nos ônibus
verifica, por exemplo, que, embora aqui e ali apareçam afixados nas janelas
avisos informando da proibição da ação de vendedores e pedintes no interior dos
coletivos, dificilmente alguém faz uma viagem sem que seja importunado por pelo
menos dois indivíduos que, além disso, embarcam sem pagar passagem.
A legislação vigente
determina que uma van, um carro, uma kombi, um caminhão não podem conduzir um
número de ocupantes maior do que a quantidade de assentos. A lei em vigor
estabelece que motoristas e demais ocupantes de vans, carros, kombis e
caminhões devem, obrigatoriamente, fazer uso do cinto de segurança. O marco
legal tipifica como infração o ato de conduzir em automóveis crianças de um ano
até quatro anos de idade, sem que elas estejam acomodadas em cadeirinhas que
são presas aos assentos. Considerando que o desrespeito a tais determinações
acarreta multa e pontos negativos na carteia de habilitação do condutor eu me
pergunto, caro leitor, por que é que sobre o sistema de transporte público de
passageiros essas regras não têm efeito? Por que é que, nos ônibus, motoristas,
cobradores e passageiros não fazem uso do cinto de segurança? Por que é que,
nos ônibus, bebês podem ser acomodados nos colos de suas mães e/ou
responsáveis? Por que é que, nos ônibus, não vale a determinação de um número x
de ocupantes e as pessoas podem ser conduzidas de pé e sem a mínima segurança?
Não sei se todos, mas pelo menos grande parte dos ônibus do sistema de transporte público de passageiros da Região Metropolitana
do Recife trazem no painel, acima do tabeliê e próximo ao aviso “Fale com o
motorista somente o indispensável”, a informação inteiramente irrelevante – para
não dizer acintosa – sobre a quantidade máxima de passageiros de pé – isso
mesmo, de pé – e sentados que o veículo pode – ou deveria – conduzir. Eu disse
“informação inteiramente irrelevante” porque o tal adesivo preconiza algo que
nunca é cumprido.
Para chegar ao meu local de
trabalho eu faço uso de duas linhas: Ilha de Itamaracá/Igarassu e
Igarassu/Macaxeira. Na primeira, ainda no perímetro da ilha, por vezes o ônibus
lota; e os cidadãos de bem, essa gente que trabalha e paga suas contas com o
suor de seu emprego, veem embarcar pelas portas do meio e traseira, dezenas de
presidiários do regime semiaberto: no país de leis estapafúrdias, delinquentes têm mais direitos do que os cidadãos
honestos. Pois bem, mais adiante, todos os que necessitam desembarcar no
chamado Terminal Integrado de Passageiros de Igarassu, sabem que terão de
enfrentar uma prova de fogo: somada à deficiência operacional que disponibiliza
poucos ônibus em relação ao número de usuários, a selvageria de pessoas
mal-educadas tornam o embarque um desafio tremendo. Fui testemunha em diversas
ocasiões de bate-bocas, quedas, troca de socos e pontapés e ameaças... Tudo por
causa de um assento no coletivo. Algumas vezes os ônibus já deixam o terminal
bastante cheios quando não completamente lotados. Assim, ao longo do trajeto,
várias paradas são ignoradas; e, quando o condutor cisma em querer que mais
embarques ocorram, ouve xingamentos de todo tipo que vão de frases de baixo
calção a coisas como estas: “Tu tás ganhando por cabeça é, motorista?”; e “Não
cabe ninguém mais, não motorista!”. E a aventura da viagem prossegue com várias
pessoas espremidas e sem segurança nenhuma rumo aos seus locais de trabalho, às
suas escolas e faculdades, às suas consultas médicas, aos seus destinos, enfim,
possivelmente precisando ainda fazer escalas em algumas das outras sucursais do
inferno, que é como os terminais integrados são conhecidos.
De par com os intermináveis
congestionamentos que tornam os deslocamentos rodoviários um exercício por
demais desgastante e aborrecedor, a má qualidade do serviço de transporte
público de passageiros que é ofertada à população da Região Metropolitana do
Recife – e com tarifas que estão entre as mais caras do Brasil – expõem de
maneira perfeitamente clara a complexidade da questão da mobilidade urbana.
Não acredito que a morte da
estudante Camila Mirele desencadeará mudanças na estrutura do sistema de
transporte público de passageiros que diariamente penaliza milhares de pessoas.
Infelizmente, a curto prazo, continuaremos sendo expostos a uma realidade de
que não apenas nos avilta mas também nos deixa à mercê do perigo constante e na iminência de que
alguma desgraça, com a que vitimou aquela menina, nos acometa.
Wellington Pires e Verônica
da Silva aceitem como pêsames este meu protesto particular.
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