4 de setembro de 2015

Farda manchada de sangue

Por Clênio Sierra de Alcântara




"Nos quartéis lhes ensinam antigas lições..." As demandas contemporâneas sugerem  que as Polícias Militares continuam presas a um arcabouço institucional que a sociedade do nosso tempo quer ver superado




Lançado em 1983, o livro Apipucos: que há num nome? é uma pequena joia editorial que une a prosa aliciante do sociólogo-antropólogo-historiador-escritor Gilberto Freyre a graciosas aquarelas pintadas exclusivamente para a obra por Elezier Xavier. Com sua reconhecida arte de criar imagens através das palavras – ele era um brilhante imagista -, Gilberto convida o leitor a se deixar envolver pela paisagem verdejante e inebriante do recifense bairro de Apipucos, onde fixou morada nos anos 40, quando se casou com Magdalena Guedes Pereira, e lá permanece até hoje, mesmo já tendo falecido há quase trinta anos.

Apipucos, que nos dias atuais ainda  tem um quê do muito de bucólico que marcava outros arrabaldes do Recife de tempos atrás, no domingo passado foi cenário de uma dessas tragédias que, por não serem corriqueiras, causam espanto e suscitam uma série de indagações. Na manhã do dia 30 de agosto, a calmaria de um ensolarado domingo na Rua Cel. João Batista do Rego Barros, às margens de um velho açude onde meninos se lançam em banhos demorados e pacientes pescadores mergulham afiados anzóis, a harmonia – ou uma aparente harmonia – de mais uma jornada de trabalho foi quebrada de maneira brutal.

Pelo o que até agora foi apurado, eis o que ocorreu naquela manhã: uma guarnição de policiais militares composta por um cabo – o Cb. Adriano Batista da Silva -, que era o motorista, e dois soldados – Flávio Oliveira da Silva e um outro, que é mulher e se chama Thaena de Lima Lemos – percorria em patrulhamento algumas ruas da localidade. Tudo parecia se encaminhar para a rotina de mais um dia de serviço quando, segundo se disse, em meio a uma discussão entre o cabo e o soldado a respeito de cotas para negros, o soldado fez uso da arma que portava e efetuou um disparo contra o cabo, dentro da viatura, e o militar, que chegou a ser socorrido, acabou morrendo. A soldado que presenciou o fato ficou em estado de choque. Confrontado com a realidade, o atirador declarou que sofreu um surto psicótico e não se deu conta de ter feito o que fez.

Como é de praxe nos episódios em que seus componentes são pegos em flagrante delito ou em situações “incompatíveis com a conduta que se espera de um representante da lei e da ordem”, o comando-geral da Polícia Militar se apressou em divulgar para a imprensa que o soldado Flávio deverá ser expulso da Corporação. Ocorre que, em meio à apuração dos fatos, ficamos sabendo, através dos veículos de comunicação, que o referido militar fora submetido a uma cirurgia para a retirada de um coágulo no cérebro em 2012, no ano seguinte foi atendido pelo Núcleo de Apoio ao Dependente Químico (Nadeq), por alcoolismo, e, mais recentemente, pelo Gabinete de Psiquiatria. Dadas as circunstâncias do que foi narrado até aqui, será que o comando-geral da PM pode de pronto excluir o soldado da Corporação? Será mesmo que o militar estava recuperado e apto a retornar ao serviço. Será que o comando-geral sabe quantos são os policiais que se encontram dependentes do álcool e de outras drogas e/ou sofrem de depressão?

A tragédia que vitimou o Cb. Adriano foi de todo lamentável; e pôs em evidência a dura constatação de que o efetivo que compõe a PM não são homens e mulheres de ferro, são pessoas como cada um de nós, que têm problemas de toda ordem e cumprem suas rotinas diárias carregando o fardo de serem vistos como heróis quando não passam eles também de seres humanos tão frágeis quanto nós, com a diferença de que o peso da farda lhes impõe uma dura missão a cumprir: garantir que eu e você, que todos nós, nos sintamos protegidos da ação de agentes criminosos.

Como racionalizar que um policial militar teve a sua vida ceifada no exercício de sua função não por um marginal, como habitualmente ocorre, mas por um seu companheiro de farda e ainda por cima no próprio ambiente de trabalho? Como compreender que um agente da lei tenha tido a sua vida subtraída por outro agente da lei?

Muito provavelmente esse acontecimento será visto por certos observadores da segurança pública, em geral, e da estrutura e funcionamento da PM, em particular, como uma oportunidade de perscrutar o arcabouço dessa instituição que alguns estudiosos enxergam como sendo arcaica e ultrapassada. Durante a cobertura de um desses ruidosos protestos que nos últimos anos têm tomado  as ruas das grandes cidades brasileiras contra o que se aponta como desmandos dos nossos governantes, ao avaliar a conduta de policiais militares lidando com os manifestantes, a historiadora Dulce Chaves Pandolfi declarou que “Nossa polícia é muito pouco cidadã”. É fato que – e eu diria que esse diagnóstico é bastante preciso -, estruturadas sob as diretrizes de um regime de exceção como o que vigorou neste país durante a Ditadura Militar (1964-1985), as PM’s continuam presas à concepção imposta por aqueles donos do poder que estabelecia que todo e qualquer indivíduo deve ser visto como um inimigo em potencial. Daí por que ainda hoje vigora no cerne dessas corporações não somente essa norma de conduta, como também permanece em vigência uma dura e por vezes intransigente estratificação do contingente que as constitui.

Quem olha de fora pode chegar a pensar que as PM’s são constituídas por um todo indivisível tenazmente empenhado no combate à ação dos criminosos. Mas não é bem assim, não. Em que pese uma movimentação silenciosa que alguns poucos estrelados vêm promovendo muito lentamente, a maioria absoluta do oficialato se comporta como se a instituição lhes pertencesse e – o que é mais grave e vergonhoso – que os que estão abaixo deles na hierarquia militar não passam de números de matrículas a serem inseridos nas escalas de serviço. Vigora ainda no âmago duro dessas instituições um núcleo inflexível que entoa com voz altiva: “Tudo para nós e pouco ou só o estritamente necessário para eles”, os subordinados. E é essa mentalidade que explica por que razão o grosso do oficialato reluta em ver mudanças acontecerem; eles relutam em aceitá-las porque temem perder não somente parte da autoridade que possuem, bem como as regalias que a configuração estratificada lhes proporciona. Essa postura também esclarece por que não é difícil encontrar nos quartéis oficiais que se dirigem aos praças como se os subordinados fossem verdadeiros autômatos desprovidos de gostos, vontades, anseios e mesmo de inteligência. A propósito um meu amigo comentou que, caso o vitimado em Apipucos tivesse sido um oficial, provavelmente isso desencadearia uma mudança para melhor no trato que a maioria deles dispensa aos seus subordinados. Dada a realidade que eu conheço sou levado a crer que ocorreria uma cisão ainda maior na tropa.

O infortúnio que vitimou o Cb. Adriano se deu num momento em que os praças continuam reivindicando um justo plano de cargos e carreiras que, entre outras demandas, corrija o absurdo que é ver um soldado só chegar ao posto de sargento quando completa trinta anos de prestação de serviço; e que promova ganhos salariais condizentes com as funções arriscadas que esses homens e mulheres exercem a fim de que eles não se vejam impelidos a buscar ganhos extras em suas horas de folga com o fito de atender as necessidades do seu orçamento. E, além disso, reivindica que seja revista a postura ultrapassada que servia aos propósitos dos generais ditadores, de intimidar o efetivo reiteradamente lembrando-o de que, caso não cumpra tal determinação, “vai ficar preso durante tantos dias”, atitude essa que inevitavelmente nos remete à abordagem feita pelo filósofo francês Michel Foucault em sua obra Vigiar e punir.

No prefácio que escreveu para o livro A transformação do indivíduo em quase Estado: um estudo etnográfico no Curso de Formação de Soldados da Polícia Militar de Pernambuco, de autoria de Cristiano Galvão e que deverá chegar às livrarias dentro de algumas semanas, o historiador e cientista político Michel Zaidan, de quem tive o privilégio de ser aluno na Universidade Federal de Pernambuco, enfatizou que, aqui no estado, embora exista uma Academia de Polícia, esta não é certamente um lugar de debates e controvérsias sobre a formação e o papel do militar na sociedade: “Ali, é o pensamento único: cumpra-se e pronto [...] Não existe ‘uso público da razão’ nas corporações militares; menos ainda nas de Pernambuco”. Na última segunda-feira, um dia após a morte do Cb. Adriano, ocorreu a formatura de 1.117 novos policiais militares. Tendo em vista a ocorrência que vitimou aquele militar, a sociedade pernambucana deve estar a se perguntar: será que esses 1.117 novos soldados estão realmente preparados para cumprir com competência as missões que se esperam deles?

De origem tupi, a palavra Apipucos, dentre outros significados, quer dizer “caminho que se divide ou se parte, encruzilhado”. Há tempos a gloriosa Polícia Militar de Pernambuco parece não se dar conta de que permanece no meio de uma grande encruzilhada: continuar conservando uma estrutura arcaica e arcaizante que, além de manter o contingente que lhe constitui em estratos que se repelem, mira todo e qualquer cidadão como um inimigo em potencial ou se adequar às demandas contemporâneas compreendendo que ela definitivamente é apenas uma entre as tantas outras representações do Estado, e o Estado não foi criado para indiscriminadamente reprimir, perseguir e intimidar o povo. Infelizmente as PM’s, ao que parece, não olham para dentro de si próprias a ponto de perceberem que elas têm de ser tão cidadãs quanto cada um dos indivíduos que constituem a sociedade.

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