Por Clênio Sierra de Alcântara
Lançado em 1983, o livro Apipucos: que há num nome? é uma pequena
joia editorial que une a prosa aliciante do sociólogo-antropólogo-historiador-escritor
Gilberto Freyre a graciosas aquarelas pintadas exclusivamente para a obra por
Elezier Xavier. Com sua reconhecida arte de criar imagens através das palavras –
ele era um brilhante imagista -, Gilberto convida o leitor a se deixar envolver
pela paisagem verdejante e inebriante do recifense bairro de Apipucos, onde
fixou morada nos anos 40, quando se casou com Magdalena Guedes Pereira, e lá
permanece até hoje, mesmo já tendo falecido há quase trinta anos.
Apipucos, que nos dias
atuais ainda tem um quê do muito de
bucólico que marcava outros arrabaldes do Recife de tempos atrás, no domingo
passado foi cenário de uma dessas tragédias que, por não serem corriqueiras,
causam espanto e suscitam uma série de indagações. Na manhã do dia 30 de
agosto, a calmaria de um ensolarado domingo na Rua Cel. João Batista do Rego
Barros, às margens de um velho açude onde meninos se lançam em banhos demorados
e pacientes pescadores mergulham afiados anzóis, a harmonia – ou uma aparente
harmonia – de mais uma jornada de trabalho foi quebrada de maneira brutal.
Pelo o que até agora foi apurado,
eis o que ocorreu naquela manhã: uma guarnição de policiais militares composta
por um cabo – o Cb. Adriano Batista da Silva -, que era o motorista, e dois
soldados – Flávio Oliveira da Silva e um outro, que é mulher e se chama Thaena
de Lima Lemos – percorria em patrulhamento algumas ruas da localidade. Tudo
parecia se encaminhar para a rotina de mais um dia de serviço quando, segundo
se disse, em meio a uma discussão entre o cabo e o soldado a respeito de cotas
para negros, o soldado fez uso da arma que portava e efetuou um disparo contra
o cabo, dentro da viatura, e o militar, que chegou a ser socorrido, acabou
morrendo. A soldado que presenciou o fato ficou em estado de choque.
Confrontado com a realidade, o atirador declarou que sofreu um surto psicótico
e não se deu conta de ter feito o que fez.
Como é de praxe nos
episódios em que seus componentes são pegos em flagrante delito ou em situações
“incompatíveis com a conduta que se espera de um representante da lei e da
ordem”, o comando-geral da Polícia Militar se apressou em divulgar para a imprensa
que o soldado Flávio deverá ser expulso da Corporação. Ocorre que, em meio à
apuração dos fatos, ficamos sabendo, através dos veículos de comunicação, que o
referido militar fora submetido a uma cirurgia para a retirada de um coágulo no
cérebro em 2012, no ano seguinte foi atendido pelo Núcleo de Apoio ao Dependente
Químico (Nadeq), por alcoolismo, e, mais recentemente, pelo Gabinete de
Psiquiatria. Dadas as circunstâncias do que foi narrado até aqui, será que o
comando-geral da PM pode de pronto excluir o soldado da Corporação? Será mesmo
que o militar estava recuperado e apto a retornar ao serviço. Será que o
comando-geral sabe quantos são os policiais que se encontram dependentes do álcool
e de outras drogas e/ou sofrem de depressão?
A tragédia que vitimou o Cb.
Adriano foi de todo lamentável; e pôs em evidência a dura constatação de que o
efetivo que compõe a PM não são homens e mulheres de ferro, são pessoas como
cada um de nós, que têm problemas de toda ordem e cumprem suas rotinas diárias
carregando o fardo de serem vistos como heróis quando não passam eles também de
seres humanos tão frágeis quanto nós, com a diferença de que o peso da farda
lhes impõe uma dura missão a cumprir: garantir que eu e você, que todos nós,
nos sintamos protegidos da ação de agentes criminosos.
Como racionalizar que um
policial militar teve a sua vida ceifada no exercício de sua função não por um
marginal, como habitualmente ocorre, mas por um seu companheiro de farda e
ainda por cima no próprio ambiente de trabalho? Como compreender que um agente
da lei tenha tido a sua vida subtraída por outro agente da lei?
Muito provavelmente esse
acontecimento será visto por certos observadores da segurança pública, em
geral, e da estrutura e funcionamento da PM, em particular, como uma
oportunidade de perscrutar o arcabouço dessa instituição que alguns estudiosos
enxergam como sendo arcaica e ultrapassada. Durante a cobertura de um desses ruidosos
protestos que nos últimos anos têm tomado
as ruas das grandes cidades brasileiras contra o que se aponta como
desmandos dos nossos governantes, ao avaliar a conduta de policiais militares
lidando com os manifestantes, a historiadora Dulce Chaves Pandolfi declarou que
“Nossa polícia é muito pouco cidadã”. É fato que – e eu diria que esse
diagnóstico é bastante preciso -, estruturadas sob as diretrizes de um regime
de exceção como o que vigorou neste país durante a Ditadura Militar
(1964-1985), as PM’s continuam presas à concepção imposta por aqueles donos do
poder que estabelecia que todo e qualquer indivíduo deve ser visto como um
inimigo em potencial. Daí por que ainda hoje vigora no cerne dessas corporações
não somente essa norma de conduta, como também permanece em vigência uma dura e
por vezes intransigente estratificação do contingente que as constitui.
Quem olha de fora pode
chegar a pensar que as PM’s são constituídas por um todo indivisível tenazmente
empenhado no combate à ação dos criminosos. Mas não é bem assim, não. Em que
pese uma movimentação silenciosa que alguns poucos estrelados vêm promovendo
muito lentamente, a maioria absoluta do oficialato se comporta como se a
instituição lhes pertencesse e – o que é mais grave e vergonhoso – que os que
estão abaixo deles na hierarquia militar não passam de números de matrículas a
serem inseridos nas escalas de serviço. Vigora ainda no âmago duro dessas
instituições um núcleo inflexível que entoa com voz altiva: “Tudo para nós e
pouco ou só o estritamente necessário para eles”, os subordinados. E é essa
mentalidade que explica por que razão o grosso do oficialato reluta em ver
mudanças acontecerem; eles relutam em aceitá-las porque temem perder não
somente parte da autoridade que possuem, bem como as regalias que a
configuração estratificada lhes proporciona. Essa postura também esclarece por
que não é difícil encontrar nos quartéis oficiais que se dirigem aos praças
como se os subordinados fossem verdadeiros autômatos desprovidos de gostos,
vontades, anseios e mesmo de inteligência. A propósito um meu amigo comentou
que, caso o vitimado em Apipucos tivesse sido um oficial, provavelmente isso
desencadearia uma mudança para melhor no trato que a maioria deles dispensa aos
seus subordinados. Dada a realidade que eu conheço sou levado a crer que
ocorreria uma cisão ainda maior na tropa.
O infortúnio que vitimou o
Cb. Adriano se deu num momento em que os praças continuam reivindicando um
justo plano de cargos e carreiras que, entre outras demandas, corrija o absurdo
que é ver um soldado só chegar ao posto de sargento quando completa trinta anos
de prestação de serviço; e que promova ganhos salariais condizentes com as
funções arriscadas que esses homens e mulheres exercem a fim de que eles não se
vejam impelidos a buscar ganhos extras em suas horas de folga com o fito de atender
as necessidades do seu orçamento. E, além disso, reivindica que seja revista a
postura ultrapassada que servia aos propósitos dos generais ditadores, de
intimidar o efetivo reiteradamente lembrando-o de que, caso não cumpra tal
determinação, “vai ficar preso durante tantos dias”, atitude essa que
inevitavelmente nos remete à abordagem feita pelo filósofo francês Michel
Foucault em sua obra Vigiar e punir.
No prefácio que escreveu
para o livro A transformação do indivíduo
em quase Estado: um estudo etnográfico no Curso de Formação de Soldados da
Polícia Militar de Pernambuco, de autoria de Cristiano Galvão e que deverá
chegar às livrarias dentro de algumas semanas, o historiador e cientista
político Michel Zaidan, de quem tive o privilégio de ser aluno na Universidade
Federal de Pernambuco, enfatizou que, aqui no estado, embora exista uma Academia
de Polícia, esta não é certamente um lugar de debates e controvérsias sobre a
formação e o papel do militar na sociedade: “Ali, é o pensamento único: cumpra-se
e pronto [...] Não existe ‘uso público da razão’ nas corporações militares;
menos ainda nas de Pernambuco”. Na última segunda-feira, um dia após a morte do
Cb. Adriano, ocorreu a formatura de 1.117 novos policiais militares. Tendo em
vista a ocorrência que vitimou aquele militar, a sociedade pernambucana deve
estar a se perguntar: será que esses 1.117 novos soldados estão realmente
preparados para cumprir com competência as missões que se esperam deles?
De origem tupi, a palavra
Apipucos, dentre outros significados, quer dizer “caminho que se divide ou se
parte, encruzilhado”. Há tempos a gloriosa Polícia Militar de Pernambuco parece
não se dar conta de que permanece no meio de uma grande encruzilhada: continuar
conservando uma estrutura arcaica e arcaizante que, além de manter o
contingente que lhe constitui em estratos que se repelem, mira todo e qualquer
cidadão como um inimigo em potencial ou se adequar às demandas contemporâneas
compreendendo que ela definitivamente é apenas uma entre as tantas outras
representações do Estado, e o Estado não foi criado para indiscriminadamente reprimir,
perseguir e intimidar o povo. Infelizmente as PM’s, ao que parece, não olham para
dentro de si próprias a ponto de perceberem que elas têm de ser tão cidadãs
quanto cada um dos indivíduos que constituem a sociedade.
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