28 de agosto de 2015

Andanças por Brasília

Por Clênio Sierra de Alcântara


Fotos: do autor    Lia marcou presença no evento promovido pela Fundação Cultural Palmares, instituição inteiramente voltada para atender as demandas da população negra




Após um hiato de dez anos, na manhã da última quarta-feira eu voltei a pisar no cerrado do Planalto Central e admirei mais uma vez as curvas de concreto armado projetadas pelo gênio criador de Oscar Niemeyer. Por mais críticos que possamos ser quanto aos aspectos funcionais dos prédios concebidos pela mente imaginosa do famoso arquiteto – certa feita a arquiteta Cristiane Feitosa me falou que muitos criticam a obra niemeyeriana sem entender nada dos fundamentos da Arquitetura -, não tem como ficarmos indiferentes ao encanto que é enxergar Brasília da plataforma da Torre de TV.

Fui a Brasília na muito boa e agradável companhia da cirandeira Lia de Itamaracá, Patrimônio Vivo de Pernambuco, que foi chamada à capital federal como uma das convidadas de honra do evento Diálogos Palmares: perspectivas e ações para a política nacional de cultura afro-brasileira, promovido pela Fundação Cultural Palmares para celebrar o vigésimo sétimo aniversário de existência dessa instituição que diariamente envida esforços no sentido de promover e reivindicar políticas públicas visando ao reconhecimento de todos e de cada indivíduo que constitui a população negra deste país, que ainda hoje sofre preconceitos e humilhações, o que não deixa de ser uma clara comprovação do quanto tem sido extremamente difícil para a sociedade brasileira conseguir acertar as contas com o seu passado a fim de que possa parar, definitivamente, de enxergar o negro como uma coisa ou como um cidadão de segunda classe.



O Salão Negro do Palácio do Ministério da Justiça ficou lotado



O ator Milton Gonçalves e Lia



Como alguém que teve uma formação acadêmica voltada para o conhecimento e entendimento do nosso passado, penso que compreendo em grande medida o simbolismo da presença de Lia num evento como o que foi promovido pela Palmares: ao dar visibilidade a uma negra de origem muito humilde que enfrentou inúmeras adversidades para sobreviver como pessoa mesmo e que conseguiu, além disso, se firmar nacionalmente como uma artista da cultura popular e permanecer, do alto dos seus setenta e um anos de idade, na ativa, levando o seu canto e a sua dança para os mais diversos lugares – dentro e fora do seu país -, a Palmares mostra a cirandeira como um motivo de orgulho para todos que militam no Movimento Negro, porque ela – assim como o ator Milton Gonçalves e o cantor Jamelão Neto, que também foram chamados a Brasília – acaba sendo vista como um exemplo de superação a ser seguido e celebrado.



Para abrir os trabalhos um animado ritual de candomblé com direito a oferenda















A cerimônia de abertura do evento ocorreu no Salão Negro do Palácio do Ministério da Justiça; entre as autoridades que constituíram a bancada estavam o ministro das Comunicações Ricardo Berzoini, Cida Abreu, presidente da Palmares, o ministro da Cultura Juca Ferreira, e a ministra da Secretaria de Políticas da Igualdade Racial Nilma Lino. Antes que a Cida Abreu iniciasse a apresentação do programa Diálogos Palmares, ocorreu uma homenagem à ancestralidade, com um ritual de candomblé, cujos integrantes aproveitaram para distribuir cópias de uma carta a ser entregue ao ministro da Justiça Eduardo Cardozo, na qual solicitavam “a intervenção do Estado contra a prática de intolerância religiosa que se inicia dentro do próprio Estado dito laico”; e denunciavam os pastores Marco Feliciano – que também é deputado federal – e Lucinho como incitadores de ataques contra as crenças de matrizes africana e brasileira.















Da esquerda para a direita: Ministro Juca Ferreira, Cida Abreu, Presidenta da Fundação Cultural Palmares e o Ministro Ricardo Berzoini



Em sua fala, como representante da sociedade civil, Lia recordou um pouco de sua longa trajetória de vida, pediu ajuda ao ministro Juca Ferreira no processo de reconstrução do Centro Cultural Estrela de Lia (CCEL) e, claro, cantou trechos de algumas cirandas, sendo demoradamente ovacionada, porque a luz de Lia brilha onde quer que ela esteja. O ministro Juca Ferreira, ao recorrer ao microfone, chegou a dizer mais ou menos assim, se dirigindo ao público, em geral, e à Lia, em particular: “Eu não tenho nem como deixar de atender um pedido feito dessa maneira”.




Lia no momento em que fazia o seu discurso para o público















Assim como teve início, a primeira parte da programação foi encerrada com um batuque empolgante do candomblé, algo muito bonito de se ver e ouvir. Vestidos a caráter e carregados de uma pujante alegria, homens e mulheres promoveram ali mais do que uma demonstração da fé que abraçam e professam: eles deixaram evidente para todos os que lá se encontravam que têm força suficiente para enfrentar todos os Felicianos e Lucinhos que forem surgindo.



Após o almoço, por volta das 15:00 h a segunda parte da programação do Diálogos Palmares teve início numa ampla sala do Hotel Nacional. Pouco antes de a mesa ser formada, a Cida Abreu, a quem eu me dirigi para pedir que se deixasse fotografar por mim ao lado de Lia, me falou ao pé do ouvido que o ministro Juca Ferreira lhe pediu que acompanhasse de perto as demandas do CCEL.




Ministro Juca Ferreira 

















Lia com Jamelão Neto: música na veia


Composta a mesa, a presidenta da Palmares Cida Abreu deu as boas-vindas a todos, dizendo da sua satisfação de estar conosco ali e do seu empenho para dinamizar ao máximo a sua gestão frente àquela instituição, de modo que os pleitos da população negra possam ser a cada dia mais viabilizados. Depois das falas da socióloga Haydée Caruso, da Universidade de Brasília, e do Manoel Justino, poeta e produtor cultural, o microfone foi aberto à participação ampla do público, afinal, a proposta do evento foi justamente promover um diálogo da diretoria da Palmares com artistas, lideranças religiosas e fazedores da cultura afro-brasileira.



As reivindicações e reclamações foram muitas: reiteradamente se falou ali das ações de intolerância religiosa que se têm verificado no país, seja no ambiente real, seja no ambiente virtual; outros falaram de questões envolvendo os mestres de capoeira; um rapaz falou de áreas de remanescentes de quilombolas localizadas à margem do Rio São Francisco, em Minas Gerais; uma senhora de Alagoas, demonstrando bastante insatisfação com o cenário atual, reivindicou uma maior atenção para com a Serra da Barriga; um outro integrante da plateia, também de maneira muito enérgica, criticou a constituição pessoal do evento que, segundo ele, deveria ter participação de representantes de outros órgãos do Governo para que eles diretamente tomassem ciência de tudo o que estava sendo pleiteado naquele momento porque, como ficou, parecia que se estava repetindo a dicotomia casa-grande e senzala.


Lia no tapete vermelho do Palácio do Ministério da Justiça







Lia e Cida Abreu na sala do Hotel Nacional onde ocorreu







Resolvi também falar. Num primeiro instante, o que eu já tinha feito em particular, o fiz publicamente: agradeci ao Vanderlei Lourenço, membro da diretoria da Palmares, pela articulação e empenho para que Lia estivesse ali. Vanderlei é de uma gentileza e de uma simpatia admiráveis. Em meu pronunciamento falei ainda que me encontrava, junto com outras pessoas, empenhado para que o CCEL seja reconstruído, porque, além de ser um ponto onde se promovia, preservava e difundia a ciranda, ele servia como um local que promovia ações de cidadania para a comunidade itamaracaense com palestras e cursos profissionalizantes.

Eu no momento em que discursava no evento









Além de participar do evento organizado pela Fundação Cultural Palmares, tínhamos, eu e Lia, o propósito de conseguir um encontro com o ministro Juca Ferreira em seu gabinete com o fito de tratarmos do CCEL. Infelizmente isso não foi possível – chegaram a ligar do gabinete querendo que fôssemos atendidos na quinta-feira por um assessor; educadamente recusamos o convite dizendo que, em nome da Palmares, Vanderlei Lourenço se prontificou a conseguir marcar um encontro de Lia com o ministro antes do fim de setembro.


Vanderlei Lourenço articulou a ida de Lia a Brasília: salve simpatia!



















O dia amanheceu lindamente na quinta-feira. Do quarto 714 do Hotel Nacional eu e Lia contemplamos o sol magnífico que acordava e principiava a se lançar sobre a cidade. Há quem diga que Brasília é uma capital que vive sob as trevas. Bem, naquela manhã tudo o que nós vimos foi luz, muita luz.

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