Por Clênio Sierra de Alcântara
A
minha alucinação é suportar o dia a dia
E meu
delírio é a experiência com coisas reais.
Alucinação
Especialmente
para Nelson Xavier e Antonio Candido, in
memoriam
Foto: Arquivo/Estadão |
No início da tarde do
domingo 30 de abril, quando tomei conhecimento da morte do cantor Belchior, eu
estava em companhia da minha avó Conceição, vendo televisão. E o sentimento que
primeiro me acometeu foi o de lamento. Posteriormente, na volta para casa, foi
se achegando a mim uma tristeza tímida, como se fosse impróprio e vergonhoso
ficar triste pelo falecimento de alguém que se admira e que não nos conhece.
Dentre as inúmeras e
inesquecíveis experiências que vivenciei no Cineteatro do Parque, no Recife,
uma delas certamente foi a ida a uma apresentação do renomado cantor cearense
dentro do saudoso Projeto Seis e Meia. Saí de casa naquele dia carregando
comigo uma ânsia muito forte, porque, dentro da minha educação musical, que é
vasta e diversa, canções como “Paralelas”, “Alucinação”, “Tudo outra vez”, “Velha
roupa colorida” e principal e significativamente “Como nossos pais” tiveram e
têm um peso considerável, tendo em vista a minha identificação com aquele
fraseado que me chegava de modo tão cortante e incisivo e ao mesmo tempo
deveras revelador de uma condição de perceber e sentir a vida e de, sobretudo,
sopesar circunstâncias nas quais se está vivendo. “Como nossos pais” permanece
sendo mais que uma canção para mim; cada vez que eu a escuto é como se me dessem
um puxão de orelha para que eu reconsiderasse as malcriações que dirigi à minha
mãe e os bate-bocas que algumas vezes mantivemos. Sou levado a crer que, muito
provavelmente, se não existisse “Como nossos pais”, Renato Russo não teria nos
legado essa outra revelação de circunstância que é a canção “Pais e filhos”,
marco de uma outra geração.
Naquela noite no Recife,
Belchior parecia estar de posse de uma alegria e de um entusiasmo muito
intensos e verdadeiros. Eu chegava a rir em certos momentos, quando ele dava
uma espécie de rodopio, de vez em quando. O riso, na verdade, vinha com certa
apreensão, porque eu pensava que num daqueles rodopios ele iria acabar
enrolando o fio do microfone nas pernas e cair. Felizmente isso não ocorreu. Belchior
encheu aquele palco com seu canto quase declamação, discorrendo visões da vida
como se estivesse a lançar centelhas sobre a plateia. Nunca me esquecerei
disso, porque parecia que emanava dele uma força-potência que se valia da música
para iluminar nossos pensamentos inquiridores a respeito das vicissitudes que
teimamos em não aceitá-las e nem compreendê-las inteiramente.
Há quem negue para a letra
da música a organicidade e o caráter por vezes especulador e a forma e o
conteúdo que dizem existir numa poesia bem construída. E essa negação se
reveste de rejeição e eu diria até de preconceito, porque é como se não
coubesse na composição de um letrista a mesma viva matéria da qual faz uso e se
nutre o poeta.
Anos atrás, quando deram por
falta de Belchior, a mim me pareceu que sua reclusão voluntária era não
necessariamente um ato de evasão ou de fuga da realidade e, sim, um desejo de,
talvez mais do que nunca, reencontrar-se consigo mesmo em tempos tão sombrios e
culturalmente tão empobrecidos. E essa pobreza teria como um dos seus pontos
altos a passagem, sem muito alarde, na mídia de um modo geral, do falecimento
de alguém da estatura de um Fernando Brant, em 12 de junho de 2015, enquanto,
doze dias depois, o anúncio da morte de um cantor inexpressivo de nome
Cristiano Araújo figurou exaustivamente nos programas de televisão e mesmo na
mídia impressa, num claro e lamentável flagrante de inversão de valores
culturais.
Belchior compunha
alinhavando miudezas do cotidiano com inquietações existenciais que percorriam
os itinerários das certezas e das dores que inescapavelmente marcam as nossas
vidas. Parafraseando o poeta Manuel Bandeira, eu diria que o cantor e
compositor cearense escrevia versos como quem sente grande necessidade de
compreender a si próprio na vastidão deste nosso mundo. Recluso e longe dos
holofotes que há tempos vêm sendo direcionados para quem reiteradamente rima “lua
de mel” com “motel”, Belchior era dum dos grandes bardos da música popular
brasileira, para quem melancolia e anseio de redenção eram muito mais do que
estados da alma, eram o leitmotiv do
existir.
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