13 de maio de 2017

Belchior e o princípio do termo saudade

Por Clênio Sierra de Alcântara


A minha alucinação é suportar o dia a dia
E meu delírio é a experiência com coisas reais.

                                                            Alucinação


                                Especialmente para Nelson Xavier e Antonio Candido, in memoriam


Foto: Arquivo/Estadão


No início da tarde do domingo 30 de abril, quando tomei conhecimento da morte do cantor Belchior, eu estava em companhia da minha avó Conceição, vendo televisão. E o sentimento que primeiro me acometeu foi o de lamento. Posteriormente, na volta para casa, foi se achegando a mim uma tristeza tímida, como se fosse impróprio e vergonhoso ficar triste pelo falecimento de alguém que se admira e que não nos conhece.

Dentre as inúmeras e inesquecíveis experiências que vivenciei no Cineteatro do Parque, no Recife, uma delas certamente foi a ida a uma apresentação do renomado cantor cearense dentro do saudoso Projeto Seis e Meia. Saí de casa naquele dia carregando comigo uma ânsia muito forte, porque, dentro da minha educação musical, que é vasta e diversa, canções como “Paralelas”, “Alucinação”, “Tudo outra vez”, “Velha roupa colorida” e principal e significativamente “Como nossos pais” tiveram e têm um peso considerável, tendo em vista a minha identificação com aquele fraseado que me chegava de modo tão cortante e incisivo e ao mesmo tempo deveras revelador de uma condição de perceber e sentir a vida e de, sobretudo, sopesar circunstâncias nas quais se está vivendo. “Como nossos pais” permanece sendo mais que uma canção para mim; cada vez que eu a escuto é como se me dessem um puxão de orelha para que eu reconsiderasse as malcriações que dirigi à minha mãe e os bate-bocas que algumas vezes mantivemos. Sou levado a crer que, muito provavelmente, se não existisse “Como nossos pais”, Renato Russo não teria nos legado essa outra revelação de circunstância que é a canção “Pais e filhos”, marco de uma outra geração.

Naquela noite no Recife, Belchior parecia estar de posse de uma alegria e de um entusiasmo muito intensos e verdadeiros. Eu chegava a rir em certos momentos, quando ele dava uma espécie de rodopio, de vez em quando. O riso, na verdade, vinha com certa apreensão, porque eu pensava que num daqueles rodopios ele iria acabar enrolando o fio do microfone nas pernas e cair. Felizmente isso não ocorreu. Belchior encheu aquele palco com seu canto quase declamação, discorrendo visões da vida como se estivesse a lançar centelhas sobre a plateia. Nunca me esquecerei disso, porque parecia que emanava dele uma força-potência que se valia da música para iluminar nossos pensamentos inquiridores a respeito das vicissitudes que teimamos em não aceitá-las e nem compreendê-las inteiramente.

Há quem negue para a letra da música a organicidade e o caráter por vezes especulador e a forma e o conteúdo que dizem existir numa poesia bem construída. E essa negação se reveste de rejeição e eu diria até de preconceito, porque é como se não coubesse na composição de um letrista a mesma viva matéria da qual faz uso e se nutre o poeta.

Anos atrás, quando deram por falta de Belchior, a mim me pareceu que sua reclusão voluntária era não necessariamente um ato de evasão ou de fuga da realidade e, sim, um desejo de, talvez mais do que nunca, reencontrar-se consigo mesmo em tempos tão sombrios e culturalmente tão empobrecidos. E essa pobreza teria como um dos seus pontos altos a passagem, sem muito alarde, na mídia de um modo geral, do falecimento de alguém da estatura de um Fernando Brant, em 12 de junho de 2015, enquanto, doze dias depois, o anúncio da morte de um cantor inexpressivo de nome Cristiano Araújo figurou exaustivamente nos programas de televisão e mesmo na mídia impressa, num claro e lamentável flagrante de inversão de valores culturais.

Belchior compunha alinhavando miudezas do cotidiano com inquietações existenciais que percorriam os itinerários das certezas e das dores que inescapavelmente marcam as nossas vidas. Parafraseando o poeta Manuel Bandeira, eu diria que o cantor e compositor cearense escrevia versos como quem sente grande necessidade de compreender a si próprio na vastidão deste nosso mundo. Recluso e longe dos holofotes que há tempos vêm sendo direcionados para quem reiteradamente rima “lua de mel” com “motel”, Belchior era dum dos grandes bardos da música popular brasileira, para quem melancolia e anseio de redenção eram muito mais do que estados da alma, eram o leitmotiv do existir.

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