6 de maio de 2017

Meu avô


Por Clênio Sierra de Alcântara







Não conheço e nunca ansiei conhecer – nem a ele nem aos seus – o homem que fecundou o óvulo de minha mãe que resultou na minha chegada ao mundo. Não sei o porquê desse meu completo desinteresse por saber dessa parte da minha vida. Talvez isso se deva – deve ser isso mesmo – pelo tanto de dureza que foi sedimentando em mim ao longo desses meus quarenta e três anos de idade.

Com a parentela que me restou, pelo lado de minha mãe, da família estendida, como dizem alguns, eu pouco ou muito pouco lidei, porque desde que me entendo por gente, essa dita família Alcântara jamais formou um corpo coeso e foi unida: pais e filhos sempre viveram às turras, intrigados por toda e qualquer coisa.

Eu ainda não nascera e o senhor Severino Amaro de Alcântara, o Biu Belo, meu avô, já havia se separado da senhora Maria da Conceição, minha avó. Eram primos e tiveram dez filhos, sendo cinco homens e cinco mulheres, dois dos quais – um casal – foram assassinados em 1985. E as circunstâncias que levaram à separação nunca me foram esclarecidas; o que eu soube desde que tomei conhecimento dessa divisão familiar foi que entre eles se mantinha uma aversão recíproca e irreversível.

Sempre houve uma distância grande, na verdade, enorme entre mim e o meu avô. Distância não apenas física como também sentimental. Morando com minha mãe na cidade, assim como vovó, vivíamos até certo ponto muito distantes de Jaguaribe, na zona rural de Abreu e Lima, onde vovô permanecera e se casara com uma mulher bem mais jovem do que ele, que lhe deu dois filhos – ele ainda teve um outro, com outra mulher, quando se encontrava casado com vovó.

Guardo das poucas idas ao sítio de Jaguaribe algumas boas lembranças e nenhuma delas tem qualquer relação com o meu avô. Eu adorava tomar banho no braço de maré, catar castanhas de caju e ir conhecendo a variedade de mangas que existia ali. Nossa, quando se é criança, várias pequenas descobertas tomam grandes dimensões e nos enchem de vontade de viver.

Contrastando com a alegria que aquele mundo verdejante me ofertava, aparecia o olhar de insatisfação do meu avô com a nossa presença ali; olhar esse que vinha acompanhado de uma fala severa reprovando o fato de termos ido até lá apanhar frutas e, ainda por cima, levando algum nosso conhecido junto. Ele agia como se estivéssemos lhe causando um grande prejuízo. Era horrível e constrangedor.

Mas não foram apenas esses sazonais, breves e maus encontros com o meu avô que paulatinamente fizeram com que cedo eu aprendesse que ninguém é obrigado a gostar de quem quer que seja, mesmo que a pessoa, no caso, seja um parente próximo. Um episódio em particular fez com que eu, doravante, passasse a nutrir certa repulsa contra o meu avô e a acreditar para valer nas tantas narrativas de maldades por ele praticadas que eu ouvia da boca de minha avó, que ele abandonou quando ela, que é tão geniosa e dura quanto ele, ainda estava com um filho de colo.

Eu era uma criança de sete ou oito anos, não lembro bem, quando fui até o pátio da feira livre de Abreu e Lima onde ele, por essa época, vendia laranjas, levar-lhe um presente de Dia dos Pais, uma camisa que minha mãe comprara. E ele, com toda a sua crueldade, com toda a sua cascagrossice, com toda a sua ruindade e com todo o seu desprezo recusou o presente dizendo assim – eu nunca me esqueci disso -: “Leve de volta. E diga a ela que venda para pagar as dívidas que tem”. Aquilo foi um assombro para a minha cabecinha infantil. E neste exato momento em que estou escrevendo, me encontro chorando porque percebo quão foi ruim para mim aquele breve instante em que estive na presença autoritária do meu avô. Talvez tenha sido esse acontecimento que deu início à construção, dentro de mim, de uma espécie de muro de resistência contra toda e qualquer tentativa de ataque contra quem eu sou e contra os meus bons e mesmo os meus maus sentimentos. E essa rebelião interior e esse se revelar são, também, eu acredito e admito isso, um exercício de expurgação.

As desavenças familiares atravessaram décadas. Demorei, infelizmente, a compreender os porquês de minha mãe ser o que é e de agir como ela agia e age. Durante esse tempo minha avó foi meu ponto de apoio; e a casa da minha madrinha Maria Lúcia um refúgio nem sempre confortável. Eu era – e ainda sou – um ser que passou a acreditar que muito mais vale estar  na vida encarando-a de peito aberto do que se esconder do mundo e das pessoas, porque se esconder não evita a pungência de nenhuma dor. Faltou-me coragem? Não, não me faltou. Eu me certifiquei de que para bem viver eu precisava me libertar da suposta obrigatoriedade da gratidão. E assim foi.  Eu hoje olho em minha volta e me dou conta de que consegui me desvencilhar de uma série de verdades que me eram impostas; e isso de algum modo muito, muito mesmo, me conforta.

As idas ao sítio rarearam de tal maneira que eu passei quase vinte anos sem ver o meu avô. Até que, num certo dia de 2015, levado pelas forças das circunstâncias, eu acabei indo vê-lo, agora noutra propriedade, que era menor do que a anterior. Eu só estive com ele porque, na verdade, o que me conduzira até ali fora o fato de, na época, minha avó estar morando com o seu filho mais velho, Geraldo, com quem meu avô não estava falando, numa casa vizinha a dele.

Como era previsível, meu avô não me reconheceu. Vendo-o naquele casebre, amargo e só, e tão frágil, me bateu uma tristeza e um pesar que me levaram ao choro. Do alto dos seus quase noventa anos, o velho Biu Belo era a prova cabal de que a velhice não necessariamente regenera alguém e nem sempre é capaz de diluir rancores e frustrações. Tanto tempo se passara e, a não ser fisicamente, ele não mudara nada de sua aridez e de sua rudeza. Sem o menor constrangimento me disse que os únicos filhos que prestavam entre os tantos que tinha, eram os três que não foram concebidos por vovó. Maldisse os demais como se estivesse a falar de coisas e não de pessoas. Ouvindo isso, eu tratei logo de me despedir, porque não queria mais me manter em sua companhia. Eu ainda me veria junto dele noutro dia. E só. E nunca mais.

Depois de passar alguns dias no leito de um hospital, na madrugada da quarta-feira 3 de maio, o inexorável Severino Amaro de Alcântara, meu avô, de quem eu nunca aprendi a gostar, faleceu, acontecimento esse do qual eu só me inteirei no dia seguinte, quando ele já estava enterrado. Quando minha mãe me contou o ocorrido, por um momento eu me vi reflexivo, mas nem sequer uma nesga de tristeza se aproximou de mim. Agora os abutres dos filhos dele irão se digladiar por um naco daquela propriedade. Nem que me coubesse algo dessa partilha eu iria querê-lo. Do que eu não consegui me livrar foi de outra herança, a da sequidão, da rudeza e da aridez. Eu, que não me disponho e me recuso peremptoriamente a assumir erros que não foram cometidos por mim, por outro lado, tenho e preciso admitir que eu pertenço à raça de uma pedra muito dura.


(Artigo publicado também in Informa Garanhuns [Garanhuns], nº 9, maio de 2017, Opinião p. 2).

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