Por Clênio Sierra da Alcântara
Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó.
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó.
O mundo é um moinho. Cartola
Ilusão e fantasia. Movidos por
turbilhões de sentimentos com os quais nem sempre sabemos como lidar, somos,
algumas vezes, levados a querer fazer de conta que o que estamos sentindo pode
ser posto num escaninho de nossa mente e ficar ali, quietinho, sem nos causar
perturbação. Essa forma de enfrentamento do que é sentido não raro descamba para
uma grande frustração, porque, na realidade, o que fazemos, agindo assim, é
somente criar um mecanismo de defesa contra uma verdade que, decididamente, não
queremos, de fato, enfrentar, e, por isso, nos pomos a adiar a sua resolução,
sem avaliar a dimensão negativa que essa atitude de apresamento do sentimento
poderá vir a tomar.
Venho há algum tempo
tentando ferreamente não fazer uso dessa maneira de conviver com os meus
sentimentos, a fim de que eu não atravesse a minha vida acumulando impasses e
levando para mais adiante decisões que precisam ser tomadas o quanto antes,
porque vários desapontamentos, desarranjos e dissabores serviram ao menos para
me ensinar que protelar a compreensão do meu sentir somente fará com que eu
sofra à prestação e não resolva nada.
No rito de autodisciplina eu
busquei afastar completamente de mim a instância da ilusão; e manter ao meu
lado, no caminhar da vida, e sempre de mãos dadas comigo, a fantasia. Assim como
eu tanto anseio a liberdade, eu procuro fazer da fantasia também o esteio do
meu bem viver, porque é só e apenas desse modo que eu consigo me estruturar
física e psicologicamente e atendo as necessidades de um ser e estar plenos.
Conforme o meu entendimento
a ilusão é algo bastante diferente da fantasia. Ilusão é, por exemplo,
acreditar que tudo o que se deseja, ao ser alcançado, vai nos conferir
satisfação absoluta; enquanto fantasia é pensar que aquilo que desejamos poderá até ser bom para aplacar a nossa ansiedade. Ilusão é supor que só porque tem o
corpo escultural e o rosto lindo um certo alguém é necessariamente bom de cama;
fantasia é imaginar que tal e tal pessoa, independentemente de seus atributos
físicos, poderá nos satisfazer sexualmente. Ilusão é investir cegamente na
concretude de um dado projeto que elaboramos; fantasia é vislumbrar a
realização de tal projeto consciente de que nem tudo sempre sai conforme é
planejado. Ilusão é confiar inteiramente em alguém que mal conhecemos; fantasia
é ir alimentando aos poucos a possibilidade de que encontramos mais um porto
seguro. Ilusão é depositar nos filhos uma suposta redenção dos nossos fracassos
financeiros, emocionais e sentimentais; fantasia é desejar que o futuro dos
nossos filhos seja benfazejo e que durante essa caminhada eles não sejam
tragados pelos males do mundo. Ilusão é crer que temos o controle de tudo;
fantasia é seguir em frente confiantes de que conseguiremos ultrapassar certos
obstáculos que forem surgindo. Ilusão é se manter apegado à ideia de que
felicidade para valer, felicidade robusta, sólida e firme está configurada em
alguém que em algum momento haverá de entrar em nossa vida; fantasia é pensar
que encontraremos alguém que haverá de reforçar, elevar e acentuar uma alegria
e uma felicidade cuja essência já está dentro de nós.
Estive ainda há pouco em
companhia de um amigo que anda sofrendo com a ausência de um ser amado que se
encontra geograficamente muitíssimo distante dele. Enredado numa teia de amargura
e inconformidade ele se mantém preso à ilusão de que a pessoa o ama tanto quanto
ele a ela; e segue aguardando um retorno que sequer é anunciado; e se fecha
completamente para outras possibilidades de encontros. Ele me confidenciou que
está pensando até em se mudar de casa e mesmo de cidade a fim de tentar esquecer
e aplacar o desejo, como se isso pudesse apagar o ser querido do seu
pensamento.
Nos caminhos e descaminhos
da vida ilusão e fantasia estão quase que o tempo todo se cruzando em encontros
e desencontros. Nós podemos sim duvidar das verdades que são estabelecidas;
podemos discordar do que nos é apresentado como ideal de bem viver; podemos
recusar a proposta de felicidade que nos é oferecida ao custo de dez suaves
parcelas; podemos protestar contra o projeto de existência que será posto em
votação; o que não podemos é nos manter submissos ao autoengano, deixando de
encarar a realidade com os olhos e mente bem abertos.
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