22 de junho de 2017

Personas urbanas (14)

Por Clênio Sierra da Alcântara


Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó.

                                                       O mundo é um moinhoCartola



Ilusão e fantasia. Movidos por turbilhões de sentimentos com os quais nem sempre sabemos como lidar, somos, algumas vezes, levados a querer fazer de conta que o que estamos sentindo pode ser posto num escaninho de nossa mente e ficar ali, quietinho, sem nos causar perturbação. Essa forma de enfrentamento do que é sentido não raro descamba para uma grande frustração, porque, na realidade, o que fazemos, agindo assim, é somente criar um mecanismo de defesa contra uma verdade que, decididamente, não queremos, de fato, enfrentar, e, por isso, nos pomos a adiar a sua resolução, sem avaliar a dimensão negativa que essa atitude de apresamento do sentimento poderá vir a tomar.

Venho há algum tempo tentando ferreamente não fazer uso dessa maneira de conviver com os meus sentimentos, a fim de que eu não atravesse a minha vida acumulando impasses e levando para mais adiante decisões que precisam ser tomadas o quanto antes, porque vários desapontamentos, desarranjos e dissabores serviram ao menos para me ensinar que protelar a compreensão do meu sentir somente fará com que eu sofra à prestação e não resolva nada.

No rito de autodisciplina eu busquei afastar completamente de mim a instância da ilusão; e manter ao meu lado, no caminhar da vida, e sempre de mãos dadas comigo, a fantasia. Assim como eu tanto anseio a liberdade, eu procuro fazer da fantasia também o esteio do meu bem viver, porque é só e apenas desse modo que eu consigo me estruturar física e psicologicamente e atendo as necessidades de um ser e estar plenos.

Conforme o meu entendimento a ilusão é algo bastante diferente da fantasia. Ilusão é, por exemplo, acreditar que tudo o que se deseja, ao ser alcançado, vai nos conferir satisfação absoluta; enquanto fantasia é pensar que aquilo que desejamos poderá até ser bom para aplacar a nossa ansiedade. Ilusão é supor que só porque tem o corpo escultural e o rosto lindo um certo alguém é necessariamente bom de cama; fantasia é imaginar que tal e tal pessoa, independentemente de seus atributos físicos, poderá nos satisfazer sexualmente. Ilusão é investir cegamente na concretude de um dado projeto que elaboramos; fantasia é vislumbrar a realização de tal projeto consciente de que nem tudo sempre sai conforme é planejado. Ilusão é confiar inteiramente em alguém que mal conhecemos; fantasia é ir alimentando aos poucos a possibilidade de que encontramos mais um porto seguro. Ilusão é depositar nos filhos uma suposta redenção dos nossos fracassos financeiros, emocionais e sentimentais; fantasia é desejar que o futuro dos nossos filhos seja benfazejo e que durante essa caminhada eles não sejam tragados pelos males do mundo. Ilusão é crer que temos o controle de tudo; fantasia é seguir em frente confiantes de que conseguiremos ultrapassar certos obstáculos que forem surgindo. Ilusão é se manter apegado à ideia de que felicidade para valer, felicidade robusta, sólida e firme está configurada em alguém que em algum momento haverá de entrar em nossa vida; fantasia é pensar que encontraremos alguém que haverá de reforçar, elevar e acentuar uma alegria e uma felicidade cuja essência já está dentro de nós.

Estive ainda há pouco em companhia de um amigo que anda sofrendo com a ausência de um ser amado que se encontra geograficamente muitíssimo distante dele. Enredado numa teia de amargura e inconformidade ele se mantém preso à ilusão de que a pessoa o ama tanto quanto ele a ela; e segue aguardando um retorno que sequer é anunciado; e se fecha completamente para outras possibilidades de encontros. Ele me confidenciou que está pensando até em se mudar de casa e mesmo de cidade a fim de tentar esquecer e aplacar o desejo, como se isso pudesse apagar o ser querido do seu pensamento.

Nos caminhos e descaminhos da vida ilusão e fantasia estão quase que o tempo todo se cruzando em encontros e desencontros. Nós podemos sim duvidar das verdades que são estabelecidas; podemos discordar do que nos é apresentado como ideal de bem viver; podemos recusar a proposta de felicidade que nos é oferecida ao custo de dez suaves parcelas; podemos protestar contra o projeto de existência que será posto em votação; o que não podemos é nos manter submissos ao autoengano, deixando de encarar a realidade com os olhos e mente bem abertos.

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