Nas “Notas sobre o instituto
do tombamento” inseridas no livro Bens
móveis e imóveis inscritos nos livros do Tombo do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Brasília: Sphan/Pró-Memória, 1982), lemos que foi na
Constituição de 1934 que se introduziu, pela primeira vez, a prerrogativa do
Poder Público à proteção aos bens culturais brasileiros. As “Notas” chegam
mesmo a falar que a norma jurídica nasceu da existência de uma “real vontade
coletiva de conservar sua memória, expressa nesses bens”. E denomina tombamento
como “o instituto jurídico através do qual o Poder Público determina que os bens
culturais serão objeto de proteção, dizendo, inclusive, de que forma se dará
essa proteção” (as duas citações aparecem na página 9).
Os que lidam com as questões
relacionadas com a proteção e salvaguarda do patrimônio histórico e artístico
nacional sabemos que, na realidade, não existe e nunca existiu uma “vontade
social” – outra expressão que aparece naquelas “Notas” – a clamar pela
preservação de nossa memória, porque desde sempre – e daí por que eu
reiteradamente toco neste ponto - esse
segmento se manteve circunscrito a um reduzido grupo de intelectuais
preocupados em proteger o que eles julgavam ser digno e/ou merecedor de
proteção. Ou seja, falar de “vontade coletiva” é ser, no mínimo, fantasioso
para não dizer adulterador de fatos, porque, nas instâncias dessas discussões,
no estabelecimento das diretrizes definidoras do que hoje conhecemos como
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a sociedade em
geral, em momento algum foi chamada para sequer opinar a respeito do que
deveria ficar pelo menos sobre a proteção da lei.
Num artigo em que expressa
uma crítica dura e crua aos fundamentos do Iphan – crítica essa que, a bem da
verdade, dá voz a tantos de nós estudiosos do assunto, eu inclusive -, Olínio
Coelho afirma que “Não existe uma política nacional implantada no Brasil que
estabeleça uma relação estreita entre os bens que são tombados e os grupos
sociais dos quais participam”. E mais: “Isso tem gerado uma dicotomia entre o
que o poder público decide preservar – tombar – e as próprias comunidades que
vivenciam esses bens” (Olínio Coelho. “Novos atores na preservação do patrimônio:
estados, municípios e sociedade civil”. In Paulo Ormindo David de Azevedo e
Elyane Lins Corrêa [orgs.]. Estado e
sociedade na preservação do patrimônio. Salvador: EDUFBA: IAB, 2013, p.
56).
Não é o caso de demonizarmos a
existência e a trajetória do Iphan que, criado em 1937, vem, a duras penas,
travando um férreo embate contra a falta de recursos humanos e financeiros para
garantir a preservação da memória nacional. No entanto, não podemos deixar de
ver que nesses oitenta anos de existência, esse órgão federal nem sempre tomou
decisões acertadas, quer no tocante à construção de um, digamos, acervo a ser
preservado, porque excluiu demandas locais, como observou Olínio Coelho, quer
na própria execução de obras de restauro que, em alguns casos, resultaram desastrosas
(veja-se a respeito, por exemplo, o meu artigo “Sítio histórico de Igaraçu:
entre o esplendor e a fisionomia dos escombros” in Clênio Sierra de Alcântara. A Cidade e a História: alguns escritos
acerca do universo urbano e das políticas de proteção e valorização do
patrimônio histórico, artístico e cultural. Ilha de Itamaracá, PE: Edição
do Autor, 2014, p. 67-78).
Para ilustrar quão precária
e deficiente ainda é a rede que começou a ser tramada lá em 1937 com o fito de
proteger o patrimônio cultural nacional, novamente nos chega de Salvador, a
mais antiga cidade brasileira e primeira capital do país, um triste exemplo da
falta de eficiência do Estado visando à garantia da salvaguarda da memória
nacional. No último dia 24 de abril as chuvas mais uma vez expuseram o drama do
descaso e do abandono por que passam inúmeras edificações tombadas da área de
ocupação urbana mais antiga da capital baiana: um dos sobrados abandonados da Ladeira
da Soledade (bairro da Liberdade), inserido numa “área de preservação” desabou
parcialmente atingindo um outro imóvel e provocando a morte de José Próspero
Deminco, de 73 anos de idade, e dos seus filhos Ana Paula Carneiro Deminco, 34
anos, e Paulo Ricardo Carneiro Deminco, 44 anos. Lamento duplo: pela perda da vida dessas
pessoas; e pelo desaparecimento de mais um prédio histórico que era, inclusive,
tombado pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac).
Também foi em decorrência
das chuvas que, em 18 de janeiro de 2015, a queda do muro de um casarão sobre
algumas casas na Ladeira da Preguiça (bairro Dois de Julho), causou a morte do
jovem Oberdan Barbosa dos Santos, de 32 anos. Por causa disso, a casa dele, o
casarão e outras edificações do século XIX foram postas abaixo. Seis dias
depois daquela tragédia, foram demolidos oito casarões na Ladeira da Montanha
(bairro do Comércio). Ao todo, segundo notícias da época, trinta e uma fachadas
de imóveis antigos foram derrubadas sob a justificativa de que estavam
oferecendo risco de desabamento. Na ocasião o Iphan informou que “os remanescentes
de fachadas não possuíam mais valores individuais ou de conjunto que
justificassem sua preservação” e, por outro lado, “que busca informações acerca
dos proprietários dos imóveis e ingressará com ações judiciais contra estes por
dano irreparável ao patrimônio cultural”. Se isso foi uma “nota de esclarecimento”,
sinceramente, ela só esclarece que os agentes do Iphan, neste caso, estavam
muito confusos. Ora, os proprietários dos imóveis não deveriam ter sido procurados
antes da efetivação da demolição, porque, se a necessidade da remoção foi
imperiosa isso não significa dizer que há tempos as edificações se encontravam
abandonadas? Veja-se a propósito o esclarecedor artigo “Por que pessoas estão ficando
desabrigadas e casarões estão sendo demolidos no Centro de Salvador?”, que
Nelson Oliveira publicou, na ocasião – precisamente no dia 29 de junho de 2015
-, no site www.vice.com.
Devido ao fatídico episódio
ocorrido na Ladeira da Soledade naquela noite de abril, o Ipac divulgou que
existem duzentos e cinquenta imóveis em situação de risco em Salvador, algo que
é, indiscutivelmente, preocupante e espantoso. Cabe aqui assinalar o seguinte:
nem toda a área antiga da cidade, que é maior, é tombada, apenas o que se
denomina de “sítio” ou “centro histórico”.
Deve-se aqui também ser destacado que não é de hoje que a capital baiana enfrenta problemas de destruição e deslizamento de morros provocados pelas chuvas, como atesta o testemunho do pastor protestante Daniel Parish Kidder, que esteve na cidade em julho de 1839 e anotou em suas Reminiscências de viagens e permanências nas províncias do Norte do Brasil: compreendendo notícias históricas e geográficas do Império e das diversas províncias (Trad. Moacir N. Vasconcelos. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980, p. 37):
No ano de 1671, em consequência de chuvas enormes e contínuas deu-se um desabamento num morro, do que resultou cair grande quantidade de terra sobre a cidade baixa, destruindo casas e soterrando, vivas, cerca de trinta pessoas, além de aterrar metade da praia [...] Desabamentos semelhantes têm sido frequentes na Bahia, a despeito das enormes quantias gastas em obras tendentes a evitá-los.
No ano de 1671, em consequência de chuvas enormes e contínuas deu-se um desabamento num morro, do que resultou cair grande quantidade de terra sobre a cidade baixa, destruindo casas e soterrando, vivas, cerca de trinta pessoas, além de aterrar metade da praia [...] Desabamentos semelhantes têm sido frequentes na Bahia, a despeito das enormes quantias gastas em obras tendentes a evitá-los.
Reconhecido desde 1984 pela
Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade, o centro histórico de Salvador
da Bahia deveria figurar, pela grandeza e importância que tem para a história do
Brasil, como um dos motivos de orgulho do árduo trabalho do Iphan, mas o que se
vê ali – mesmo no Pelourinho, que é vendido ao trade turístico como o mais
valoroso cartão-postal soteropolitano – é um vergonhoso acúmulo de ruínas em
meio a um cenário que já sofreu várias intervenções adulteradoras ao longo dos
anos e que permanece sob constante ameaça de uma voraz especulação imobiliária.
Preocupados, digo, empenhados em garantir a aquisição de apartamentos de luxo
com vistas para o mar, nem que para isso seja necessário pôr abaixo prédios
históricos e/ou ocupar áreas de preservação histórica, autoridades públicas e
endinheirados em geral, como vimos recentemente com o empreendimento La Vue
Ladeira da Barra, não estão nem aí para esses assuntos chatos e enfadonhos de
preservação cultural e muito menos lhe dizem respeito as consequências que o
processo de gentrificação acarretam para as pessoas mais pobres que de uma
maneira ou de outra ocupam os morros e os imóveis na parte antiga da cidade e
que, paulatinamente, vão sendo expulsas dali com os desabamentos, as demolições
e as interdições. Autoridades e endinheirados em geral não querem nem saber de
identidades, apego das pessoas aos locais onde moram, rituais, celebrações,
porque tudo isso que se perde, sob a ótica deles, vai ser recolhido junto com
os entulhos e escombros e desaparecer da paisagem sem deixar nenhum vestígio. Em
vista disso eu repito aqui uma indagação que José Reginaldo Santos Gonçalves
fez na página 104 do seu A retórica da
perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil (2ª ed. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ; Iphan, 2002): “perda para quem?”.
No Brasil, Salvador talvez
seja o caso mais dramático onde se estabeleceu o império da indiferença e do
descaso para com a preservação do patrimônio histórico edificado. Caminhar por
suas ruas e ladeiras nos faz pensar num país que poderia servir de referência
no campo da preservação, dada a grandeza das construções que ainda resistem; mas
as ruínas e as escoras que também se encontram por ali imediatamente nos lançam
para a pequenez do entendimento da sociedade brasileira sobre o assunto o que, claro, resulta numa vergonhosa e lamentável falta de consciência para com a salvaguarda da memória nacional.
(Artigo publicado também in Informa Garanhuns [Garanhuns], agosto de 2017, nº 11, Opinião, p. 2).
(Artigo publicado também in Informa Garanhuns [Garanhuns], agosto de 2017, nº 11, Opinião, p. 2).
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