1 de julho de 2017

Tombamento não é sinônimo nem garantia de preservação

 Por Clênio Sierra de Alcântara




Fotos: Andréia Silva         Se o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), órgão federal responsável pela salvaguarda da memória nacional não consegue barrar a ruína do patrimônio edificado, a quem mais devemos recorrer?


Nas “Notas sobre o instituto do tombamento” inseridas no livro Bens móveis e imóveis inscritos nos livros do Tombo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Brasília: Sphan/Pró-Memória, 1982), lemos que foi na Constituição de 1934 que se introduziu, pela primeira vez, a prerrogativa do Poder Público à proteção aos bens culturais brasileiros. As “Notas” chegam mesmo a falar que a norma jurídica nasceu da existência de uma “real vontade coletiva de conservar sua memória, expressa nesses bens”. E denomina tombamento como “o instituto jurídico através do qual o Poder Público determina que os bens culturais serão objeto de proteção, dizendo, inclusive, de que forma se dará essa proteção” (as duas citações aparecem na página 9).

Os que lidam com as questões relacionadas com a proteção e salvaguarda do patrimônio histórico e artístico nacional sabemos que, na realidade, não existe e nunca existiu uma “vontade social” – outra expressão que aparece naquelas “Notas” – a clamar pela preservação de nossa memória, porque desde sempre – e daí por que eu reiteradamente toco neste ponto -  esse segmento se manteve circunscrito a um reduzido grupo de intelectuais preocupados em proteger o que eles julgavam ser digno e/ou merecedor de proteção. Ou seja, falar de “vontade coletiva” é ser, no mínimo, fantasioso para não dizer adulterador de fatos, porque, nas instâncias dessas discussões, no estabelecimento das diretrizes definidoras do que hoje conhecemos como Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a sociedade em geral, em momento algum foi chamada para sequer opinar a respeito do que deveria ficar pelo menos sobre a proteção da lei.

Num artigo em que expressa uma crítica dura e crua aos fundamentos do Iphan – crítica essa que, a bem da verdade, dá voz a tantos de nós estudiosos do assunto, eu inclusive -, Olínio Coelho afirma que “Não existe uma política nacional implantada no Brasil que estabeleça uma relação estreita entre os bens que são tombados e os grupos sociais dos quais participam”. E mais: “Isso tem gerado uma dicotomia entre o que o poder público decide preservar – tombar – e as próprias comunidades que vivenciam esses bens” (Olínio Coelho. “Novos atores na preservação do patrimônio: estados, municípios e sociedade civil”. In Paulo Ormindo David de Azevedo e Elyane Lins Corrêa [orgs.]. Estado e sociedade na preservação do patrimônio. Salvador: EDUFBA: IAB, 2013, p. 56).

Não é o caso de demonizarmos a existência e a trajetória do Iphan que, criado em 1937, vem, a duras penas, travando um férreo embate contra a falta de recursos humanos e financeiros para garantir a preservação da memória nacional. No entanto, não podemos deixar de ver que nesses oitenta anos de existência, esse órgão federal nem sempre tomou decisões acertadas, quer no tocante à construção de um, digamos, acervo a ser preservado, porque excluiu demandas locais, como observou Olínio Coelho, quer na própria execução de obras de restauro que, em alguns casos, resultaram desastrosas (veja-se a respeito, por exemplo, o meu artigo “Sítio histórico de Igaraçu: entre o esplendor e a fisionomia dos escombros” in Clênio Sierra de Alcântara. A Cidade e a História: alguns escritos acerca do universo urbano e das políticas de proteção e valorização do patrimônio histórico, artístico e cultural. Ilha de Itamaracá, PE: Edição do Autor, 2014, p. 67-78).

Para ilustrar quão precária e deficiente ainda é a rede que começou a ser tramada lá em 1937 com o fito de proteger o patrimônio cultural nacional, novamente nos chega de Salvador, a mais antiga cidade brasileira e primeira capital do país, um triste exemplo da falta de eficiência do Estado visando à garantia da salvaguarda da memória nacional. No último dia 24 de abril as chuvas mais uma vez expuseram o drama do descaso e do abandono por que passam inúmeras edificações tombadas da área de ocupação urbana mais antiga da capital baiana: um dos sobrados abandonados da Ladeira da Soledade (bairro da Liberdade), inserido numa “área de preservação” desabou parcialmente atingindo um outro imóvel e provocando a morte de José Próspero Deminco, de 73 anos de idade, e dos seus filhos Ana Paula Carneiro Deminco, 34 anos, e Paulo Ricardo Carneiro Deminco, 44 anos.  Lamento duplo: pela perda da vida dessas pessoas; e pelo desaparecimento de mais um prédio histórico que era, inclusive, tombado pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac).





Também foi em decorrência das chuvas que, em 18 de janeiro de 2015, a queda do muro de um casarão sobre algumas casas na Ladeira da Preguiça (bairro Dois de Julho), causou a morte do jovem Oberdan Barbosa dos Santos, de 32 anos. Por causa disso, a casa dele, o casarão e outras edificações do século XIX foram postas abaixo. Seis dias depois daquela tragédia, foram demolidos oito casarões na Ladeira da Montanha (bairro do Comércio). Ao todo, segundo notícias da época, trinta e uma fachadas de imóveis antigos foram derrubadas sob a justificativa de que estavam oferecendo risco de desabamento. Na ocasião o Iphan informou que “os remanescentes de fachadas não possuíam mais valores individuais ou de conjunto que justificassem sua preservação” e, por outro lado, “que busca informações acerca dos proprietários dos imóveis e ingressará com ações judiciais contra estes por dano irreparável ao patrimônio cultural”. Se isso foi uma “nota de esclarecimento”, sinceramente, ela só esclarece que os agentes do Iphan, neste caso, estavam muito confusos. Ora, os proprietários dos imóveis não deveriam ter sido procurados antes da efetivação da demolição, porque, se a necessidade da remoção foi imperiosa isso não significa dizer que há tempos as edificações se encontravam abandonadas? Veja-se a propósito o esclarecedor artigo “Por que pessoas estão ficando desabrigadas e casarões estão sendo demolidos no Centro de Salvador?”, que Nelson Oliveira publicou, na ocasião – precisamente no dia 29 de junho de 2015 -, no site www.vice.com.

Devido ao fatídico episódio ocorrido na Ladeira da Soledade naquela noite de abril, o Ipac divulgou que existem duzentos e cinquenta imóveis em situação de risco em Salvador, algo que é, indiscutivelmente, preocupante e espantoso. Cabe aqui assinalar o seguinte: nem toda a área antiga da cidade, que é maior, é tombada, apenas o que se denomina de “sítio” ou “centro histórico”.

Deve-se aqui também ser destacado que não é de hoje que a capital baiana enfrenta problemas de destruição e deslizamento de morros provocados pelas chuvas, como atesta o testemunho do pastor protestante Daniel Parish Kidder, que esteve na cidade em julho de 1839 e anotou em suas Reminiscências de viagens e permanências nas províncias do Norte do Brasil: compreendendo notícias históricas e geográficas do Império e das diversas províncias (Trad. Moacir N. Vasconcelos. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980, p. 37):

No ano de 1671, em consequência de chuvas enormes e contínuas deu-se um desabamento num morro, do que resultou cair grande quantidade de terra sobre a cidade baixa, destruindo casas e soterrando, vivas, cerca de trinta pessoas, além de aterrar metade da praia [...] Desabamentos semelhantes têm sido frequentes na Bahia, a despeito das enormes quantias gastas em obras tendentes a evitá-los.

Reconhecido desde 1984 pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade, o centro histórico de Salvador da Bahia deveria figurar, pela grandeza e importância que tem para a história do Brasil, como um dos motivos de orgulho do árduo trabalho do Iphan, mas o que se vê ali – mesmo no Pelourinho, que é vendido ao trade turístico como o mais valoroso cartão-postal soteropolitano – é um vergonhoso acúmulo de ruínas em meio a um cenário que já sofreu várias intervenções adulteradoras ao longo dos anos e que permanece sob constante ameaça de uma voraz especulação imobiliária. Preocupados, digo, empenhados em garantir a aquisição de apartamentos de luxo com vistas para o mar, nem que para isso seja necessário pôr abaixo prédios históricos e/ou ocupar áreas de preservação histórica, autoridades públicas e endinheirados em geral, como vimos recentemente com o empreendimento La Vue Ladeira da Barra, não estão nem aí para esses assuntos chatos e enfadonhos de preservação cultural e muito menos lhe dizem respeito as consequências que o processo de gentrificação acarretam para as pessoas mais pobres que de uma maneira ou de outra ocupam os morros e os imóveis na parte antiga da cidade e que, paulatinamente, vão sendo expulsas dali com os desabamentos, as demolições e as interdições. Autoridades e endinheirados em geral não querem nem saber de identidades, apego das pessoas aos locais onde moram, rituais, celebrações, porque tudo isso que se perde, sob a ótica deles, vai ser recolhido junto com os entulhos e escombros e desaparecer da paisagem sem deixar nenhum vestígio. Em vista disso eu repito aqui uma indagação que José Reginaldo Santos Gonçalves fez na página 104 do seu A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil (2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Iphan, 2002): “perda para quem?”.

No Brasil, Salvador talvez seja o caso mais dramático onde se estabeleceu o império da indiferença e do descaso para com a preservação do patrimônio histórico edificado. Caminhar por suas ruas e ladeiras nos faz pensar num país que poderia servir de referência no campo da preservação, dada a grandeza das construções que ainda resistem; mas as ruínas e as escoras que também se encontram por ali imediatamente nos lançam para a pequenez do entendimento da sociedade brasileira sobre o assunto o que, claro, resulta numa vergonhosa e lamentável falta de consciência para com a salvaguarda da memória nacional.

(Artigo publicado também in Informa Garanhuns [Garanhuns], agosto de 2017, nº 11, Opinião, p. 2).


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