Por Clênio Sierra de
Alcântara
Foto: do autor Cadê a ciranda que estava aqui? Desde a inauguração do palhoção não houve mais eventos no ainda incompleto Centro Cultural Estrela de Lia |
Não deveria ser assim, mas
infelizmente ainda vigora neste país, entre a maioria dos empresários do meio
artístico e em certas esferas governamentais, o entendimento de que o artista,
o brincante, o fazedor da cultura popular é um artista menor, de segunda
categoria, uma gente à qual se deve destinar os cachês mais irrisórios, os
palcos mais acanhados e afastados da grande praça onde se concentra a multidão
e toda a sorte de migalhas. Vistos como representantes do universo vasto e
múltiplo denominado folclore, esses artistas, não raro, mantêm seus brinquedos,
usanças e festividades à custa deles próprios e, às vezes, com o auxílio das
comunidades nas quais habitam. Parafraseando o que escreveu Euclides da Cunha
no clássico Os sertões, o artista
popular é antes de tudo um resistente.
Maria Madalena Correia do Nascimento,
a Lia de Itamaracá, a mais importante e mais famosa cirandeira do Brasil,
reconhecida por lei como Patrimônio Vivo de Pernambuco, e que vem, há mais de
cinquenta anos, lutando pela sobrevivência e difusão do folguedo ciranda, levando
o seu contagiante bailado e sedutor canto até para outros países, sabe muito
bem o que é ser artista popular numa terra que, em que pese as campanhas
publicitárias governamentais exaltando a face multicultural de Pernambuco, não
trata com o devido respeito a quem de fato merece.
Durante boa parte de sua
trajetória artística Lia penou para driblar as dificuldades todas da falta de
reconhecimento e mesmo de amparo social para se manter na ativa e não deixar
que sua ciranda desaparecesse seguindo seus infortúnios e suas desilusões.
Felizmente, tal qual o personagem do famoso samba de Paulo Vanzolini, ela
sacudiu a poeira e deu a volta por cima, se projetando como estrela de primeira
grandeza da cultura não apenas pernambucana, mas também brasileira, reconhecendo
na pessoa de Beto Hees, seu produtor há quase vinte anos, o suporte necessário para que ela
erguesse a cabeça e se desse valor, deixando de se sujeitar a certos figurões
que insistem em tratar o artista popular como o rebotalho do universo cultural
do país.
Em janeiro de 2014, devido
às fortes chuvas e à precariedade em que já se encontrava, a estrutura principal
do Centro Cultural Estrela de Lia (CCEL), um espaço de cultura e lazer que fora
erguido com recursos próprios por Lia e amigos em 2005, com o propósito
principal de promover e preservar a ciranda e que acabou ganhando uma dimensão
bem maior, abrigando apresentações de artistas de outros ritmos, palestras e
cursos profissionalizantes, veio ao chão. O fato ocorreu dias antes de Lia
completar setenta anos de idade; e, em virtude disso, ela não quis festa,
porque estava triste pela perda do espaço que era mais do que uma atração para
a comunidade do bairro de Jaguaribe, onde ela até hoje mora na Ilha de
Itamaracá: ele representava um prolongamento de seu fazer artístico e dizia
muito do que ela pensava e pensa não somente como artista mas também como
cidadã, de que a arte pode ser um veículo de transformação social.
E foi com esse pensamento
legítimo e vigoroso em mente que ainda naquele janeiro fatídico, ela e Beto
decidiram que era preciso arregaçar as mangas e buscar reerguer o centro
cultural a fim de que ele fosse devolvido com toda sua importância à comunidade
itamaracaense. Por essa época, eu passei a integrar a produção de Lia, andando
com ela e com Beto atrás de apoio e de recursos para pôr o CCEL novamente de
pé. Nessas idas e vindas percorremos inúmeras salas e gabinetes; estivemos com
o então ministro da Cultura Juca Ferreira e com a presidente da Fundação
Cultural Palmares, Cida Abreu, em Brasília; Lia bancou com o seu dinheiro os
custos para a liberação dos documentos e licenças necessárias para a realização
da obra junto à Prefeitura da Ilha de Itamaracá, ao Corpo de Bombeiros, à Agência Estadual
de Meio Ambiente (CPRH) e à Superintendência de Patrimônio da União (SPU);
lançamos na internet uma campanha de arrecadação de fundos pelo sistema de crowdfunding que não foi exitosa; e recebemos
a promessa de liberação de uma emenda parlamentar do deputado estadual
Guilherme Uchoa no valor de R$ 100.000,00 e de um aporte de R$ 70.000,000 do
vice-governador Raul Henry. Durante quase todo esse tempo contamos com o apoio
incondicional da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco
(Fundarpe) que, por exemplo, sob a rubrica da arquiteta Cristiane Feitosa,
elaborou o projeto do CCEL a partir do anteprojeto concebido por Demétrio Albuquerque,
que acabou sendo orçado – e vale dizer que seguindo todas as normas de
segurança e sustentabilidade: as madeiras, por exemplo, tinham de ter origem
certificada – em pouco mais de R$ 540.000,00, um valor muitíssimo elevado para
uma realidade de falta de patrocínios e apoios outros.
Como esse processo vinha se
arrastando há mais de dois anos e não havia uma perspectiva concreta de
obtenção de recursos num montante tão volumoso, no dia 31 de maio de 2016, numa terça-feira, pela
manhã, nos reunimos Lia, Beto e eu, em Jaguaribe, com o fito de avaliarmos,
enfim, todos os esforços que haviam sido envidados até ali para alcançar o nosso
intento; e a conclusão à qual chegamos, depois de mais de uma hora de conversa,
foi de que não havia mais por que ficar lutando contra a burocracia, o pouco
caso e a falta de respeito e consideração para com a própria Lia, uma senhora então com setenta e dois anos de idade que não tinha e nem tem mais uma vida toda pela frente e
não pode perder seu tempo e nem gastar o pouco dinheiro que tem investindo em
papéis burocráticos e em corridas de táxi para ir ao Recife falar com um e com
outro e voltar para casa carregando tão somente promessas. Ora, se na ocasião fazia seis
meses que ela estava à espera do pagamento de cachês, como se manter confiante de
que iria conseguir R$ 540.000,00 para reconstruir o centro cultural que, em
verdade, não é dela, e sim de toda a comunidade itamaracaense?
Na reunião ficou claro para
nós que se porventura ocorresse a liberação dos tais R$ 100.000,00 – imaginem
que, para que eles fossem liberados, Lia teria de entrar com uma contrapartida
de R$ 30.000,00 -, só iríamos ficar com um problema nas mãos e uma frustração
talvez maior, porque tal valor não daria para fazer muita coisa e a obra iria
ficar parada, se deteriorando.
Evidentemente que Lia
lamentou que o caso tivesse chegado a esse ponto, porque ela fez o que tinha de
ser feito e nada prosperou e nem saiu do papel. Ainda naquela terça-feira ela
compareceu à agência da Caixa Econômica da ilha a fim de encerrar a conta que
receberia os tais recursos que nunca passaram de promessas; e assinou um
comunicado destinado à presidente da Fundarpe, Márcia Souto, informando de sua
decisão de pôr fim ao convênio que estabelecera com esse órgão para a
reconstrução do CCEL.
Do alto
dos seus setenta e dois anos e gozando da vitalidade e da glória que seu
talento, seus esforços e os seus santos e orixás lhe proporcionaram, Lia
doravante resolveu que iria envidar toda a energia que lhe restava para
investir em sua carreira, escolher o repertório para um novo disco e espalhar
sua alegria levando sua ciranda para onde ela fosse chamada.
O fato foi que aquela tomada
de decisão ecoou em certo nicho da imprensa pernambucana e chegou aos gabinetes
decisórios dos órgãos governamentais; e o resultado foi que, de uma hora para
outra, anunciaram que a emenda parlamentar do deputado estadual Guilherme Uchoa
iria mesmo ser liberada. E assim foi que, na noite do dia 23 de agosto de 2016,
sob uma benfazeja chuva e contando com um esquenta povo comandado pelo grupo
Aparte Percussiva – após o cerimonial ocorreram apresentações do Coco de Selma,
Dona Glorinha e de Aurinha de Coco -, dezenas de pessoas compareceram ao terreno
que outrora abrigara o CCEL para ouvir o pronunciamento do nobre parlamentar,
que deu ciência à plateia da liberação do prometido e tão esperado recurso
financeiro.
Pois bem, tendo ocorrido a
liberação dos R$ 100.000,00 começou outra peleja para Beto Hees: correr atrás
de fornecedores do material de construção e da mão de obra para dar início à
edificação do palhoção, único elemento do projeto que era possível erguer com
aquele montante. Com a garra, o empenho e a obstinação de sempre, Beto
enfrentou com valentia uma série de contratempos que foram surgindo ao longo da
empreitada. E felizmente tudo foi feito dentro do tempo estipulado e respeitando
prazos e recomendações técnicas.
Obra pronta era a hora de
reinaugurar o Centro Cultural Estrela de Lia, ainda que apenas só uma parte
dele. O buchicho em torno do acontecimento correu a ilha, porque ninguém queria
perder a festança. O palhoção recebeu uma bonita iluminação. Um palco foi
montado. Neide, a baiana do acarajé, ferveu o azeite de dendê para bem fazer o
seu desejado quitute. E o pessoal foi aos poucos chegando e tomando toda a área
daquele espaço na noite do dia 21 de janeiro de 2017 para, juntamente com Lia
de Itamaracá, cirandar a valer em ritmo de celebração pelo renascimento do
centro cultural que tanta falta estava fazendo não somente para os moradores da
ilha bem como para os turistas e toda a gente que durante anos acorria
semanalmente até Jaguaribe para cirandar com Lia e com os seus convidados.
Naquela noite o deputado
Guilherme Uchoa, no calor do momento de festa, anunciou para a plateia que iria
se empenhar para que saísse o restante dos recursos necessários para a
efetivação do projeto do CCEL, no que foi bastante aplaudido.
Transcorridos seis meses
desde a inauguração do palhoção do CCEL, Lia de Itamaracá continua à espera de
que em algum momento recursos públicos ou privados apareçam para que o centro
cultural que ela fundou vários anos atrás possa finalmente renascer por
inteiro, mesmo porque, ela não tem recursos próprios para bancar uma despesa
tão elevada, uma vez que, em que pese o discurso oficial, os representantes da
cultura popular, por mais cartaz que tenham, como é o caso da cirandeira Lia, continuam amargando uma agenda de apresentações acanhada e com cachês que, além
de pequenos, demoram meses para serem pagos. A título de exemplo bastaria dizer
que na programação do mais recente ciclo junino da Prefeitura da Ilha de Itamaracá, Lia
ficou de fora, tendo realizado um único show no período, que ocorreu no Pátio
de São Pedro, no Recife, no dia 28 de junho.
Tive a satisfação de passar
os recentes festejos juninos em São Luís do Maranhão. E lá eu pude perceber que
Pernambuco, que se arvora de ser uma “nação multicultural”, tem muito que aprender
com os governantes maranhenses. Eu cheguei àquela cidade no dia 20 de junho; e
com exceção da noite do dia 24, que eu passei em Barreirinhas, compareci ao
arraial montado na Praça Maria Aragão, pertinho do sítio histórico - havia
outros em mais quatro bairros da capital – nos dias 20, 21, 22, 23, 25 e 26
para ver não os Wesleys Safadões e as Marílias Mendonças da vida que estão em
todo lugar e no ao inteiro, e sim a autêntica cultura popular maranhense: bumba
meu boi com seus vários “sotaques”, que são definidos pelo conjunto de
instrumentos musicais utilizados pelos grupos, cacuriá e tambor de crioula. E isso,
gente, numa programação traçada pelo Governo do estado e pela Prefeitura de São
Luís que teve início no dia 14 de junho e se estendeu até o dia 2 de julho. Claro
que tinha espaço para o forró e para outros ritmos, mas era a cultura popular
que era mostrada como atração principal para os próprios maranhenses e para os
forasteiros como eu, que estavam fazendo turismo naquela capital. E tem mais:
considerando que julho é mês de férias escolares e na cidade era grande o
número de visitantes, grupos de bumba meu boi, tambor de crioula e cacuriá
preencheram uma outra programação, se apresentando em pelo menos dois pontos da
por demais receptiva e atraente São Luís do Maranhão, lugar em que eu fui tão
feliz como poucas vezes fui em toda a minha vida. De repente eu fecho os olhos
e todos os sons e todo o colorido e todo o bailado dos brincantes de lá se
reconstituem em minha mente e me enchem de um imenso prazer desejoso de se ver
repetido. Nunca esquecerei aqueles dias de imersão na cultura popular que eu
experienciei nas terras maranhenses.
Estive em companhia da
negona Lia de Itamaracá dias atrás. Indaguei-lhe sobre a quantas estavam as
questões envolvendo o seu centro cultural; e ela, com a serenidade de sempre,
me disse: “Na mesma, nego. Até agora as promessas que me fizeram não foram
cumpridas. O que é que eu posso fazer?!”.
Houve tempo em que Lia de
Itamaracá se dispunha a ir atrás de fulano e de beltrano para pedir uma coisa e
outra, fosse para atender suas necessidades e carências sociais, fosse para
dizer que ela e sua ciranda estavam ali em Jaguaribe dispostas a serem
reconhecidas de fato e mostradas ao mundo. Felizmente esse tempo passou. Embora
não tenha auferido riquezas materiais, Lia alcançou um status e um valor dentro
da cultura popular que pouquíssimos nomes em todo o país alcançaram. Lia de
Itamaracá não desdenha favores e nem recusa apoios para a realização de seus
projetos culturais, mas compreende que não tem mais idade e nem disposição para
abrir mão de uma dignidade que com muitíssimo esforço foi conquistada.
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