11 de agosto de 2017

Assim não dá para cirandar

Por Clênio Sierra de Alcântara


Foto: do autor    Cadê a ciranda que estava aqui? Desde a inauguração do palhoção não houve mais eventos no ainda incompleto Centro Cultural Estrela de Lia



Não deveria ser assim, mas infelizmente ainda vigora neste país, entre a maioria dos empresários do meio artístico e em certas esferas governamentais, o entendimento de que o artista, o brincante, o fazedor da cultura popular é um artista menor, de segunda categoria, uma gente à qual se deve destinar os cachês mais irrisórios, os palcos mais acanhados e afastados da grande praça onde se concentra a multidão e toda a sorte de migalhas. Vistos como representantes do universo vasto e múltiplo denominado folclore, esses artistas, não raro, mantêm seus brinquedos, usanças e festividades à custa deles próprios e, às vezes, com o auxílio das comunidades nas quais habitam. Parafraseando o que escreveu Euclides da Cunha no clássico Os sertões, o artista popular é antes de tudo um resistente.

Maria Madalena Correia do Nascimento, a Lia de Itamaracá, a mais importante e mais famosa cirandeira do Brasil, reconhecida por lei como Patrimônio Vivo de Pernambuco, e que vem, há mais de cinquenta anos, lutando pela sobrevivência e difusão do folguedo ciranda, levando o seu contagiante bailado e sedutor canto até para outros países, sabe muito bem o que é ser artista popular numa terra que, em que pese as campanhas publicitárias governamentais exaltando a face multicultural de Pernambuco, não trata com o devido respeito a quem de fato merece.

Durante boa parte de sua trajetória artística Lia penou para driblar as dificuldades todas da falta de reconhecimento e mesmo de amparo social para se manter na ativa e não deixar que sua ciranda desaparecesse seguindo seus infortúnios e suas desilusões. Felizmente, tal qual o personagem do famoso samba de Paulo Vanzolini, ela sacudiu a poeira e deu a volta por cima, se projetando como estrela de primeira grandeza da cultura não apenas pernambucana, mas também brasileira, reconhecendo na pessoa de Beto Hees, seu produtor há quase vinte  anos, o suporte necessário para que ela erguesse a cabeça e se desse valor, deixando de se sujeitar a certos figurões que insistem em tratar o artista popular como o rebotalho do universo cultural do país.

Em janeiro de 2014, devido às fortes chuvas e à precariedade em que já se encontrava, a estrutura principal do Centro Cultural Estrela de Lia (CCEL), um espaço de cultura e lazer que fora erguido com recursos próprios por Lia e amigos em 2005, com o propósito principal de promover e preservar a ciranda e que acabou ganhando uma dimensão bem maior, abrigando apresentações de artistas de outros ritmos, palestras e cursos profissionalizantes, veio ao chão. O fato ocorreu dias antes de Lia completar setenta anos de idade; e, em virtude disso, ela não quis festa, porque estava triste pela perda do espaço que era mais do que uma atração para a comunidade do bairro de Jaguaribe, onde ela até hoje mora na Ilha de Itamaracá: ele representava um prolongamento de seu fazer artístico e dizia muito do que ela pensava e pensa não somente como artista mas também como cidadã, de que a arte pode ser um veículo de transformação social.

E foi com esse pensamento legítimo e vigoroso em mente que ainda naquele janeiro fatídico, ela e Beto decidiram que era preciso arregaçar as mangas e buscar reerguer o centro cultural a fim de que ele fosse devolvido com toda sua importância à comunidade itamaracaense. Por essa época, eu passei a integrar a produção de Lia, andando com ela e com Beto atrás de apoio e de recursos para pôr o CCEL novamente de pé. Nessas idas e vindas percorremos inúmeras salas e gabinetes; estivemos com o então ministro da Cultura Juca Ferreira e com a presidente da Fundação Cultural Palmares, Cida Abreu, em Brasília; Lia bancou com o seu dinheiro os custos para a liberação dos documentos e licenças necessárias para a realização da obra junto à Prefeitura da Ilha de Itamaracá, ao Corpo de Bombeiros, à Agência Estadual de Meio Ambiente (CPRH) e à Superintendência de Patrimônio da União (SPU); lançamos na internet uma campanha de arrecadação de fundos pelo sistema de crowdfunding que não foi exitosa; e recebemos a promessa de liberação de uma emenda parlamentar do deputado estadual Guilherme Uchoa no valor de R$ 100.000,00 e de um aporte de R$ 70.000,000 do vice-governador Raul Henry. Durante quase todo esse tempo contamos com o apoio incondicional da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) que, por exemplo, sob a rubrica da arquiteta Cristiane Feitosa, elaborou o projeto do CCEL a partir do anteprojeto concebido por Demétrio Albuquerque, que acabou sendo orçado – e vale dizer que seguindo todas as normas de segurança e sustentabilidade: as madeiras, por exemplo, tinham de ter origem certificada – em pouco mais de R$ 540.000,00, um valor muitíssimo elevado para uma realidade de falta de patrocínios e apoios outros.

Como esse processo vinha se arrastando há mais de dois anos e não havia uma perspectiva concreta de obtenção de recursos num montante tão volumoso, no dia 31 de maio de 2016, numa terça-feira, pela manhã, nos reunimos Lia, Beto e eu, em Jaguaribe, com o fito de avaliarmos, enfim, todos os esforços que haviam sido envidados até ali para alcançar o nosso intento; e a conclusão à qual chegamos, depois de mais de uma hora de conversa, foi de que não havia mais por que ficar lutando contra a burocracia, o pouco caso e a falta de respeito e consideração para com a própria Lia, uma senhora então com setenta e dois anos de idade que não tinha e nem tem mais uma vida toda pela frente e não pode perder seu tempo e nem gastar o pouco dinheiro que tem investindo em papéis burocráticos e em corridas de táxi para ir ao Recife falar com um e com outro e voltar para casa carregando tão somente promessas. Ora, se na ocasião fazia seis meses que ela estava à espera do pagamento de cachês, como se manter confiante de que iria conseguir R$ 540.000,00 para reconstruir o centro cultural que, em verdade, não é dela, e sim de toda a comunidade itamaracaense?

Na reunião ficou claro para nós que se porventura ocorresse a liberação dos tais R$ 100.000,00 – imaginem que, para que eles fossem liberados, Lia teria de entrar com uma contrapartida de R$ 30.000,00 -, só iríamos ficar com um problema nas mãos e uma frustração talvez maior, porque tal valor não daria para fazer muita coisa e a obra iria ficar parada, se deteriorando.

Evidentemente que Lia lamentou que o caso tivesse chegado a esse ponto, porque ela fez o que tinha de ser feito e nada prosperou e nem saiu do papel. Ainda naquela terça-feira ela compareceu à agência da Caixa Econômica da ilha a fim de encerrar a conta que receberia os tais recursos que nunca passaram de promessas; e assinou um comunicado destinado à presidente da Fundarpe, Márcia Souto, informando de sua decisão de pôr fim ao convênio que estabelecera com esse órgão para a reconstrução do CCEL.

Do alto dos seus setenta e dois anos e gozando da vitalidade e da glória que seu talento, seus esforços e os seus santos e orixás lhe proporcionaram, Lia doravante resolveu que iria envidar toda a energia que lhe restava para investir em sua carreira, escolher o repertório para um novo disco e espalhar sua alegria levando sua ciranda para onde ela fosse chamada.


O fato foi que aquela tomada de decisão ecoou em certo nicho da imprensa pernambucana e chegou aos gabinetes decisórios dos órgãos governamentais; e o resultado foi que, de uma hora para outra, anunciaram que a emenda parlamentar do deputado estadual Guilherme Uchoa iria mesmo ser liberada. E assim foi que, na noite do dia 23 de agosto de 2016, sob uma benfazeja chuva e contando com um esquenta povo comandado pelo grupo Aparte Percussiva – após o cerimonial ocorreram apresentações do Coco de Selma, Dona Glorinha e de Aurinha de Coco -, dezenas de pessoas compareceram ao terreno que outrora abrigara o CCEL para ouvir o pronunciamento do nobre parlamentar, que deu ciência à plateia da liberação do prometido e tão esperado recurso financeiro.

Pois bem, tendo ocorrido a liberação dos R$ 100.000,00 começou outra peleja para Beto Hees: correr atrás de fornecedores do material de construção e da mão de obra para dar início à edificação do palhoção, único elemento do projeto que era possível erguer com aquele montante. Com a garra, o empenho e a obstinação de sempre, Beto enfrentou com valentia uma série de contratempos que foram surgindo ao longo da empreitada. E felizmente tudo foi feito dentro do tempo estipulado e respeitando prazos e recomendações técnicas.

Obra pronta era a hora de reinaugurar o Centro Cultural Estrela de Lia, ainda que apenas só uma parte dele. O buchicho em torno do acontecimento correu a ilha, porque ninguém queria perder a festança. O palhoção recebeu uma bonita iluminação. Um palco foi montado. Neide, a baiana do acarajé, ferveu o azeite de dendê para bem fazer o seu desejado quitute. E o pessoal foi aos poucos chegando e tomando toda a área daquele espaço na noite do dia 21 de janeiro de 2017 para, juntamente com Lia de Itamaracá, cirandar a valer em ritmo de celebração pelo renascimento do centro cultural que tanta falta estava fazendo não somente para os moradores da ilha bem como para os turistas e toda a gente que durante anos acorria semanalmente até Jaguaribe para cirandar com Lia e com os seus convidados.

Naquela noite o deputado Guilherme Uchoa, no calor do momento de festa, anunciou para a plateia que iria se empenhar para que saísse o restante dos recursos necessários para a efetivação do projeto do CCEL, no que foi bastante aplaudido.

Transcorridos seis meses desde a inauguração do palhoção do CCEL, Lia de Itamaracá continua à espera de que em algum momento recursos públicos ou privados apareçam para que o centro cultural que ela fundou vários anos atrás possa finalmente renascer por inteiro, mesmo porque, ela não tem recursos próprios para bancar uma despesa tão elevada, uma vez que, em que pese o discurso oficial, os representantes da cultura popular, por mais cartaz que tenham, como é o caso da cirandeira Lia, continuam amargando uma agenda de apresentações acanhada e com cachês que, além de pequenos, demoram meses para serem pagos. A título de exemplo bastaria dizer que na programação do mais recente ciclo junino da Prefeitura da Ilha de Itamaracá, Lia ficou de fora, tendo realizado um único show no período, que ocorreu no Pátio de São Pedro, no Recife, no dia 28 de junho.

Tive a satisfação de passar os recentes festejos juninos em São Luís do Maranhão. E lá eu pude perceber que Pernambuco, que se arvora de ser uma “nação multicultural”, tem muito que aprender com os governantes maranhenses. Eu cheguei àquela cidade no dia 20 de junho; e com exceção da noite do dia 24, que eu passei em Barreirinhas, compareci ao arraial montado na Praça Maria Aragão, pertinho do sítio histórico - havia outros em mais quatro bairros da capital – nos dias 20, 21, 22, 23, 25 e 26 para ver não os Wesleys Safadões e as Marílias Mendonças da vida que estão em todo lugar e no ao inteiro, e sim a autêntica cultura popular maranhense: bumba meu boi com seus vários “sotaques”, que são definidos pelo conjunto de instrumentos musicais utilizados pelos grupos, cacuriá e tambor de crioula. E isso, gente, numa programação traçada pelo Governo do estado e pela Prefeitura de São Luís que teve início no dia 14 de junho e se estendeu até o dia 2 de julho. Claro que tinha espaço para o forró e para outros ritmos, mas era a cultura popular que era mostrada como atração principal para os próprios maranhenses e para os forasteiros como eu, que estavam fazendo turismo naquela capital. E tem mais: considerando que julho é mês de férias escolares e na cidade era grande o número de visitantes, grupos de bumba meu boi, tambor de crioula e cacuriá preencheram uma outra programação, se apresentando em pelo menos dois pontos da por demais receptiva e atraente São Luís do Maranhão, lugar em que eu fui tão feliz como poucas vezes fui em toda a minha vida. De repente eu fecho os olhos e todos os sons e todo o colorido e todo o bailado dos brincantes de lá se reconstituem em minha mente e me enchem de um imenso prazer desejoso de se ver repetido. Nunca esquecerei aqueles dias de imersão na cultura popular que eu experienciei nas terras maranhenses.

Estive em companhia da negona Lia de Itamaracá dias atrás. Indaguei-lhe sobre a quantas estavam as questões envolvendo o seu centro cultural; e ela, com a serenidade de sempre, me disse: “Na mesma, nego. Até agora as promessas que me fizeram não foram cumpridas. O que é que eu posso fazer?!”.


Houve tempo em que Lia de Itamaracá se dispunha a ir atrás de fulano e de beltrano para pedir uma coisa e outra, fosse para atender suas necessidades e carências sociais, fosse para dizer que ela e sua ciranda estavam ali em Jaguaribe dispostas a serem reconhecidas de fato e mostradas ao mundo. Felizmente esse tempo passou. Embora não tenha auferido riquezas materiais, Lia alcançou um status e um valor dentro da cultura popular que pouquíssimos nomes em todo o país alcançaram. Lia de Itamaracá não desdenha favores e nem recusa apoios para a realização de seus projetos culturais, mas compreende que não tem mais idade e nem disposição para abrir mão de uma dignidade que com muitíssimo esforço foi conquistada.

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