Por Clênio
Sierra de Alcântara
Fotos: Arquivo do autor Como deter a destruição avassaladora que acomete os prédios históricos do Recife? Os incêndios, as obras clandestinas, o abandono... Tudo contribui para que pouco a pouco a cidade perca os elementos constituintes de sua memória urbana |
Passava
da meia-noite do último dia 30 de julho, quando o Corpo de Bombeiros foi acionado
para combater um incêndio num sobrado localizado na Rua da Glória, no bairro da
Boa Vista, área central do Recife. Uma, duas, três, várias viaturas da valorosa
Corporação seguiram para o local, tendo os seus componentes passado toda a
madrugada empenhados em debelar as chamas que consumiam o imóvel que, logo se
ficou sabendo, comportava quartos de aluguel. Uma testemunha que esteve
presente no logradouro naquela hora fatídica em que o fogo parecia estar
incontrolável me disse que o cenário era a um só tempo aterrorizante e
desolador: as chamas rapidamente se alastraram pelo prédio e atingiram o pavimento superior, destruindo todo
o telhado.
O
bairro da Boa Vista é um dos núcleos de ocupação mais antiga da capital
pernambucana; e em que pesem todas as transformações por que passou o núcleo
primitivo do Recife, que compreende ainda os bairros de Santo Antônio, São José
e Bairro do Recife, guarda a Boa Vista um considerável número de prédios que
remontam a um passado longínquo da urbe recifense. Muito já foi desfigurado,
mas ainda restam de pé dezenas de sobrados e casas térreas que evocam um tempo em que o porto dessa
metrópole figurava como o segundo mais importante do Brasil, atrás apenas do do
Rio de Janeiro, que era então a capital do país; e ter um porto
movimentadíssimo além de significar entrada e saída de riquezas, conferia ao
Recife não somente a condição de lugar de passagem de gente de várias partes do
mundo, como também um sítio onde muitas pessoas buscavam se fixar, se
instalando principalmente nas zonas adjacentes ao movimento portuário, bem como
para as bandas da Boa Vista, que não demorou a figurar como um território
bastante aprazível para o estabelecimento de moradias. No Recife cosmopolita de
então, foi na Boa Vista que uma comunidade de judeus se instalou, abrindo
pontos comerciais e residindo em suas ruas ainda sem o alvoroço medonho e
maciço dos veículos automotivos que se vê nos dias de hoje.
Postes, fiação, carros, descaracterizações, ruínas.... A Rua da Glória está perdendo desde há muito a sua glória |
Testemunhos
desse Recife de tempos idos, não são poucos os edifícios do bairro da Boa Vista
que estão caminhando para o desparecimento. Muitos já deram lugar a
estacionamentos. Outros seguem abandonados. E outros tantos, como o sobrado da
Rua da Glória que foi tomado pelo fogo dias atrás, estão seriamente abalados, como alguns da
Rua Velha, que lhe fica próxima e que, igualmente a ela e à Rua da Matriz,
concentra imóveis que, caso passassem por uma vistoria técnica rigorosa
certamente deixariam de poder abrigar qualquer viva alma, dadas as más
condições de suas estruturas.
No
instante mesmo em que os bombeiros, ainda no dia seguinte à tragédia, se
mantinham ali para retirar os corpos de dois moradores que morreram
carbonizados, alguém lembrou de dizer que aquelas pessoas e outras tantas viviam
e vivem em prédios que a Defesa Civil deveria interditar o quanto antes, porque
esses “verdadeiros cortiços” apresentam paredes rachadas, madeiramento velho e
instalações elétricas igualmente em estado precário. Ocorre que o Recife é, a
exemplo de todas as capitais brasileiras, uma cidade que continua com acentuado
déficit habitacional. Sim, eu concordo que pessoas correm risco de vida ao
morarem em prédios como o que o fogo consumiu na madrugada do último domingo. Mas
para onde vai toda essa gente? Para as favelas nos arredores do município? Para
debaixo das marquises dos prédios da Av. Guararapes? Ou vai para as palafitas
erguidas no Rio Capibaribe, a cerca de seiscentos metros da Rua da Glória?
A Municipalidade contestou o abandono daquele
sítio informando, através de uma nota da Diretoria de Preservação do Patrimônio
Cultural do Recife (DPPC), que o sobrado onde ocorreu o incêndio integra o perímetro de preservação do
bairro da Boa Vista, inserido que está na Zona Especial de Preservação do
Patrimônio Histórico e Cultural do município (ZEPH 8); que acompanha a situação da área; e
que o imóvel nº 366 já havia sido notificado pela fiscalização da Diretoria
Executiva de Controle Urbano do Recife (Dircon) pela ausência do alvará que
permitisse o funcionamento do sobrado como pensão, motivo pelo qual seu
proprietário recebeu uma multa de R$ 6.191,24. Ora, mas se aquele perímetro
configura mesmo uma “Zona Especial de Preservação" por que, então, se veem ali
tantos imóveis descaracterizados, arruinados e abandonados?
Na ensolarada tarde de ontem, eu fui percorrer mais uma vez a Rua da Glória em toda a sua extensão, mirando atentamente para a aparência das edificações que comportam moradias, pontos comerciais e instituições como o Convento de Nossa Senhora da Glória e a Delegacia do Idoso. De certa forma, a Rua da Glória é, atualmente, uma amostra bastante reveladora do muito de ruim que marca diversos logradouros do Recife detentores de casario antigo: em vez de fiação embutida para que se veja com inteireza as fachadas dos imóveis, postes com superabundância de fios; presença maciça de veículos automotivos num espaço tão estreito; construções abandonadas e em ruínas; edificações que perderam o pitoresco de seus desenhos arquitetônicos; e acúmulo de entulhos aqui e ali.
Na ensolarada tarde de ontem, eu fui percorrer mais uma vez a Rua da Glória em toda a sua extensão, mirando atentamente para a aparência das edificações que comportam moradias, pontos comerciais e instituições como o Convento de Nossa Senhora da Glória e a Delegacia do Idoso. De certa forma, a Rua da Glória é, atualmente, uma amostra bastante reveladora do muito de ruim que marca diversos logradouros do Recife detentores de casario antigo: em vez de fiação embutida para que se veja com inteireza as fachadas dos imóveis, postes com superabundância de fios; presença maciça de veículos automotivos num espaço tão estreito; construções abandonadas e em ruínas; edificações que perderam o pitoresco de seus desenhos arquitetônicos; e acúmulo de entulhos aqui e ali.
Este prédio está há muito tempo abandonado.... |
Já este outro pode desabar a qualquer momento |
Segundo
apurou o repórter Marcos Toledo, da Folha
de Pernambuco (Marcos Toledo. “Vidas em ruínas”. Recife, Folha de Pernambuco, 1º de agosto de
2017, Cotidiano, p. 1), José de Arimateia Bezerra Luiz, de 43 anos, era
epiléptico e casado com Verônica Marta Lídio da Silva, que era nove anos mais
velha do que ele. José pagava os R$ 350,00 do aluguel com o benefício que
recebia do INSS. Os corpos do casal foram resgatados do meio dos escombros
pelos bombeiros na manhã da segunda-feira. José e Verônica morreram talvez
vitimados por uma dessas fatalidades que vez ou outra acometem moradores de
prédios degradados dos centros das grandes cidades.
Ali,
naquela pensão instalada no edifício de nº 366, localizado na Rua da Glória, José
de Arimateia e Verônica Marta, coitadinhos, moravam, tudo leva a crer, desprovidos da verdadeira
glória da vida, que é poder viver com dignidade.
Infelizmente o caso é irreversível, pobre rua da Glória e suas outras vizinhas !
ResponderExcluirÉ lamentável a memória da cidade sendo aos poucos destruída sob o olhar complacente das autoridades e a convivência da nossa população. Se sai daqui para a Europa para admirar esses prédios e tornar robusto o turismo de lá, enquanto aqui o descaso é total. Com as mesmas oportunidades
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