13 de outubro de 2017

Ciranda e coco, herança e tradição


Por Clênio Sierra de Alcântara


Fotos: do autor     O cenário da festa


Os mestres e mestras da chamada cultura popular comumente enfrentam, uma série de desafios para conseguir manter e/ou inserir os seus folguedos na esfera social em que vivem. Não é tarefa das mais fáceis conduzir, manter e pôr na rua ou mesmo no seio restrito de uma pequena comunidade um brinquedo, sem que se disponha de meios próprios suficientes para isso. Na dinâmica de tais manifestações culturais fica bastante explícita uma explicação dada por Antonio Augusto Arantes no início dos anos 80 ao tratar do conceito de “cultura popular”. Segundo ele, tal conceito remete, na verdade, a um amplo espectro de concepções e pontos de vista que vão “desde a negação (implícita ou explícita) de que os fatos por ela identificados contenham alguma forma de ‘saber’, até o extremo de atribuir-lhes o papel de resistência contra a dominação de classe” (Antonio Augusto Arantes. O que é cultura popular. 12ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 7. A 1ª edição é de 1981). 


Público chegando para dançar coco e ciranda


Ciranda dos Tupinambás: herança de Mestre Carboreto animando a noite em João Pessoa


O caráter de resistência da cultura popular, que eu tanto enfatizo nos meus escritos, expõe uma realidade indiscutível. Não conheço nenhum estudo que trate especificamente do desaparecimento de grupos de folguedos populares, mas sou levado a crer, dadas as amostras do que eu já li e vi por aí, que muitos deles desapareceram, e não somente por falta de estímulos financeiros e de inserção no dito mercado cultural como também por conta de outro desafio que por vezes recai sobre os mestres e mestras: eles nem sempre conseguem deixar herdeiros de suas tradições que sejam tão resistentes quanto eles.


Na tarde do último dia 3 de agosto eu segui rumo à capital da Paraíba a fim de tomar parte pela primeira vez na Festa das Neves, na qual se celebra Nossa Senhora das Neves, a padroeira da cidade, e o próprio aniversário de 432 anos daquele centro urbano, muito embora o 5 de agosto de 1585 marque o dia da rendição dos índios tabajaras, que eram hostis aos portugueses, e seja 4 de novembro a data exata de sua fundação propriamente dita. Não foi exatamente o início dos festejos em si que me levou ao icônico Ponto de Cem Réis para assistir às manifestações artísticas. Eu fui até lá somente para acompanhar a apresentação de uma ciranda cuja denominação a programação não mencionava.


A ciranda acabou de começar...




Quando saiu do seu trabalho, no bairro do Varadouro, o meu amigo Tony Lamon resolveu se juntar a mim naquela noite festiva na qual a brisa soprava fria e reconfortante. Ali, defronte, ao palco, em meio ao público que principiava a chegar, reencontrei Tina, a contramestra do cirandeiro Mané Baixinho; foi ela quem me falou que a tal ciranda que iria subir ao palco era a Ciranda dos Tupinambás; e mais do que isso, Tina me apontou o mestre cirandeiro Hiatagan Ferreira, filho do falecido Mestre Carboreto, que, por sua vez, me apresentou à sua convidada, a coquista Ana do Coco. E, preparado que eu fui para dar continuidade aos meus registros relacionados com tais folguedos, tratei de não perder tempo. 


Os estudiosos e pesquisadores da ciranda tal qual ela é conhecida e vivenciada em Pernambuco certamente já beberam das fontes preciosas deixadas por Jaime Diniz (Ciranda: roda de adultos no folclore pernambucano. Separata da Revista Deca, Recife, Ano II, 1960, nº 3), Evandro Rabello (Ciranda: dança de roda, dança da moda. Recife: Editora Universitária/Universidade Federal de Pernambuco, 1979), Altimar de Alencar Pimentel (Ciranda de adultos. João Pessoa: Fundo de Incentivo à Cultura Augusto dos Anjos, 2005) e mais recentemente por Déborah Callender (“Histórias da ciranda: silêncios e possibilidades”. In Textos escolhidos de cultura e arte populares. Rio de Janeiro, vol. 10, nº 1, p. 113-132, mai. 2013). E quem leu tais produções bibliográficas tomou ciência, entre muitas outras informações, de três observações que eu quero destacar aqui: 1. Que a ciranda de adultos que até hoje se pratica na Paraíba certamente é proveniente de Pernambuco; 2. Que os mestres dos folguedos populares habitualmente são envolvidos ou se envolveram com a manutenção de mais de um brinquedo; 3. Que, tudo leva a crer, sempre existiu uma aproximação entre a ciranda e o coco de roda, daí por que normalmente coquistas cantam cirandas e cirandeiros entoam cocos.






Antes que a apresentação da Ciranda dos Tupinambás tivesse início, eu chamei o Hiatagan e a Ana para trás do palco a fim de que eu pudesse entrevistá-los.


De acordo com o dicionário da língua portuguesa de autoria de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, o vocábulo herança tem os seguintes significados: 1. O que se herda, ou se transmite por hereditariedade. 2. Patrimônio deixado por alguém ao morrer. Hiatagan Ferreira de Araújo, de 24 anos, é um dos seis filhos de ninguém menos do que o afamado e talentoso Mestre Carboreto, que, após o falecimento do pai, resolveu, junto com os outros irmãos, manter a Ciranda dos Tupinambás viva e atuante. Hiatagan me contou que começou a acompanhar seu pai aos três anos de idade: “Trago de raiz, do sangue, uma coisa que o meu pai me ensinou, que é cultura popular. Meu pai foi a raiz dessa cultura, passando ela pros filhos e pros amigos”. A família até hoje está estabelecida na Rua José Augusto Trindade, nº 42, em Mandacaru, um lugar que é bastante conhecido pelas carências sociais, pelos elevados índices de criminalidade e por ser um dos bairros da capital paraibana onde manifestações da cultura popular pulsam com grande força. E como sobrevive a Ciranda dos Tupinambás? “A gente fazia um bocado, várias apresentações, mas hoje fazemos no máximo uma por ano, pelos órgãos do Governo”. O grupo não recebe incentivos? “Incentivo não. O incentivo que nós temos é de tirar os jovens da rua, entendeu? Porque onde tiver cultura popular e que esses jovens possam se agradar, eles vão querer acompanhar uma ciranda do que estar no mundo”. E vai dar para continuar assim, Hiatagan? “Se depender de mim e dos muitos amigos que nós temos, a ciranda nunca vai se acabar”, disse enfático.







José Ferreira de Araújo, o Mestre Carboreto, que nasceu na capital da Paraíba quando ela já se chamava João pessoa, e faleceu em 19 de abril de 2014, aos 68 anos, foi um dos mestres cirandeiros que, assim como Vó Mera, Mestre Benedito, de Cabedelo, e os próprios cirandeiros do Vale do Gramame, ficaram de fora da pesquisa realizada por Altimar de Alencar Pimentel. Filho e neto de brincantes, Mestre Carboreto iniciou-se no universo da cultura popular ainda criança, quando contava apenas 8 anos de idade. Apesar de não ser longa, é bastante reveladora a entrevista que ele concedeu a Benedito Carlos da Silva três anos atrás. Dono de uma memória admirável, ele recordou na ocasião que tomou parte em vários grupos de tribos indígenas que desfilavam no Carnaval, como a Ipiranga, na qual fazia o papel de espião, a Tabajaras, a Guanabara, a Tupi-Guarani, a Africanos e a Tupinambás, que foi fundada em 1936, no bairro da Torre, e da qual o seu pai participou e que, depois de ter passado pela condução de inúmeros mestres, foi refundada por ele. Generoso, Mestre Carboreto, que também foi mestre de lapinha, quadrilha junina, boi de reis e da Barca Santa Maria, exaltou em seu depoimento que a sua esposa “era meu braço direito pra tudo”; e que o genro deles, “conhecido como Aimoré”, confeccionava cocares e tinha a função de feiticeiro no folguedo. Ao final dos ensaios de sua tribo, Mestre Carboreto costumava distribuir sopa em frente à sua casa. No vistoso estandarte da agremiação que exaltava as cores amarelo, vermelho, branco e verde, vemos uma índia envolvida por uma enorme serpente. Com o seu jeito simples e ao mesmo tempo firme de falar, no depoimento Mestre Carboreto disse o que esperava dos gestores culturais: “Os gestores possam sentir a nossa necessidade, para que os gestores possam sentir que a gente é realmente a verdadeira história do Brasil e nos dar incentivo, pra que a gente possa continuar fazendo esse trabalho que a gente faz”. No ano de sua morte, Mestre Carboreto foi campeão do seu grupo, garantindo acesso ao grupo especial. Grande amigo de Chico César, ao lado de quem se apresentou mais de uma vez, Mestre Carboreto, assim como o paraibano de Catolé do Rocha, era um artista negro, altivo, talentoso e muito sabedor do seu valor.

No palco, Hiatagan Ferreira conduziu a Ciranda dos Tupinambás cantando versos como estes:

Eu não sabia que te amar fosse loucura
Meu coração agora está em pé de guerra
No fim da feira do meu coração,

Meu avião vai pousar em outras terras.







E Ana? Cadê Ana hein, minha gente? Olha ela aí!

Ana Lúcia Rodrigues do Nascimento, a Ana do Coco, é paraibana da cidade do Conde, onde ainda hoje mora, mais precisamente na comunidade quilombola Ipiranga. Bem falante e extrovertida, logo de cara ela se dispôs a me conceder um depoimento antes de subir ao palco. Mestra do seu ofício de coquista, Ana do Coco me contou que tudo o que diz respeito ao folguedo que domina aprendeu com sua mãe, Mestra Lenita, que faleceu em 2015: “Minha mãe me deixou essa herança”, ela destacou. Certa feita Lenita Lino do Nascimento, a Mestra Lenita, prestou um depoimento em que disse que desde muito pequena começou a frequentar locais onde aconteciam apresentações de coco levada por sua mãe, que não tendo com quem deixá-la, acabava levando ela para também brincar nas rodas de coco. Ana por que é que cirandeiro canta coco e coquista canta ciranda, hein? Ela respondeu: “Ciranda e coco andam juntos. Quando a roda de coco vai ficando fria, a gente puxa uma ciranda que junta o povo tudinho, depois, retoma o coco de novo e aí pega fogo”.

Em 2010 a comunidade em que a coquista Ana atua ganhou o Prêmio Cultura Viva, do Ministério da Cultura, que possibilitou a construção do Pavilhão do Coco. E de lá para cá, o que vem acontecendo na cultura local? “Muita dificuldade. Agora a Prefeitura já se mostra simpática, mas investir mesmo em cultura, não investe um centavo”. O grupo, que ainda não conseguiu registrar em disco os cerca de cento e quarenta cocos do próprio repertório – isso sem contar os de domínio público, que também são entoados -, mantém o projeto “Clamores Antigos” pelo qual mestres do coco passam a experiência deles – canto, dança, instrumentos – para as crianças matriculadas no Ensino Fundamental 1. Além disso, há sete anos, no último sábado de cada mês, o grupo promove, com recursos próprios, apresentações de coco e de ciranda e recebe convidados: “Quando termina a festa, a gente puxa os cabelos pra saber como vai pagar as contas”. E não tem incentivo por parte do poder público para a cultura popular? A esse questionamento Ana do Coco me respondeu descrevendo uma realidade que, lamentavelmente, não é uma exclusividade da Paraíba:



Às vezes o poder público mostra simpatia pela cultura, porque eles não podem deixar de ver, porque a gente incomoda. Mas eles se veem pressionados pelo público-alvo, que são os jovens, que querem bandas, aquelas músicas de plástico, que não trazem incentivo algum para o povo, para a comunidade, que só incentivam a violência e a prostituição. Então eles se veem tão pressionados que preferem pagar uma nota a uma banda dessas do que pagar um cachê digno a uma cultura do coco, a um grupo de coco.













Com Ana no palco, a ciranda fez uma pausa para dar lugar ao coco

           
Pausa na ciranda porque chegou a hora de a convidada Ana do Coco entrar no palco e abrilhantar ainda mais o show de cultura popular apresentado no Ponto de Cem Réis. Dona da voz, ela saudou o público assim:


Boa noite meu povo todo
Boa noite meu pessoal
Boa noite pra quem chegou

Boa noite pra quem chegar.



Hiatagan Ferreira: defendo com valentia o legado do seu pai

Ana do Coco: compromisso com a preservação e a valorização da cultura popular
Guardiões de tradições e fecundos transmissores de conhecimentos vinculados aos folguedos que dirigem, os mestres da cultura popular enfrentam toda a sorte de dificuldades para conseguir botar os seus brinquedos na rua. Infelizmente, nem todos são como Hiatagan Ferreira e Ana do Coco que de bom grado receberam os folguedos de seus pais como herança e dia a dia vêm batalhando para mantê-los vivos; ocorre muitas vezes de todo um conjunto de valores e saberes artísticos deixados por mestres se perderem completamente pela falta de quem se interesse em conduzi-los adiante, deixando tudo guardado apenas nas lembranças daqueles que os conheceram. E foi pensando precisamente nessa questão que eu resolvi encerrar este artigo com uma fala de Ana do Coco que para mim é de uma clareza e de uma verdade realmente precisas: “Todo mês a gente faz a festa, porque se a gente deixar a cultura popular morrer, a gente vai tá morrendo, né?”.

Um comentário:

  1. Linda materia Sierra, como sempre dando enfase em nossa cultura! Parabéns!

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