Fotos: do autor O cenário da festa |
Os
mestres e mestras da chamada cultura popular comumente enfrentam, uma série de
desafios para conseguir manter e/ou inserir os seus folguedos na esfera social
em que vivem. Não é tarefa das mais fáceis conduzir, manter e pôr na rua ou
mesmo no seio restrito de uma pequena comunidade um brinquedo, sem que se
disponha de meios próprios suficientes para isso. Na dinâmica de tais
manifestações culturais fica bastante explícita uma explicação dada por Antonio
Augusto Arantes no início dos anos 80 ao tratar do conceito de “cultura
popular”. Segundo ele, tal conceito remete, na verdade, a um amplo espectro de
concepções e pontos de vista que vão “desde a negação (implícita ou explícita)
de que os fatos por ela identificados contenham alguma forma de ‘saber’, até o
extremo de atribuir-lhes o papel de resistência contra a dominação de classe”
(Antonio Augusto Arantes. O que é cultura
popular. 12ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 7. A 1ª edição é
de 1981).
Público chegando para dançar coco e ciranda |
Ciranda dos Tupinambás: herança de Mestre Carboreto animando a noite em João Pessoa |
O
caráter de resistência da cultura popular, que eu tanto enfatizo nos meus
escritos, expõe uma realidade indiscutível. Não conheço nenhum estudo que trate
especificamente do desaparecimento de grupos de folguedos populares, mas sou
levado a crer, dadas as amostras do que eu já li e vi por aí, que muitos deles
desapareceram, e não somente por falta de estímulos financeiros e de inserção
no dito mercado cultural como também por conta de outro desafio que por vezes
recai sobre os mestres e mestras: eles nem sempre conseguem deixar herdeiros de
suas tradições que sejam tão resistentes quanto eles.
Na
tarde do último dia 3 de agosto eu segui rumo à capital da Paraíba a fim de
tomar parte pela primeira vez na Festa das Neves, na qual se celebra Nossa
Senhora das Neves, a padroeira da cidade, e o próprio aniversário de 432 anos
daquele centro urbano, muito embora o 5 de agosto de 1585 marque o dia da
rendição dos índios tabajaras, que eram hostis aos portugueses, e seja 4 de
novembro a data exata de sua fundação propriamente dita. Não foi exatamente o
início dos festejos em si que me levou ao icônico Ponto de Cem Réis para
assistir às manifestações artísticas. Eu fui até lá somente para acompanhar a
apresentação de uma ciranda cuja denominação a programação não mencionava.
A ciranda acabou de começar... |
Quando
saiu do seu trabalho, no bairro do Varadouro, o meu amigo Tony Lamon resolveu
se juntar a mim naquela noite festiva na qual a brisa soprava fria e
reconfortante. Ali, defronte, ao palco, em meio ao público que principiava a
chegar, reencontrei Tina, a contramestra do cirandeiro Mané Baixinho; foi ela
quem me falou que a tal ciranda que iria subir ao palco era a Ciranda dos
Tupinambás; e mais do que isso, Tina me apontou o mestre cirandeiro Hiatagan
Ferreira, filho do falecido Mestre Carboreto, que, por sua vez, me apresentou à
sua convidada, a coquista Ana do Coco. E, preparado que eu fui para dar
continuidade aos meus registros relacionados com tais folguedos, tratei de não
perder tempo.
Os
estudiosos e pesquisadores da ciranda tal qual ela é conhecida e vivenciada em
Pernambuco certamente já beberam das fontes preciosas deixadas por Jaime Diniz
(Ciranda: roda de adultos no folclore
pernambucano. Separata da Revista Deca, Recife, Ano II, 1960, nº 3),
Evandro Rabello (Ciranda: dança de roda,
dança da moda. Recife: Editora Universitária/Universidade Federal de
Pernambuco, 1979), Altimar de Alencar Pimentel (Ciranda de adultos. João Pessoa: Fundo de Incentivo à Cultura
Augusto dos Anjos, 2005) e mais recentemente por Déborah Callender (“Histórias
da ciranda: silêncios e possibilidades”. In Textos
escolhidos de cultura e arte populares. Rio de Janeiro, vol. 10, nº 1, p.
113-132, mai. 2013). E quem leu tais produções bibliográficas tomou ciência,
entre muitas outras informações, de três observações que eu quero destacar
aqui: 1. Que a ciranda de adultos que até hoje se pratica na Paraíba certamente
é proveniente de Pernambuco; 2. Que os mestres dos folguedos populares
habitualmente são envolvidos ou se envolveram com a manutenção de mais de um
brinquedo; 3. Que, tudo leva a crer, sempre existiu uma aproximação entre a
ciranda e o coco de roda, daí por que normalmente coquistas cantam cirandas e
cirandeiros entoam cocos.
Antes
que a apresentação da Ciranda dos Tupinambás tivesse início, eu chamei o
Hiatagan e a Ana para trás do palco a fim de que eu pudesse entrevistá-los.
De
acordo com o dicionário da língua portuguesa de autoria de Aurélio Buarque de
Holanda Ferreira, o vocábulo herança tem os seguintes significados: 1. O que se
herda, ou se transmite por hereditariedade. 2. Patrimônio deixado por alguém ao
morrer. Hiatagan Ferreira de Araújo, de 24 anos, é um dos seis filhos de
ninguém menos do que o afamado e talentoso Mestre Carboreto, que, após o
falecimento do pai, resolveu, junto com os outros irmãos, manter a Ciranda dos
Tupinambás viva e atuante. Hiatagan me contou que começou a acompanhar seu pai
aos três anos de idade: “Trago de raiz, do sangue, uma coisa que o meu pai me
ensinou, que é cultura popular. Meu pai foi a raiz dessa cultura, passando ela
pros filhos e pros amigos”. A família até hoje está estabelecida na Rua José
Augusto Trindade, nº 42, em Mandacaru, um lugar que é bastante conhecido pelas
carências sociais, pelos elevados índices de criminalidade e por ser um dos
bairros da capital paraibana onde manifestações da cultura popular pulsam com
grande força. E como sobrevive a Ciranda dos Tupinambás? “A gente fazia um
bocado, várias apresentações, mas hoje fazemos no máximo uma por ano, pelos
órgãos do Governo”. O grupo não recebe incentivos? “Incentivo não. O incentivo
que nós temos é de tirar os jovens da rua, entendeu? Porque onde tiver cultura
popular e que esses jovens possam se agradar, eles vão querer acompanhar uma
ciranda do que estar no mundo”. E vai dar para continuar assim, Hiatagan? “Se
depender de mim e dos muitos amigos que nós temos, a ciranda nunca vai se acabar”,
disse enfático.
José
Ferreira de Araújo, o Mestre Carboreto, que nasceu na capital da Paraíba quando
ela já se chamava João pessoa, e faleceu em 19 de abril de 2014, aos 68 anos,
foi um dos mestres cirandeiros que, assim como Vó Mera, Mestre Benedito, de
Cabedelo, e os próprios cirandeiros do Vale do Gramame, ficaram de fora da pesquisa
realizada por Altimar de Alencar Pimentel. Filho e neto de brincantes, Mestre
Carboreto iniciou-se no universo da cultura popular ainda criança, quando
contava apenas 8 anos de idade. Apesar de não ser longa, é bastante reveladora
a entrevista que ele concedeu a Benedito Carlos da Silva três anos atrás. Dono
de uma memória admirável, ele recordou na ocasião que tomou parte em vários
grupos de tribos indígenas que desfilavam no Carnaval, como a Ipiranga, na qual
fazia o papel de espião, a Tabajaras, a Guanabara, a Tupi-Guarani, a Africanos
e a Tupinambás, que foi fundada em 1936, no bairro da Torre, e da qual o seu
pai participou e que, depois de ter passado pela condução de inúmeros mestres,
foi refundada por ele. Generoso, Mestre Carboreto, que também foi mestre de
lapinha, quadrilha junina, boi de reis e da Barca Santa Maria, exaltou em seu
depoimento que a sua esposa “era meu braço direito pra tudo”; e que o genro deles,
“conhecido como Aimoré”, confeccionava cocares e tinha a função de feiticeiro
no folguedo. Ao final dos ensaios de sua tribo, Mestre Carboreto costumava
distribuir sopa em frente à sua casa. No vistoso estandarte da agremiação que
exaltava as cores amarelo, vermelho, branco e verde, vemos uma índia envolvida
por uma enorme serpente. Com o seu jeito simples e ao mesmo tempo firme de
falar, no depoimento Mestre Carboreto disse o que esperava dos gestores
culturais: “Os gestores possam sentir a nossa necessidade, para que os gestores
possam sentir que a gente é realmente a verdadeira história do Brasil e nos dar
incentivo, pra que a gente possa continuar fazendo esse trabalho que a gente
faz”. No ano de sua morte, Mestre Carboreto foi campeão do seu grupo, garantindo
acesso ao grupo especial. Grande amigo de Chico César, ao lado de quem se
apresentou mais de uma vez, Mestre Carboreto, assim como o paraibano de Catolé
do Rocha, era um artista negro, altivo, talentoso e muito sabedor do seu valor.
No
palco, Hiatagan Ferreira conduziu a Ciranda dos Tupinambás cantando versos como
estes:
Eu não sabia que te amar
fosse loucura
Meu coração agora está
em pé de guerra
No fim da feira do meu
coração,
Meu avião vai pousar em
outras terras.
E
Ana? Cadê Ana hein, minha gente? Olha ela aí!
Ana
Lúcia Rodrigues do Nascimento, a Ana do Coco, é paraibana da cidade do Conde,
onde ainda hoje mora, mais precisamente na comunidade quilombola Ipiranga. Bem
falante e extrovertida, logo de cara ela se dispôs a me conceder um depoimento
antes de subir ao palco. Mestra do seu ofício de coquista, Ana do Coco me
contou que tudo o que diz respeito ao folguedo que domina aprendeu com sua mãe,
Mestra Lenita, que faleceu em 2015: “Minha mãe me deixou essa herança”, ela
destacou. Certa feita Lenita Lino do Nascimento, a Mestra Lenita, prestou um
depoimento em que disse que desde muito pequena começou a frequentar locais
onde aconteciam apresentações de coco levada por sua mãe, que não tendo com
quem deixá-la, acabava levando ela para também brincar nas rodas de coco. Ana
por que é que cirandeiro canta coco e coquista canta ciranda, hein? Ela
respondeu: “Ciranda e coco andam juntos. Quando a roda de coco vai ficando
fria, a gente puxa uma ciranda que junta o povo tudinho, depois, retoma o coco
de novo e aí pega fogo”.
Em
2010 a comunidade em que a coquista Ana atua ganhou o Prêmio Cultura Viva, do
Ministério da Cultura, que possibilitou a construção do Pavilhão do Coco. E de
lá para cá, o que vem acontecendo na cultura local? “Muita dificuldade. Agora a
Prefeitura já se mostra simpática, mas investir mesmo em cultura, não investe
um centavo”. O grupo, que ainda não conseguiu registrar em disco os cerca de
cento e quarenta cocos do próprio repertório – isso sem contar os de domínio
público, que também são entoados -, mantém o projeto “Clamores Antigos” pelo
qual mestres do coco passam a experiência deles – canto, dança, instrumentos –
para as crianças matriculadas no Ensino Fundamental 1. Além disso, há sete anos,
no último sábado de cada mês, o grupo promove, com recursos próprios,
apresentações de coco e de ciranda e recebe convidados: “Quando termina a
festa, a gente puxa os cabelos pra saber como vai pagar as contas”. E não tem
incentivo por parte do poder público para a cultura popular? A esse
questionamento Ana do Coco me respondeu descrevendo uma realidade que,
lamentavelmente, não é uma exclusividade da Paraíba:
Às vezes o poder público
mostra simpatia pela cultura, porque eles não podem deixar de ver, porque a
gente incomoda. Mas eles se veem pressionados pelo público-alvo, que são os
jovens, que querem bandas, aquelas músicas de plástico, que não trazem
incentivo algum para o povo, para a comunidade, que só incentivam a violência e
a prostituição. Então eles se veem tão pressionados que preferem pagar uma nota
a uma banda dessas do que pagar um cachê digno a uma cultura do coco, a um
grupo de coco.
Com Ana no palco, a ciranda fez uma pausa para dar lugar ao coco |
Pausa
na ciranda porque chegou a hora de a convidada Ana do Coco entrar no palco e
abrilhantar ainda mais o show de cultura popular apresentado no Ponto de Cem
Réis. Dona da voz, ela saudou o público assim:
Boa noite meu povo todo
Boa noite meu pessoal
Boa noite pra quem
chegou
Boa noite pra quem
chegar.
Hiatagan Ferreira: defendo com valentia o legado do seu pai |
Ana do Coco: compromisso com a preservação e a valorização da cultura popular |
Guardiões
de tradições e fecundos transmissores de conhecimentos vinculados aos folguedos
que dirigem, os mestres da cultura popular enfrentam toda a sorte de
dificuldades para conseguir botar os seus brinquedos na rua. Infelizmente, nem
todos são como Hiatagan Ferreira e Ana do Coco que de bom grado receberam os
folguedos de seus pais como herança e dia a dia vêm batalhando para mantê-los
vivos; ocorre muitas vezes de todo um conjunto de valores e saberes artísticos
deixados por mestres se perderem completamente pela falta de quem se interesse
em conduzi-los adiante, deixando tudo guardado apenas nas lembranças daqueles
que os conheceram. E foi pensando precisamente nessa questão que eu resolvi
encerrar este artigo com uma fala de Ana do Coco que para mim é de uma clareza
e de uma verdade realmente precisas: “Todo mês a gente faz a festa, porque se a
gente deixar a cultura popular morrer, a gente vai tá morrendo, né?”.
|
Linda materia Sierra, como sempre dando enfase em nossa cultura! Parabéns!
ResponderExcluir