Por Clênio Sierra de Alcântara
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Foto: Julia Rendleman Os monumentos que fazem culto aos confederados continuam sendo motivo de discórdia entre os norte-americanos |
Atolado em dívidas porque, “desgraçadamente,
se metera em temerárias esqpeculações”, dívidas consideráveis das quais grande
parte dos títulos fora parar nas mãos de Haley, o Sr. Shelby, “um homem normal,
de bom coração, disposto a contribuir para a felicidade dos que o rodeavam, e
nunca faltara coisa alguma que pudesse concorrer para o bem-estar material dos
negros de sua propriedade”, no estado norte-americano do Kentucky, onde,
talvez, “a escravidão se apresenta sob a mais amena das formas”, vê-se sendo
cobrado por Haley, que quer receber o que lhe é devido em forma de gente mesmo,
em escravos, dentre eles o honrado, honesto e cristão Tom, ao qual a família
Shelby era por demais apegada. Mas não havia outra escolha, porque o cobrador
não queria negociar de outro modo. E, quando Tom passar a ser propriedade de
Haley, isso marcará o início de um grande sofrimento para o paciente e
resignado negro.
O escravo Tom é o personagem
principal da obra A cabana do Pai Tomás,
de autoria de Harriet Beecher Stowe (Tradução de Octávio Mendes Cajado. São
Paulo: Edição Saraiva, s. d. Vol. I. Por ordem de aparição as citações estão
nas páginas 9, 9 e 8) que foi lançada em 1852, e que é por muitos considerada o
desencadeador do movimento abolicionista nos Estados Unidos, que teria na
Guerra de Secessão – também conhecida como Guerra Civil Americana -, travada
entre 1861 e1865, a sua passagem mais cruenta. O embate opunha os estados do
Norte, antiescravocratas e industrializados, aos do sul, agrários e contrários
à abolição da escravidão, e que formaram os Estados Confederados. Calcula-se
que seiscentas mil pessoas morreram ao longo do processo de restauração da
unidade nacional e do estabelecimento da garantia de direitos civis aos homens
e mulheres recém libertos. No dizer do historiador Eric Hobsbawm, “Até hoje a
Guerra Civil de 1861-5 continua sendo o conflito mais sangrento na história dos
EUA: matou tantos homens quanto todas as guerras posteriores do país juntas,
incluindo as duas mundiais, a da Coreia e a do Vietnã” (Eric Hobsbawm. Era dos extremos: o breve século XX:
1914-1991. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras,
1995, p. 51).
Embora
os Estados Unidos sejam considerados o berço da “ação afirmativa”, expressão
que foi usada num decreto do presidente John Kennedy em 1961, objetivando
assegurar um ambiente de trabalho “sem distinção de raça, cor, credo ou origem”,
numa época em que explodia naquele país movimentos por direitos civis,
derrotando o segregacionismo em vigor nos estados sulistas, ainda hoje a
questão racial é uma página não virada da história norte-americana; e como
muito bem lembrou a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz: “História é ruptura,
mas, nesse caso, o que existe é continuidade” (Lilia Moritz Schwarcz. “Na
contramão da história”. Revista Veja,
São Paulo, Editora Abril, edição 2544, ano 50, nº 34, 23 de agosto de 2017, p.
58).
No último
dia 12 de agosto, um sábado, ocorreram confrontos na cidade de Charlottesville,
no estado da Virgínia, a partir da marcha “Unir a Direita”, havida um dia
antes, convocada por supremacistas brancos em protesto aos planos de remoção da
estátua do general confederado Robert E. Lee, que era pró-escravidão, algo
repudiado por grupos antirracistas. Estima-se que existam mais de setecentas
estátuas, placas e outras referências aos líderes da Confederação. Em meio aos
protestos há quem veja nesses artefatos uma homenagem à Guerra Civil Americana;
e outros que só os veem como símbolos racistas presentes num país em que, não
faz muito tempo, negros não entravam em banheiros de brancos e até assentos nos
ônibus eram separados, sem contar outras barbaridades. Depois do episódio ocorrido
na Virgínia, cidades dos estados de Maryland e Kentucky removeram dos locais
públicos estátuas que representavam os confederados.
Cinco
dias depois do confronto verificado em Charlottesville, o Tribunal Penal
Internacional (TPI), sediado em Haia, na Holanda, condenou o malinês Ahmad
al-Faqi al-Mahdi, membro do grupo extremista Ansar Dine, por ter liderado
ataques que destruíram nove mausoléus sagrados muçulmanos e a porta da mesquita
Sidi Yahia, em 2012, um Patrimônio Histórico Mundial localizado em Timbuktu, no
Mali. Pela destruição dos monumentos do século V Al Mahdi foi condenado a pagar
2,7 milhões de euros em indenizações. Foi a primeira vez em que um acusado de
destruir monumentos considerados Patrimônio Mundial foi julgado.
Os dois
acontecimentos relacionados com o patrimônio histórico me chamaram bastante
atenção tanto pela proximidade temporal em que ocorreram quanto pelo destaque
que ganharam na mídia de um modo geral – bem é verdade que o que se deu nos
Estados Unidos teve uma repercussão maior do que o que se viu na Holanda. Em todo
caso, ambos os episódios me trouxeram alguns questionamentos que, a meu ver,
são muito pertinentes: o que é legítimo ser tomado como patrimônio histórico? Por
que certos patrimônios adquirem maior valoração e/ou respeito e admiração que
outros? O revisionismo histórico pode decretar a ilegitimidade e/ou a
inconveniência de este ou aquele edifício, esta ou aquela estátua serem mantidos
em determinados lugares?
Françoise
Choay nos explica em A alegoria do
patrimônio (Tradução de Luciano Vieira Machado. São Paulo: Estação
Liberdade: Editora UNESP, 2001, p. 25) que, embora muitas vezes se confundam,
as noções de monumento e monumento histórico são em muitos aspectos oponíveis: “Em
primeiro lugar, longe de apresentar a quase universalidade do monumento no
tempo e no espaço, o monumento histórico é uma invenção, bem datada, do
Ocidente”. É de Alois Riegl – Françoise o cita ainda na página 25 do seu estudo
– essa outra diferença fundamental entre aqueles dois termos por ele apontada nos
inícios do século XX: o monumento é visto como uma criação deliberada cuja destinação
foi pensada a priori, de forma imediata, ao passo que o monumento histórico não
é, desde o princípio, desejado e criado como tal: “ele é constituído a
posteriori pelos olhares convergentes do historiador e do amante da arte, que o
selecionam (sic) na massa dos edifícios existentes, dentre os quais os
monumentos representam apenas uma pequena parte”.
Praticamente
tudo de muito volumoso e vistoso que se preservou do patrimônio histórico, em
geral, e do patrimônio edificado, em particular, no mundo todo diz respeito ao
que se convencionou chamar de elite e/ou donos do poder. As políticas
preservacionistas que paulatinamente foram se espalhando pelo planeta a partir
do século XIX, tendo a França como epicentro, não seria exagero nenhum dizer,
nasceram a partir da preocupação de membros das camadas mais ricas e poderosas
da sociedade em legar para o futuro seus feitos e/ou de seus antepassados, de
modo que as escolhas do que deveria ser preservado, pelo menos em princípio,
atendeu a anseios e desejos pessoais de uns e outros que não se preocupavam em
selecionar objetos, artefatos, prédios, etc, que dessem um panorama geral da
sociedade em que viviam e, sim, se tratavam de escolhas que diziam respeito ao
universo particular em que tais indivíduos habitavam; por conseguinte, isso significava deixar que fossem destruídos e que desaparecessem vestígios outros não contemplados pelos olhares dessas pessoas. Muita água ainda iria
correr sob a ponte das iniciativas preservacionistas até que se chegasse ao
entendimento de que as ações de salvaguarda deveriam também converter e/ou
reconhecer como patrimônio histórico elementos que representassem o todo social
e não somente fragmentos dele, de maneira que a condição e o caráter da
preservação tomasse como fundamento o alcance efetivo da sociedade.
As discussões,
as trocas de insultos e os confrontos havidos em Charlottesville, que
resultaram na morte da jovem Heather Heyer, expuseram algo que, de alguma
forma, acompanha a história da humanidade desde muito, muito antes que chegasse
o dia em que alguém pensasse em promover ações de preservação disso ou daquilo
e os termos monumento e monumento histórico fossem cunhados para designá-los. Haroldo
Leitão Camargo, em seu breve e esclarecedor estudo Patrimônio histórico e cultural (São Paulo: Aleph, 2002, p. 13)
destacou que “embates entre ideologias distintas podem produzir a necessidade
de fazer desaparecer monumentos que simbolizam os opositores a que se quer
combater”. E, entre outros exemplos, ele citou a destruição da Bastilha durante
a Revolução Francesa, em 1789, que, de fortaleza construída durante a Idade
Média como um dos bastiões defensivos de Paris fora convertida em prisão para
os inimigos da realeza: “Ela foi arrasada por ser um símbolo da arbitrariedade
do poder real e daquele Estado monárquico que se confundia com a própria pessoa
do rei” (Op. cit. p. 12).
Algo
que os livros, os compêndios e a realidade nossa de cada dia deixam claramente
ver é que não são somente a alegada falta de recursos, a indiferença e o
descaso que estão na linha de frente contra a preservação do patrimônio
histórico, artístico e cultural; que também as diferentes ideologias e visões
de mundo são capazes de apagar memórias e fazer desaparecer testemunhos da
nossa história deixando unicamente o cenário de terra arrasada. Por esse mundo
afora, não faz muito tempo, destruíram inúmeras estátuas de Buda, atacaram
monumentos da cidade de Palmira e aqui, bem perto de nós, incendiaram terreiros
de candomblé. Como muito acertadamente observou o inconfundível poeta Augusto
dos Anjos, ao lançar seus olhos sobre a natureza humana, “a mão que afaga é a
mesma que apedreja” – ao que eu acrescento – e destrói.
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