10 de fevereiro de 2018

Rua João Suassuna: promessa de redenção renovada e ainda a fidelidade ao descaso

Por Clênio Sierra de Alcântara

Fotos: Arquivo do autor   
A intervenção em casarões da Rua João Suassuna deveria servir como indicativo de que o poder público está realmente empenhado
                      em salvaguardar o patrimônio edificado da capital paraibana. Vamos ver até aonde isso vai

Há quem diga que quem percorre o espaço antigo de uma das cidades históricas brasileiras viu todas elas. Dizem isso não se referindo à fisionomia que elas têm, mesmo porque elas não são iguais, apesar de se parecerem, e sim apontando para o estado de degradação do patrimônio edificado nelas presentes. Prédios e edificações outras correndo o risco de desabarem são, infelizmente, facilmente encontrados em urbes tão distintas como o Rio de Janeiro, Salvador, João Pessoa, São Cristóvão, Laranjeiras, São Luís e o Recife.

Esta e as três fotos seguintes são do ano de 2014






Este imóvel bastante deteriorado fica defronte ao conjunto que está sendo revitalizado. É a fidelidade ao descaso dando o tom nesse pedacinho do sítio histórico que é a Rua João Suassuna

Voltemos por ora o nosso olhar para a cidade de João Pessoa. O turista desavisado talvez fique tremendamente espantado ao tomar conhecimento de que é a capital paraibana uma urbe que existe há mais de quatrocentos anos. E creio que o espanto advenha propriamente não pela idade, digamos assim, dessa cidade, e certamente por ele flanar pelo chamado centro histórico e se deparar com tamanha falta de trato para com os bens imóveis que constituem as chamadas cidades Baixa e Alta, formadas pelos bairros de ocupação mais antiga da capital da Paraíba. Entre ruas, becos e vielas, principalmente do Varadouro, o passante dá de cara com um acervo predial que em grande parte ou foi descaracterizado e/ou caminha para isso; e com um acúmulo terrível de ruínas prestes a desabar a qualquer momento, como a fachada do Hotel Luso-brasileiro, localizado na Praça Álvaro Machado.



Dessa vez parece que a obra vai ser finalizada



O que muito me impressiona nas incursões que costumeiramente faço ao centro histórico de João Pessoa é o que chamo de fidelidade ao descaso que o poder público e os proprietários dos imóveis dispensam ao patrimônio edificado dessa cidade mais do que quatrocentona. Enxergo também um evidente desprezo do público em geral para com a preservação da memória urbana da capital que dia após dia segue se esfacelando sem que se tomem medidas realmente eficazes para proteger o que ainda está de pé. E fazendo par e/ou como consequência desse descaso dos próprios moradores da cidade para com o centro histórico, verifica-se, ou melhor, constata-se a pouca vida noturna que vibra por ali. O que é o sítio histórico de João Pessoa, à noite, para além da Praça Antenor Navarro? Praticamente nada. E sabem por quê? Porque uma área degradada e sem eventos não atrai ninguém. O clima de insegurança é enorme por ali por conta das cracolândias e prostíbulos que infestaram o bairro do Varadouro. A situação é tão crítica, absurda e lamentável que motoristas de ônibus costumam não parar à noite, nos fins de semana, nos pontos que ficam, vejam só, ao lado do prédio que abriga o Comando Geral da Polícia Militar. Como assim? Ora, como não se vê policiamento na área (?), os motoristas pensam que naquele deserto noturno quem está nas paradas esperando coletivos só pode ser, no mínimo, um assaltante. Já passei por essa experiência decepcionante; e tive de ir caminhando até o terminal rodoviário.

Sobre a fotografia: posicionei-me num ponto no qual ao meu lado direito estava a Rua da Areia e no esquerdo a Rua Cândido Pessoa. O prédio amarelo é Associação Comercial da Paraíba, que fica na Rua Maciel Pinheiro; no lado oposto, onde aparece um orelhão, já é o início da Praça Antenor Navarro. E à nossa frente a breve Rua João Suassuna. Atrás daquele verde que aparece lá longe corre o Rio Sanhauá

Agora um registro fotográfico feito por Walfredo Rodríguez, autor do Roteiro sentimental de uma cidade, em 1928

Já este foi feito em 1875 e revela a beleza e a harmonia do casario com seus sobrados elegantes. Ambos os registros fazem parte do álbum 2 séculos da cidade - Passeio retrospectivo (1870-1930), organizado por José de Nazareth Rodríguez, filho de Walfredo, e que foi lançado em João Pessoa pela Interplan em data que eu não sei precisar












Assim como ocorreu com São Luís, Aracaju e outras capitais litorâneas brasileiras detentoras de centros históricos, em João Pessoa sua parte de ocupação mais antiga foi paulatinamente sendo abandonada, como lugar de moradia, pelas chamadas famílias de prol, que tomaram a direção principalmente das praias, causando uma progressiva desvalorização dos imóveis deixados para trás e provocando, claro, a disseminação do entendimento de que o antigo não tinha mais préstimo e poderia ser deixado entregue à própria sorte. Desse modo, e apesar de alguns ainda insistirem em querer morar ali, o que se percebe é que, para além do caráter comercial que a área detém – e as atividades comerciais são elas próprias, muitas vezes, as responsáveis pela descaracterização e/ou destruição dos prédios seculares -, aqui e ali ocupações precárias de uma gente despossuída vai dando o tom do quadro de desmantelo que como um câncer em processo de metástase, corrói e silenciosamente acaba com o organismo urbano. Embora o discurso do poder público queira dizer exatamente o contrário, a verdade é que o centro histórico da capital paraibana, com todas as ressalvas que se faça, é um organismo que se encontra doente, muito doente.

Quando eu comecei a circular por aquele cenário, há quase dez anos, e dei de cara com um verdadeiro acúmulo de ruínas que me levou a escrever vários artigos, eu fui me certificando de que em meio à paisagem desoladora circulavam rumores de que estava se buscando salvar ao menos parte do acervo predial. E assim foi que no transcurso do tempo algumas iniciativas de salvaguarda do patrimônio edificado saíram do papel e trouxeram de volta um lampejo de esperança de revitalização para um ponto e outro do centro histórico à medida que se foi restaurando e devolvendo a dignidade a certas edificações, como a Casa da Pólvora (em dezembro de 2014), o Hotel Globo (em agosto de 2016) e o Teatro Santa Roza (em dezembro de 2016).

Existem rumores de que uma grande revitalização alcançará o Porto do Capim e a área dos armazéns vizinhos à linha férrea. Projetos dessa monta exigem muito capital e os tempos estão bicudos.














Uma prova – mais uma – de que não são nada fáceis as questões que envolvem a implementação de projetos que visam à restauração do patrimônio edificado no Brasil, em geral, e em João Pessoa, em particular, é o caminhar a passos de tartaruga do projeto de revitalização de alguns casarões desde há muito deteriorados localizados na breve Rua João Suassuna - sua extensão é de, se muito, 150 m -, no Varadouro – a bem da verdade, há outra edificação nessa artéria que está bastante degradada. Tempo houve em que essa via era denominada de Rua dos Ferreiros e ainda Rua Visconde de Inhaúma. Faz quase quinze anos que se tenta recuperar os imóveis e destiná-los a moradias e outras finalidades dentro do que em tempos atrás já foi chamado de Projeto Moradouro. Recordo bem que em 2015 a Prefeitura Municipal lançou um edital anunciando a disponibilização futura de apartamentos. No ano seguinte, novo edital foi lançado; e informava ele que o projeto se inseria numa iniciativa de revitalização de prédios da área central da capital; e que seriam disponibilizados doze apartamentos com financiamento da Caixa Econômica Federal por meio do Programa Minha Casa Minha Vida.

Nos oito casarões incluídos no plano da obra foram feitas prospecções arqueológicas, como manda a lei a respeito de intervenções em edificações de valor patrimonial, ao custo de R$ 112.511,74. E continuou-se na expectativa de como e quando o projeto iria seguir adiante. E eis que, na primeira semana de janeiro deste ano, a Prefeitura de João Pessoa divulgou outro edital de um agora denominado Residencial Villa Sanhauá, cuja vistosa placa de anúncio eu observei nas visitas que fiz ao local na manhã do domingo 7 de janeiro e na tarde do sábado 3 de fevereiro; a primeira delas ocorrida apenas três dias após a divulgação do edital pela imprensa; e a segunda, num dia em que flagrei homens tocando a obra. Projeto orçado em R$ 4.200.000,00 e com prazo de conclusão estimado em cem dias, o empreendimento que, de acordo com o edital, tem entre os seus objetivos principais “promover a ocupação adequada das áreas centrais, estimular as atividades culturais e garantir a preservação do patrimônio histórico” disponibilizará em forma de concessão onerosa dezessete apartamentos para moradia – o prazo de concessão será de vinte anos -, seis unidades comerciais que sejam vinculadas aos ramos de alimentos, turismo e atividades culturais – neste caso a concessão, que também poderá ser prorrogada conforme o interesse da Municipalidade, ficará em um ano. Além disso, haverá uma unidade destinada à própria Prefeitura que, segundo declarou o prefeito Luciano Cartaxo, “irá oferecer serviços à população” no local.

Quem examinar o edital verificará que, mesmo as denominadas “unidades habitacionais” do tal Residencial Villa Sanhauá só poderão ser disputadas  por pessoas “que desenvolvam atividades culturais, artesanais ou que promovam a valorização dos elementos típicos da região do nordeste brasileiro”. Compreendo que a Municipalidade queira preservar para si a titularidade dos imóveis e que objetive, como foi redigido naquele documento, estimular e proteger as iniciativas que contribuem para o desenvolvimento sociocultural e profissional das pessoas, atuantes na área cultural, intentando com isso “preservar e incentivar suas práticas e saberes”. Porém, sinceramente, eu não acredito que tal iniciativa irá figurar como o marco de um novo tempo para o abandonado bairro do Varadouro. Sim, a questão da promoção de agentes culturais é por demais válida e digna de aplauso. Contudo, imaginar que só essa gente é e/ou será capaz de dar vida nova àquele bairro é ignorar, entre outros pontos, o déficit habitacional que existe no centro histórico – e não apenas nele – que é, em parte, avizinhado por pessoas que residem em moradias precárias – vide a população que ocupa o Porto do Capim – em contraste com os inúmeros prédios que se encontram abandonados tanto na Cidade Baixa como na Cidade Alta; a completa sensação de insegurança que toma os frequentadores daquela área principalmente à noite; e a ausência de eventos que estimulem as pessoas a vivenciar aquele território da cidade que, como eu já disse, permanece há tempos como um espaço marginalizado da capital paraibana. Sou levado a crer, isso sim, que o Residencial Villa Sanhauá será um retumbante fracasso.



















As necessidades que assolam o centro histórico de João Pessoa são muitas e evidentes. Ações pontuais como a que por ora contempla parte do casario degradado da Rua João Suassuna não solucionam e nem dão conta de demandas que são enormes. Vejam, por exemplo, em que estado se encontram as praças situadas à margem da linha do trem, onde comerciantes e caminhoneiros fazem há anos o que bem entendem sem que a Municipalidade sequer esboce qualquer mínima reação contra os tais abusos que eles cometem por ali. Olhem o acúmulo de ruínas nas ruas Maciel Pinheiro, Duque de Caxias, Beaurepaire Rohan, da Areia e outras mais.

A sensação que me consome ao percorrer aquelas vetustas artérias da capital paraibana é que, dentro em breve, mais perdas de seu patrimônio edificado serão lamentavelmente referenciadas nas narrativas daqueles que se põem a registrar a sua memória urbana.


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