19 de maio de 2018

O Museu Tempostal de Salvador

Por Clênio Sierra de Alcântara

       Fotos: Ernani Neves        
    Recepcionado pela guia Elaine Meira, eu me pus a percorrer as dependências do Museu Tempostal observando não apenas o acervo mas também os detalhes do interior da edificação, que é uma atração à parte



Há vários caminhos a seguir quando se pensa em estudar a evolução urbana de uma cidade. Um deles é examinar – caso exista – o acervo de imagens que foi constituído sobre ela: fotografias, mapas, desenhos, quadros, cartões-postais, etc., como bem nos faz ver o Museu Tempostal, localizado na Rua Gregório de Matos, no Pelourinho, em Salvador, que eu conheci na primeira visita que fiz à capital baiana, há quase cinco anos.



Num ensaio que é um pequeno primor de argúcia e riqueza de pormenores, Nelson Schapochnik nos conta, entre tantas outras coisas, do advento do cartão-postal no último quartel do século XIX e de como a novidade ganhou logo uma legião de adeptos. Dando o tom do que está por vir, já no início de sua narrativa o historiador nos diz que: “Os cartões-postais são como um convite à viagem, uma prenda delicada àqueles que estão distantes. Imagens cuidadosamente escolhidas servem de molde a juras de amor, reiteram plasticamente laços de amizade, perplexidade e encantamento”. No tocante ao registro de aspectos urbanos, mais adiante Nelson Schapochnik destaca que: “Refiguradas nos postais, as imagens da cidade proporcionam uma percepção afetiva e estética dos monumentos e paisagens, denotando o processo de interiorização e familiaridade com o local” (Nelson Schapochnik. “Cartões-postais, álbuns de família e ícones da intimidade”. In Nicolau Sevcenko (org.). História da vida privada no Brasil. Vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 423-512. Por ordem de aparição as citações são das páginas 424 e 426).


Dois postais retratando o antigo Elevador Lacerda



De acordo com João Emilio Gerodetti e Carlos Cornejo, a introdução dos bilhetes-postais no Brasil, proposta pelo então ministro da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, Manuel Buarque de Macedo, na época em que Luís Plínio de Oliveira era o diretor da Repartição Geral dos Correios, resultou de um decreto imperial, assinado por Dom Pedro II, em 28 de abril de 1880. Diz-se que, no começo, houve certa relutância em fazer uso desse tipo de correspondência mais econômico, porque, embora mais barato, seguia sem envelope, ou seja, revelando a intimidade das mensagens; contudo, a experiência de outros países demonstrava que, efetivamente, a nova modalidade, com tarifa reduzida, impulsionara o movimento postal. O negócio ganhou volume e o Correio perdeu o monopólio de edição dos postais. Leiamos o que aqueles autores dizem sobre isso:

Quebrando o monopólio do Correio, em 14 de novembro de 1899, foi promulgada uma lei que autorizou a circulação de cartões-postais ilustrados, editados por particulares, com a exigência de respeitar as dimensões máximas de nove por quatorze centímetros. Numa das faces deveriam conter os mesmos dizeres dos bilhetes-postais oficiais e na outra poderiam exibir ilustrações, gravuras, cromos e vinhetas. Para seu envio, tinham que ser franqueados com selos adesivos do Correio, o mesmo que, em 1907, distribuiu mais de quatro milhões de cartões-postais e, em 1912, mais de dezenove milhões (João Emilio Gerodetti e Carlos Cornejo. Lembranças dos Brasil: as capitais brasileiras nos cartões-postais e álbuns de lembranças. São Paulo: Solaris Edições Culturais, 2004, p. 242).




Os cartões-postais não demoraram a se tornar objetos de colecionismo. É ainda de Nelson Schapochnik esta observação: “O interesse exercido pelos postais logo se transformou num intenso frenesi, estimulando a formação de coleções e a fabricação de álbuns e caixas para acondicioná-los” (Nelson Schapochnik. Op. cit. p. 433).


Detalhe de uma das paredes





O sociólogo Gilberto Freyre, estudioso tão dado a recorrer ao exame de todo tipo de artefato para ilustrar suas considerações a respeito de um e outro assunto, também lançou seus olhos perscrutadores sobre os cartões-postais; e nos legou a seguinte avaliação:

O cartão-postal, às vezes ilustrado a cores – brilhante de cores até -, correspondeu a uma época de euforia e de extroversão na vida nacional que se acentuou com a Exposição Nacional de 1908 no Rio de Janeiro. O brasileiro passou a corresponder-se, quer com outros brasileiros, quer com amigos estrangeiros, em cartões-postais que exibiam aos olhos do mundo e, particularmente, a olhos lusitanos, por mais analfabeto que fosse então o homem rústico da língua portuguesa preso à sua aldeia ou ao seu bairro, não só as belezas das paisagens da terra brasileira, como as obras de engenharia, de urbanização e de arquitetura que a vinham modernizando no sentido, aliás, de uma europeização nem sempre feliz e de uma ianquização nem sempre saudável (Gilberto Freyre. “Informação, comunicação e cartão-postal”. In Alhos & bugalhos: ensaios sobre temas contraditórios: de Joyce à cachaça; de José Lins do Rego ao cartão-postal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 146-161. A citação aparece na páginas 151 e 152).






Guardo em meu arquivo pessoal um convite da exposição "Postais antigos do Recife e Olinda (1900/1930). Coleção Edilberto de Souza Alves", que teve lugar na Galeria Vicente do Rego Monteiro, do Recife, em julho de 1986. Nele há um texto de mestre Gilberto Freyre do qual eu quero destacar o seguinte excerto:

O postal foi inovação que conquistou, de modo imediato, público discriminador. Conquistou-o por ser artisticamente atraente ao mesmo tempo que susceptível de tornar-se propriedade particular [..]

As coleções de postais não deixam de ser, além de prazer para colecionadores, documentos relativos a épocas sucessivamente dignas dessa espécie de consagração. Sabe-se terem se tornado frases inspiradas pela arte postal, tanto "bonito como um postal" como - para lembrança a amigo - "não se esqueça de mandar-me um postal do país exótico que visitar" (Gilberto Freyre. "Em louvor do postal". Cartão-covite da exposição "Postais antigos do Recife e Olinda (1900/1930). Coleção Edilberto de Souza Alves". Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 1986).






Não tenho dúvidas de que foi contaminado pela febre do colecionismo de cartões-postais que o senhor Antônio Marcelino do Nascimento (1929-2006), um sergipano de Simão Dias, começou a reunir um acervo enorme não só de postais, mas também de fotografias e de estampas. E foi com parte da coleção que pertenceu a Antônio Marcelino, adquirida pelo governo da Bahia, que em novembro de 1997 foi inaugurado o Museu Tempostal, instalado num sobrado do século XIX que pertenceu ao conde português Pereira Marinho.


O colecionador Antônio Marcelino do Nascimento



Na tarde do dia  18 de outubro de 2013, em que eu visitei o museu, fui acompanhado pela monitora Elaine Meira que, muito atenciosa e solícita, me falou não somente das imagens que estavam expostas na ocasião, bem como sobre aspectos do próprio edifício que abriga a instituição cultural.

Acervo do autor: folders de exposições ocorridas no Museu Tempostal




Conhecer o acervo do Museu Tempostal é olhar para o passado como um exercício de reconhecimento do espaço onde se pisa e se vive, percebendo que a transitoriedade do tempo, junto com a ação humana, provoca por vezes mudanças consideráveis nas paisagens e, por conseguinte, alterações também no modo de nos relacionarmos com elas. Para um estudioso das transformações urbanas das cidades, acervos como o do Museu Tempostal são puro deleite.

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