Alvorada
lá no morro
Que beleza
Ninguém
chora
Não há
tristeza
Ninguém
sente dissabor
O sol
colorindo é tão lindo
É tão
lindo.
Alvorada. Cartola/Carlos
Cachaça/Hermínio Bello de Carvalho
Chega
no morro com carregamento
Pulseira,
cimento, relógio, pneu, gravador
Rezo
até ele chegar cá no alto
Essa
onda de assalto está um horror.
O meu guri. Chico Buarque
Eu penso
no homem
Que dorme
nas ruas do Rio
E agora
flutua nos rios da rua
Os barracos
à beira do abismo
Deslizam
no cinismo da Vieira Souto
Meus
sonhos são outros.
Tempestade.
Zélia Duncan/Chrstiaan Oyens
Imagem: Internet Espécie de ícone carioca e nacional, as favelas da Cidade Maravilhosa, não é de hoje, se tornaram matéria-prima para a elaboração das mais diversas manifestações culturais |
Eu desconheço, mas
certamente deve existir por aí, até mesmo vagando no buraco negro da rede
mundial de computadores, algum tratado, ensaio ou artigo de fundo enfocando uma
chamada “estética da favela”, à maneira do que tanto já se escreveu sobre o
brega e o kitsch, por exemplo. Desde que
surgiu no cenário urbano e cultural brasileiro com esse nome – acredita-se que foi
mesmo no Rio de Janeiro do final do século XIX que ela surgiu, durante os
tumultuosos anos da Belle Époque “civilizadora”
que aportou nas terras fluminenses, e que foi contemporânea em seus começos de
gente do quilate de um Machado de Assis, de um Lima Barreto e de um João do Rio,
só para ficarmos com três das mais importantes figuras das letras nacionais
daqueles tempos -, a favela nunca mais saiu de cena. E se entranhou de tal modo
na cultura nacional que, imaginem vocês, alcançou certo, digamos, glamour,
adquirindo status de artigo de primeira necessidade na pauta de alguns artistas
que se apresentam como, vá lá, vanguarda politizada.
Grosso modo, a bem da
verdade, o Brasil é em grande parte constituído por um aglomerado de favelas. Ou
alguém aí ainda pensa que para ser chamada de favela uma aglomeração urbana
desordenada e com infraestrutura precária tem que estar cravada em um morro? Eu,
por exemplo, moro numa localidade da Região Metropolitana do Recife na qual
minha morada está situada numa rua sem pavimentação onde o esgoto corre a céu
aberto, construções surgem desobedecendo aos preceitos do Plano Diretor, postes
apresentam lâmpadas queimadas e o lixo se acumula como se fosse elemento
constituinte da paisagem natural. Então, que nome dar a isso?
Assim como a baiana
estilizada da Carmen Miranda, as sandálias Havaianas, as mulatas do Osvaldo
Sargentelli, a soja, os jogadores de futebol e o próprio Carnaval ganharam o
mundo como artigos de exportação que têm a “cara do Brasil”, também a imagem da
favela, principalmente da favela carioca, adquiriu, se não reconhecimento
internacional, pelo menos se tornou por assim dizer, objeto de curiosidade de
um enorme contingente de estrangeiros que continua enxergando este país sob as
lentes do exotismo. Deste modo é que se vendem pacotes de viagens com roteiros
nos quais são incluídas visitas guiadas à Rocinha, ao Vidigal e por aí vai,
para que os gringos vejam in loco, ao
vivo e em cores, os cenários de filmes como Orfeu
Negro (1959), do Marcel Camus – possuo uma fotografia autografada pelo ator
Breno Mello, que fez o Orfeu, na qual ele aparece encarnando o personagem -, Cidade de Deus (2002), do Fernando
Meirelles e da Kátia Lund, baseado no livro homônimo do Paulo Lins que eu ainda não li, Tropa de elite (2007), do José Padilha, Última parada 174 (2008), do Bruno Barreto, que nos é apresentado
como “baseado em uma história real”, história essa amplamente acompanhada pela
imprensa na época, da animação Rio (2011),
do Carlos Saldanha, de uma telenovela como A
força do querer (2017), da Glória Perez, e mesmo do videoclipe Vai malandra (2017), da cantora Anitta. É
o Rio de Janeiro favelizado e marginal vendido com charme, pompa e
circunstância em produtos que seus idealizadores, acredito, juram estar, seja bem
dito, promovendo denúncia da desigualdade social, da violência urbana e outras
coisas do gênero marginádlia. Bailes funk onde mulheres sofrem abusos sexuais
figuram como destaque cultural da periferia. Tráfico de drogas e de armas é
necessidade de sobrevivência. Casas erguidas em locais de risco de desabamento
são exemplos de curiosa engenharia. E no discurso de uns e outros as favelas continuam
a ser apresentadas como lugares bons para se viver, como diziam as pessoas que
frequentavam os palcos dos programas da madrinha de todas as favelas do Rio de
Janeiro e do Brasil inteiro, Regina Casé. Daí por que, apesar de permanecerem conflagradas,
violentas e esquecidas pelo Estado, as favelas cariocas – assim como o próprio Rio de
Janeiro, como insiste em cantar Gilberto Gil que, não esqueçamos, lançou um disco chamado Refavela, em 1977, cuja música-título
diz assim: “A refavela/Revela o salto/Que o preto pobre tenta dar/Quando se arranca/Do
seu barraco/Prum bloco do BNH”. BNH era o Banco Nacional da Habitação, que foi criado em 1964 e extinto em 1986 – continuam lindas e inspiradoras – e auferindo
lucros e conferindo fama a uns e outros.
Como eu não sou um cultor de
estilo e nem possuo cabedais de estudioso e crítico de literatura, a mim me
interessa, sobretudo, a estória que me é narrada e não propriamente a forma e a
maneira com que ela é contada. Então, seguindo esse meu, digamos,
posicionamento como leitor, eu percorri as páginas do livro do Geovani Martins
e não encontrei nelas nada além do que o de mais comum e trivial e do que tanto
já se disse, exibiu e cantou sobre o cotidiano das favelas do Rio de Janeiro,
onde pessoas vivem à mercê das imposições de criminosos de diferentes linhagens
– não esqueçamos que por vezes os milicianos se portam como o estabelecimento e
a chegada da ordem às áreas antes dominadas por traficantes – e não raro se
veem seduzidas pelo prazer viciante das drogas enquanto tentam encarar a dureza
de suas existências em confronto com a vigilância e a truculência policial, o
preconceito e, por que não dizer , a tirania e a indiferença dos endinheirados
do Leblon, de Copacabana e adjacências.
A etiqueta “Made in favela” –
e ainda por cima de favela carioca – junto com o apadrinhamento do escritor
Antonio Prata certamente contribuíram para que o livro do Geovani Martins
ganhasse a repercussão que ganhou. Duvido que, caso não retratasse o Rio de
Janeiro, que é o principal destino turístico brasileiro, o Rio de Janeiro dos
constantes embates entre bandidos e policiais que não sai do noticiário, e se
não contasse com o apadrinhamento que o fez chegar a uma das maiores casas
editoriais deste país, O sol na cabeça
dificilmente reverbaria com a intensidade que vem reverberando porque, vistos
de perto, os treze contos que constituem a obra têm muito de déjà vu e de lugar-comum para alguém que,
como eu, tanto leu, assistiu, ouviu e acompanhou – e acompanha – o que é dito a
respeito do Rio de Janeiro. Sim, não há dúvida de que, como literatura de
testemunho, o livro do Geovani tem um peso relevante porque, amiúde, é sob o
olhar do observador de fora que nos chegam os produtos culturais com a marca “Made
in favela”; e Geovani, como se sabe, é personagem real e habita os cenários que
descreve; e isso, talvez, seja o ponto mais importante do seu trabalho. Narrativas
como “Rolézim”, “A história do Periquito e do Macaco” e “Estação Padre Miguel”
a mim me soaram como mais do mesmo, com os confrontos do morro com o asfalto,
da ordem com a desordem e do permitido com o ilegal se repetindo num círculo,
numa sequência que parece não ter fim. Para o bem da verdade, a prosa repleta
de gírias do Geovani Martins até me enfastiou. E eu nem vou entrar aqui no
mérito, como tantas resenhas fizeram, pondo a baixa escolaridade do autor em
destaque porque, além de eu conhecer artistas talentosos que fazem bom uso da
palavra sendo analfabetos e/ou semianalfabetos, até onde eu sei, Geovani chegou
até a 8ª série e frequentou oficinas de criação literária. Talento não está
necessariamente ligado à formação escolar.
O Rio de Janeiro do Geovani
Martins, com suas traficâncias, desigualdades sociais, vielas, gírias e
arbitrariedades policiais, é o mesmo Rio de Janeiro que estamos tão acostumados
a ver por aí circulando no noticiário e em tudo quanto é suporte artístico,
porque miséria, para uns, é condição de existência que gera sofrimento,
tristeza e revolta – como nos fez ver Carolina Maria de Jesus em seu muito cru
relato Quarto de despejo, lançado em
1960 – e, para outros, é matéria-prima necessária para angariar votos e gerar
dividendos.
Para além de uma suposta
estética que a elas se busca atrelar, as favelas permanecem sendo uma das
chagas a evidenciar o alto grau de desigualdade social e de má distribuição de
renda que, não é de hoje, constituem a mais verdadeira e precisa marca
definidora deste país em que milhões de indivíduos carregam todos os dias um
ardente sol na cabeça a desnorteá-los em suas precárias existências, em suas
vidas de rumo incerto.
A desocupação desordenada e falta de planejamento habitacional é e sempre será um câncer na sociedade carioca, além de um problema regional do brasil. Tratar de forma diferente esta realidade, é passar um pincel, na origem estrutural das cidade. Como se não bastasse, a marginalização de uma parcela significativa, este ainda terem de conviver, com o saqueamento de milícias que impõem sem nenhuma caridade seu "lampianismo" espalhando terror por onde passam. Portanto, o escaldante "sol na cabeça", é de fato sentir-se em um inferno, sem regras e sem lei.
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