Nós somos medo e desejo
Somos feitos de silêncio e som
Tem certas coisas que eu não sei dizer.
Certas coisas. Lulu Santos/Nelson Motta
Daquilo
que dizemos e daquilo que não conseguimos dizer. Ainda
não encontrei em mim uma explicação para o fato de eu ser muito dado a
familiaridades imediatas. Dependendo, claro, do meu interlocutor, porque por
vezes eu me deparo com pessoas que são como aquelas plantas que, ao ser tocadas,
se recolhem e se fecham, eu, em pouquíssimo tempo de conversa, descrevo como
que um resumo de toda a minha vida: digo das minhas mancadas, dos meus erros,
dos meus fracassos, das minhas inseguranças, das minhas maldades, do meu apego
a coisas fúteis, dos meus rancores, dos meus receios, da minha insensibilidade,
dos meus nãos, da minha dureza, da minha mesquinhez, da minha brutalidade, do
meu egoísmo, da minha ansiedade, da minha falta de paciência; e também digo da
minha sensibilidade, do meu apego a coisas essenciais, da minha coragem, do meu
companheirismo, das minhas paixões, da minha ternura, do meu comprometimento,
da minha franqueza, da minha postura de enfrentamento, da minha solidão, do meu
estender a mão, dos meus sins, da minha disposição para ouvir, do meu ser
confiável, da minha liberdade.
Não necessariamente agimos –
eu digo isso por mim – com má-fé e desonestidade quando, porventura, deixamos
de lado e/ou omitimos certas passagens de tudo o que vivemos. Talvez isso seja
uma tentativa de algum modo nos resguardar. Ou talvez uma maneira de
sustentarmos uma verdade que nos fortalece ao mesmo tempo que superando e/ou
tentando superar, sufocar e manter bem distante de nós algum mal que nos
infligiram.
Sinceramente eu não acredito
que sessões e mais sessões de terapia e de análise consigam extrair tudo de nós
e fazer com que aplaquemos algumas dores e/ou esclareçamos, a fim de diluí-las,
certas incompreensões que em cada um de nós habita de forma permanente. Acredito
que, até mesmo de modo inconsciente e com a maior naturalidade, possamos dizer
algo como “eu espero nunca encontrar o meu pai”, que eu já disse a inúmeras
pessoas com as quais conversei, e, lá no meu mais profundo íntimo o que, talvez,
esteja pulsando vivo e forte seja justamente o contrário disso, que eu falei
para os meus interlocutores. É como se o que pensamos estar afirmando com a
mais plena segurança e convicção fosse tão somente uma maneira de negarmos e/ou
nos rebelarmos contra o imperativo de uma verdade que é maior do que nós e
sobre a qual, em realidade, não dispomos de uma força que seja capaz de domá-la
e sufocá-la inteiramente. De minha parte continuo dizendo que eu espero nunca
encontrar o meu pai, seja em que circunstância for.
Dias atrás um amigo me disse
de sua desolação, de sua tristeza por ter se deparado com uma situação bastante
desagradável e que foi para ele por demais perturbadora. Ele, que está beirando
os sessenta anos de idade, julgava e tinha absoluto entendimento de que a sua
natureza homossexual era um fato superado no sentido de que essa condição,
digamos, existencial era por ele plenamente aceita sem nenhuma neura e sem
nenhum complexo. Mas eis que um acontecimento em família o abalou profundamente
– e não era para menos. Num ambiente no qual se encontravam outras pessoas além
deles, acompanhando de muito perto o que estava sendo dito, o pai dele começou
dizendo que o filho, por ser homossexual, era a grande vergonha da família e
por aí vai. “Poxa, embora eu tenha me segurado na hora e dito a ele uma porção
de coisas, tudo o que ele disse mexeu muito comigo, cara. E eu que pensava que
essa coisa de ser gay estava bem resolvida dentro de mim”, ele me confidenciou
em um tom que não deixava esconder certa perplexidade e desapontamento. Eu ainda
tentei animá-lo dizendo que, talvez, o abalo tenha ocorrido não necessariamente
pelo fato das invectivas contra a sua homossexualidade e sim porque elas
partiram de alguém a quem ele estava estendendo a mão e oferecendo ajuda,
porque, acredito, caso tivesse partido de qualquer outra pessoa e em outra
circunstância, isso iria passar sem marcas nem abalos, iria sair na urina, como
se diz por aí.
Ainda há pouco, conversando
com outro amigo, que é negro, ouvi dele uma confissão muito forte: “Sierra, eu
já passei por várias situações de discriminação por ser negro. E mesmo com o
bom emprego que eu alcancei e com a posição de enfrentamento que eu mantenho
sem baixar a cabeça para situações desse tipo, algumas coisas me machucaram
demais. E eu não consigo expressar, eu não sei exprimir e encontrar palavras
pra dizer o que eu sinto com relação a vários acontecimentos que vivi”, ele me
disse.
Na medida do possível eu
tendo a enxergar todas as instâncias da minha vida, primeiro, mirando-as pelo
viés da praticidade, porque eu sou um homem essencialmente pragmático, eu não
me deixo ser tomado – nem sempre consigo efetivamente, mas não desisto – pela emoção
infrene. Eu avalio até mesmo em termos práticos meus relacionamentos afetivos,
porque para mim não dá para fazer de conta que a realidade é diferente do que
ela é.
Em todas as esferas da vida
nos deparamos com situações de rejeição. Eu sei que sempre corro o risco de ser
incompreendido e rejeitado pelo o que eu sou, penso e sinto e pelo modo como eu
encaro e guio a minha vida. Vários indivíduos já se afastaram de mim depois que
me ouviram discorrer sobre uma e outra coisa. Eles não fazem ideia do quanto eu
sou indiferente à rejeição, ao desprezo e ao abandono.
A maioria das pessoas, creio
eu, tem uma dificuldade absurda de suportar o peso da verdade e de reconhecer e
aceitar fundamentalmente o que elas realmente são.
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