15 de outubro de 2022

Não estou disposto a abrir mão disso

 Por Sierra

 

Especialmente para Letícia Oliveira, que me procurou, por causa do blog, no instante em que esta narrativa estava sendo escrita

 

Imagem: Internet
Ter me transformado em um leitor voraz e onívoro certamente se deu também pelos encontros que ocorreram ao longo do caminho com algumas pessoas dos livros. Ninguém se torna leitor compulsivo impunemente. Ninguém tem fome de saber sem uma razão de ser



Não consigo precisar qual foi o instante exato do start, do momento em que a leitura desencadeou em mim uma espécie de dependência, como quem precisa do ar para respirar, da água para se hidratar, do alimento para se nutrir e do sono para se restabelecer. Não consigo precisar isso, mas recordo com grande clareza alguns encantamentos esparsos que, muito possivelmente, eu acredito, foram as sementes do que estava por vir.

No ano de 1985, na 5ª série do 1º Grau, por força dos compromissos escolares – e então eu tinha 11 anos de idade – e recomendação da professora de Português, Suely Garcia, eu li dois livros da inesquecível série Vaga-lume, da Editora Ática: A ilha perdida, de Maria José Dupré; e Os barcos de papel, de José Maviael Monteiro. O meu encontro, o meu primeiro encontro com uma narrativa mais longa, digamos assim, se deu com esses dois bons livros, porque, antes deles, o meu universo de leitura se resumia a uma versão muitíssimo abreviada do Chapeuzinho Vermelho, do Charles Perrault – era uma daquelas publicações com pouquíssimas palavras e muitas imagens destinadas a leitores iniciantes -, gibis e a revista Alegria e Companhia, que eu adorava nos meus dias de criança. Anos se passaram. Eu pouco li durante o período. E no segundo ano do 2º Grau, nas aulas do professor Ibraim – eu não guardei o sobrenome dele, desculpem – afora o A mão e a luva, de Machado de Assis, eu li O cortiço, de Aluísio Azevedo, obra que me marcou profundamente e que possui um desfecho que sempre e sempre me emocionou muito à medida que a dimensão daquela tragédia foi sendo esclarecida pelo conhecimento de mundo e de história do Brasil que eu fui adquirindo. E, no terceiro ano do 2º Grau, sob a batuta do professor Eurípedes Luna, eu entrei em contato com “Psicologia de um vencido”, o famosíssimo poema de Augusto dos Anjos, algo que também me marcou de uma forma arrebatadora.

Mas essas ocorrências, esses encontros com a literatura não foram processos que se deram de modo contínuo. Outras obras eu leria, porém, sem me ter ainda como um leitor de fato, sem que eu buscasse os livros e a leitura em si como uma necessidade existencial, como uma substância primordial. Daí por que eu não sei dizer exatamente quando houve o big bang que desencadeou isso em mim. Contudo, eu considero que tal ocorrência se deu em algum momento da minha trajetória acadêmica, durante o tempo em que eu cursava a graduação em História na Universidade Federal de Pernambuco; tempo esse em que a obrigação e a necessidade imperiosa de ler livros para a minha formação foram paulatinamente dando lugar a um apego desmesurado, a uma busca incansável, a um querer desmedido e a uma verdadeira devoção à leitura e aos livros.

Ter me transformado em um leitor voraz e onívoro certamente se deu também pelos encontros que ocorreram ao longo do caminho com algumas pessoas dos livros. Ninguém se torna leitor compulsivo impunemente. Ninguém tem fome de saber sem uma razão de ser. Eu sei, eu tenho plena consciência de que devo parte da minha existência e da minha forma de estar no mundo e do meu constante exercício de compreensão e interpretação do mundo a várias pessoas que eu encontrei nas tantas leituras que fiz desde então. Como eu sei e penso que eu sei que o meu exercício de escrita, para além de toda e qualquer vaidade intelectual, é também ele uma necessidade de minha existência, do meu sentir, do meu querer dizer, da força e das crenças que me lançam para isso e do papel que eu assumi para minha travessia da vida. Eu sei que escrevo como parte de um entendimento de liberdade que não é só de pensar. E eu aceito o meu ser e o meu estar no mundo com a maior naturalidade, sem me colocar num plano superior nem inferior e sim posicionado numa superfície e num espaço que são meus, porque eu compreendo que eu estou aqui e que tenho plena capacidade de me expressar.

Nesta semana a leitura de um breve livro me deixou por horas e horas a fio mergulhado numa melancolia e numa tristeza sem pares. Eu tive ânsia de logo dar conta dele e de concluir a leitura a fim de afastá-lo imediatamente de mim. Mas como fazer isso, me digam? Como conseguir se livrar de algo que foi como que inoculado em nossa mente? Agora é tarde. A tragédia já se deu. O abalo sísmico já provocou maremotos e rachaduras em mim.

À medida que eu fui lendo Livros demais!, do Gabriel Zaid, eu me vi sendo tomado por uma angústia danada. Algumas afirmações nele contidas mexeram tremendamente comigo. Penso mesmo que na narrativa de Zaid eu encontrei inquietações que vinham me perseguindo há tempos e que eu de alguma forma as domava. Senti até vontade de chorar depois de pausar a leitura na tarde da quinta-feira. Pensei na biblioteca que eu venho formando, pensei nos livros que eu publiquei e que foram um retumbante fracasso, pensei nestes textos que publico aqui no blog e que quase ninguém lê, pensei nos projetos de outros livros que pretendo realizar e pensei até mesmo – vejam a que ponto eu cheguei – em quanto tempo ainda eu tenho de vida para estar em companhia dos meus livros.

Mas eu não entreguei os pontos, não. Ontem mesmo eu arrumei e limpei a minha biblioteca, como tenho feito todas as semanas. Não pensei em quantos livros eu terei ainda tempo de ler até o fim dos meus dias. Não pensei em parar por aqui e pôr fim a tudo isso que me move. Aprendi com o Elias Canetti, ao ler a coletânea Sobre os escritores, que eu também encontrei nesta semana de tantas leituras, que “Escreve-se para ser diferente. Quem frauda a escrita continua sendo o que é de qualquer maneira”. Eu não vou fazer, nesse campo, nada, absolutamente nada diferente do que eu tenho feito. Eu vou continuar sem fazer concessões. Eu vou permanecer acreditando em tudo o que me trouxe até aqui. Eu não estou disposto a abrir mão disso.

Em razão da escrita do prefácio para um estudo que um amigo meu fez, hoje eu pus sobre o meu birô de trabalho, entre outras, a obra Uma vida entre livros, do José Mindlin, cujo exemplar pertenceu a um dos maiores bibliotecários deste país, o meu saudoso Edson Nery da Fonseca, e cuja leitura eu finalizei em 23 de abril de 2012. Relendo algumas páginas da narrativa do Mindlin, relendo essa verdadeira declaração de amor, de dedicação e de devoção aos livros e à leitura, todo o meu apego, todo o meu carinho e toda a minha fascinação pelos livros, pela leitura e pela escrita se renovaram forte e robustamente.

Eu sei, eu bem sei que o meu estar no mundo apoia-se firmemente nisso; e não como missão, e sim como necessidade existencial mesmo.

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