8 de outubro de 2022

O diabo diante do púlpito

 Por Sierra


Imagem: Reprodução/Redes sociais
Como eu disse no artigo anterior, eu vou votar em Lula oferecendo a ele um voto de confiança. Podem dizer o que quiserem do candidato do Partido dos Trabalhadores. Para mim, os polos antagônicos que estão disputando a presidência da República opõem a fraternidade e a humanidade que eu vejo no candidato Lula ao obscurantismo e à desumanidade personificados em Bolsonaro
 

Ao lado da misoginia, da homofobia, da xenofobia e do descaso para com a educação e a preservação do meio ambiente, o atual presidente da República pôs também o discurso do ódio e da intolerância religiosa, conseguindo atrair para junto de si, com todos esses males, um contingente de milhões de brasileiros que se reconhecem e que se identificam com a pauta da beligerância e da malignidade que ele dissemina, muito convictos de que o verdadeiro mal está no outro lado e não neles próprios.

O entendimento de que os seres humanos em suas relações com outros seres humanos, com a natureza e com tudo o que existe de palpável e de impalpável está ligado a crenças muito particulares, levou a humanidade a tratar com o sobrenatural evocando uma diversidade de deuses dentro de cosmologias próprias e distintas umas das outras. Por que está errado e deve ser perseguido quem cultua Oxum, quem segue os preceitos de Buda, quem destina oferendas a Ganesha e quem adotou a doutrina do kardecismo? A questão fundamental da intolerância religiosa que se manifesta pelos quatro cantos do mundo é que, para uns e outros, só valem os escritos da Bíblia, só os ensinamentos cristãos é que garantem a salvação de todos e de cada um de nós. Extremistas cristãos estão à solta por aí praticando maldades em nome da crença que eles professam e há quem pense que isso é bom para uma sociedade que se enxerga plural.

É justamente essa postura algo belicosa que adentrou na atual disputa pela presidência da República. Estão fazendo da crença no sobrenatural um instrumento de combate e de confronto apontando, cada um a seu modo, os supostos perigos à fé cristã que estariam na pauta de governo do candidato Luiz Inácio Lula da Silva. O negócio é tão absurdo e ao mesmo tão perigoso que muitas das ditas lideranças evangélicas, que são as que até aqui vêm demonstrando mais intolerância religiosa e crendo e disseminando inverdades, parecem não saber que o mundo é diverso e plural e que, ao fomentarem, apoiarem e estimularem um descrédito e uma perseguição a crenças espirituais e religiosas diferentes das que eles professam, estimulam a desarmonia e os ataques àqueles que as vivenciam.

Notem que um dos maiores absurdos que algumas lideranças evangélicas consciente e perversamente estão propagando é a que diz que, uma vez que seja eleito, Lula mandará fechar as igrejas evangélicas. Vejam, por outro lado, que essas mesmas lideranças evangélicas não se pronunciam contra os ataques sistemáticos que vêm sendo feitos aos territórios de umbanda e de candomblé e nem tampouco falaram das ofensas recentes direcionadas aos maçons. E por que isso? Porque entre eles não impera e nem sequer existe uma ideia de comunhão e de ecumenismo. O que entre eles prospera é a lógica do “inimigo precisa ser derrotado” e “nós vamos acabar com eles”. É a mesma lógica do não se importar com os constantes assassinatos de homossexuais, porque, segundo eles, homossexuais são qualquer outra coisa, menos gente.

Eu vejo evangélicos afirmando que Lula é anticristão e contra os preceitos da Bíblia. Minha gente, quanta ignorância. Curioso e espantoso é ver essas pessoas mancomunadas com Jair Bolsonaro, um sujeito que seguidamente deu demonstrações que de cristão ele pouco ou nada tem. Por que esses evangélicos que se julgam acima do bem e do mal e poços de fraternidade e de humanidade não demonstram um mínimo de empatia para com as minorias que o atual presidente da República ataca? Ser homossexual é ser contra a família? Ser negro é ser burro de carga? Ser mulher é ser cidadão de segunda classe? Ser adepto de uma crença que não for a que eu sigo é ser demoníaco? Que pregação de amor, de fraternidade e de humanidade é essa?

Não faltam evangélicos que atacam Lula dizendo que ele é um ex-presidiário e que eles jamais votariam num ex-presidiário. Eu ouço coisas desse tipo e fico pensando no que é que essa gente vai pregar nas unidades prisionais. Será que elas vão até esses locais para tentar transformar, através do Evangelho, assassinos, ladrões e estupradores ou será que elas não acreditam nisso, porque uma vez bandido o indivíduo nunca mais cultivará bons valores e nem será, como eles dizem, “gente de bem”? Penso nessas questões e fico imaginando um pastor e/ou um seu auxiliar na porta de sua igreja avaliando alguém por ele desconhecido:

- Pois não? Eu sou o pastor João. E você, quem é?

- Meu nome é Carlos...

- É a sua primeira vez aqui, Seu Carlos?

- Sim, é. Eu tô precisando me consertar na vida...

- Ah, é? Muito bem. E o que foi de errado que o senhor fez, Seu Carlos, para vir procurar conforto na casa de Deus?

- Eu bebia muito, sabe? E num dia em que teu tava muito bêbado matei minha mulher a facadas. Cumpri minha pena já.

- E foi? Olhe, Seu Carlos, eu não deixo entrar aqui nem homossexuais, nem bêbados, nem estupradores, nem ladrões e muito menos assassinos. Sabe o que o senhor faz, Seu Carlos? Vá procurar outro lugar para entrar.

Mas minha gente, vocês não vivem repetindo que Deus é amor?!

A necessidade que uns e outros sentem de dar ouvidos e seguir um guia e/ou líder espiritual me apavora. Eu me recuso terminantemente a aceitar que “guiem”, que “orientem” a minha subjetividade; e que alguém diga o que eu devo ser e como eu devo ser. Não creio no sobrenatural; mas não é porque eu não creio que eu deva partir para atacar e desacreditar as crenças de quem quer que seja. A liberdade de consciência é seguramente, para mim, a maior das liberdades. Sermos donos de nós mesmos e termos plenitude de consciência nos confere uma força enorme para dizer “não” aos que intencionam tirar de nós a capacidade que temos de pensar por si próprio e de ter discernimento.

Como eu disse no artigo anterior, eu vou votar em Lula oferecendo a ele um voto de confiança. Podem dizer o que quiserem do candidato do Partido dos Trabalhadores. Para mim, os polos antagônicos que estão disputando a presidência da República opõem a fraternidade e a humanidade que eu vejo no candidato Lula ao obscurantismo e à desumanidade personificados em Bolsonaro.

E para não dizerem que eu fui muito sombrio e sério demais neste artigo, eu, que sei tanto ser da greia, do deboche e do escracho sin perder la ternura, fiz estes versos escrotos para embalar o pleito e zoar daqueles que se julgam seres humanos melhores e superiores a outros seres humanos. Lá vai:

Ão, ão, ão eu voto é no ladrão.

Quem só prega o ódio

é que vota no diabão.


Um tirano é sempre e sempre muito mais perigoso e cruel do que um ladrão, porque tiranos nos subtraem até a liberdade.

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