12 de novembro de 2022

Como uma cantiga de adeus para Gal Costa

 Por Sierra


Foto: Divulgação
Como se fosse uma viagem musical, eu vi uma menina correndo e fazendo teco, teco, teco, teco, teco na bola de gude, eu li o folhetim, eu vi o tempo e adiei o quanto pude o embarque naquele velho vapor barato. Baby, eu te amo, eu sei que te amo sem a minha e sem a sua estupidez. Adoro o seu sorriso de gato de Alice que dissipa nuvem negra e que espanta o ciúme. Somos como dois e dois que fazem o que podem para ficar tudo joia rara no embalo de odara e no maior balancê, balancê. Eu, que quero a massa real, eu, que quero a seiva vital, eu, que quero o quereres, olho as vitrines, mexo no cabelo e miro a amplidão do céu azul tomado pela sua grandeza. Sim, você me dá sorte, meu amor. Só louco não compreende as nuances da arte. Só os insensíveis não compreendem o mugido da vaca profana. A indiferença, a crueldade, a intolerância, o falso moralismo, a tirania, o machismo, a mentira, o preconceito, a pobreza, o abandono, a fome, o desamparo... Tudo isso dói; o resto é divino maravilhoso. As rosas não falam? Ah, mas você canta: canta Brasil, canta, canta, porque, alguém me disse que, alguém como tu – será que foi a Rita? –veio ao mundo para cantar e espalhar o amor, o sublime e a felicidade, porque você é acauã, você é assum preto e é até, quem sabe, muito mais do que um átimo de som. Seu sangue, sua garra, sua beleza e sua alma de índia fizeram de você uma mulher única. Eu vi tanta coisa. Eu vi o coração vagabundo brincando na festa do interior enquanto uma chuva de prata caía sem parar numa noite em que não se queria saber de nenhum objeto não identificado, porque São João, Xangô menino, meu bem, meu mal, sabia e contemplava sozinho a força estranha de uma mulher mais do que absoluta e estratosférica, corajosa, liberta e libertária, mãe de Gabriel, esposa de Wilma, que, brilhante como uma pérola negra, assim se apresentava em qualquer lugar e em qualquer dia como num dia de domingo: eu vim da Bahia e meu nome é Gal
 

 

Dizem alguns que tudo tem um fim. Não acredito nisso. Olho ao redor e dentro de mim e vejo indícios de eternidade. Eternidade que se compõe de ideias, de sons, de lembranças, de fecundidade esperançosa de futuro – todo futuro carrega passado e presente consigo - e de desejos que fenecem e que renascem permanentemente dizendo do ciclo infinito das coisas e das pessoas, porque, quando uma pessoa termina, ela é continuada em outra e mais outra e mais outra, em elos que, na universalidade cósmica e no mistério inexplicável da vida, faz o infinito, faz a eternidade.

Penso em Gal Costa como uma dessas partículas cósmicas que rondam a atmosfera que a gente não consegue ver, mas sabe que elas estão presentes como algo precioso, necessário, acalentador, prazeroso, estimulante, libertador, urgente e vital. Gal Costa é vital. Gal Costa é um resumo de tudo aquilo que um artista que é consciente de sua condição de artista e que não toma a arte dentro do conceito da arte pela arte, busca ser. Gal é plural. Gal é imagética. Gal é libertária. Gal é imática. Gal é influente. Gal é talento. Gal é resistência. Gal é coragem. Gal é arriscar-se. Gal é não temer. Gal é crença absoluta na arte. Gal é indicação de rumo. Gal é voz de convocação. Gal é permanência. Gal é eternidade.

As permanências e as eternidades atravessam as nossas vidas como marcos indissolúveis para nos dizer do que somos feitos e do que somos capazes de fazer como elementos componentes do todo que constitui o permanente e o eterno. Não somos partículas perdidas vagando a esmo. Nós somos partes de elos que só aparentemente se rompem, porque o que é de durar infinitamente nunca se dissolve nem se perde.

Voz do tempo, voz que atravessou e marcou um longo tempo, Gal Costa é uma de nossas maiores artistas. Não digo foi porque eu falo aqui de permanência e de eternidade. Gal está em muito do que me toca, em muito do que me inspira como artista e em muito do que me fascina e me emociona na música; música que para mim é uma espécie de alimento e seiva vital.

A arte, infelizmente, não toca profundamente todas as pessoas, porque existem pessoas que ou são indiferentes a ela ou a percebem de modo superficial; o que é bastante lamentável, porque a arte é uma forma de dizermos como nós percebemos, como nós interpretamos, como nós lidamos e como nós processamos tudo o que nos constitui e tudo o que nos envolve.

Como se fosse uma viagem musical, eu vi uma menina correndo e fazendo teco, teco, teco, teco, teco na bola de gude, eu li o folhetim, eu vi o tempo e adiei o quanto pude o embarque naquele velho vapor barato. Baby, eu te amo, eu sei que te amo sem a minha e sem a sua estupidez. Adoro o seu sorriso de gato de Alice que dissipa nuvem negra e que espanta o ciúme. Somos como dois e dois que fazem o que podem para ficar tudo jóia rara no embalo de odara e no maior balancê, balancê. Eu, que quero a massa real, eu, que quero a seiva vital, eu, que quero o quereres, olho as vitrines, mexo no cabelo e miro a amplidão do céu azul tomado pela sua grandeza. Sim, você me dá sorte, meu amor. Só louco não compreende as nuances da arte. Só os insensíveis não compreendem o mugido da vaca profana. A indiferença, a crueldade, a intolerância, o falso moralismo, a tirania, o machismo, a mentira, o preconceito, a pobreza, o abandono, a fome, o desamparo... Tudo isso dói; o resto é divino maravilhoso. As rosas não falam? Ah, mas você canta: canta Brasil, canta, canta, porque, alguém me disse que, alguém como tu – será que foi a Rita? –veio ao mundo para cantar e espalhar o amor, o sublime e a felicidade, porque você é acauã, você é assum preto e é até, quem sabe, muito mais do que um átimo de som. Seu sangue, sua garra, sua beleza e sua alma de índia fizeram de você uma mulher única. Eu vi tanta coisa. Eu vi o coração vagabundo brincando na festa do interior enquanto uma chuva de prata caía sem parar numa noite em que não se queria saber de nenhum objeto não identificado, porque São João, Xangô menino, meu bem, meu mal, sabia e contemplava sozinho a força estranha de uma mulher mais do que absoluta e estratosférica, corajosa, liberta e libertária, mãe de Gabriel, esposa de Wilma, que, brilhante como uma pérola negra, assim se apresentava em qualquer lugar e em qualquer dia como num dia de domingo: eu vim da Bahia e meu nome é Gal.

Gal é uma das aves canoras da abençoada Bahia que percorreu os quatro cantos deste país e que fez a sua voz ecoar para além fronteiras, esbanjando sofisticação, elegância e beleza conjugadas com um talento enorme. Um talento enorme e uma força de expressão de uma vivacidade que pouco se vê no meio artístico brasileiro. Gal era luminosa. Gal compreendia cada milímetro do seu ofício. Gal cantava conferindo a cada música escolhida para o seu repertório uma marca toda sua. E se isso soa um tanto quanto clichê, leitor, procure e cate por aí quem do nosso meio musical detém tal capacidade; procure e veja no vasto cenário da música brasileira quem consegue, como Gal conseguia, pegar uma composição que não seja de nenhum dos chamados grandes mestres das composições e fazer dela algo que soe grandioso. Nem todo cantor nem toda cantora tem a capacidade de transformar e/ou de dar brilho a canções. Gal tinha. E tinha de sobra.

A notícia do falecimento de Gal Costa me chegou numa manhã de andanças pelo Recife, através do onipresente WhatsApp, numa mensagem enviada por Cristiano José, a quem eu já comprei vários discos. E o peso da tristeza ficou sobre os meus ombros enquanto eu seguia pelas ruas de um Recife barulhento e tumultuado. Na minha fantasia eu iria conhecer pessoalmente Gal qualquer dia desses, porque eu permanecia acreditando e apostando que qualquer hora dessas alguém iria me telefonar e dizer: “Sierra, é fulana. Tudo bem? Menino, eu gostei muito de suas músicas. Vou gravar algumas. E quero te apresentar à Gal Costa, porque acho que ela também vai gostar do teu trabalho”. Isso, infelizmente, não aconteceu e não tem mais possibilidade nenhuma de acontecer. E eu sei que foi muito em razão disso que, voltando para casa no finalzinho da tarde daquela quarta-feira, eu chorei como estou chorando agora. Eu chorei junto à janela do ônibus pensando em Gal e cantando silenciosamente os versos que pouco antes do choro eu fizera como um tributo, como uma homenagem, como uma retribuição e como um agradecimento pelo tanto de prazer e de satisfação que ela conferiu à minha vida. E chorei também porque fulana não me ligou e parece que nunca ligará.

Não, não eu não poderei mais abraçar e beijar Gal Costa como eu imaginei que em algum momento eu faria, mas, ela permanecerá dentro de mim como uma das forças motrizes que me fizeram acreditar na força avassaladora da arte. Obrigado, muito obrigado, Gal.

PS- Gal Costa se foi no mesmo dia em que Rolando Boldrin também nos disse adeus. O Sr. Brasil, o homem do Som Brasil, ao qual eu assistia quando era criança, igualmente deixará saudades em todos aqueles que acreditam que a boa música é o impalpável que nos põe em comunhão com o maravilhoso da vida.

Um comentário:

  1. Baby baby Ilove you. Que não amou a Gal Costa? Como bem menciona o texto, a magia e o poder de Gal em transformar uma canção em algo eterno é avassalador. O Brasil acordou com o coração apertado ao dizer até breve , porque assim é a estrela Gal, a cadente que não se apaga. O vazio se preenche com a voz e sutileza de sua voz inconfundível. Baby , baby I love you...

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