Por Sierra
Dizem alguns que tudo tem um
fim. Não acredito nisso. Olho ao redor e dentro de mim e vejo indícios de
eternidade. Eternidade que se compõe de ideias, de sons, de lembranças, de
fecundidade esperançosa de futuro – todo futuro carrega passado e presente
consigo - e de desejos que fenecem e que renascem permanentemente dizendo do
ciclo infinito das coisas e das pessoas, porque, quando uma pessoa termina, ela
é continuada em outra e mais outra e mais outra, em elos que, na universalidade
cósmica e no mistério inexplicável da vida, faz o infinito, faz a eternidade.
Penso em Gal Costa como uma
dessas partículas cósmicas que rondam a atmosfera que a gente não consegue ver,
mas sabe que elas estão presentes como algo precioso, necessário, acalentador,
prazeroso, estimulante, libertador, urgente e vital. Gal Costa é vital. Gal Costa
é um resumo de tudo aquilo que um artista que é consciente de sua condição de
artista e que não toma a arte dentro do conceito da arte pela arte, busca ser. Gal
é plural. Gal é imagética. Gal é libertária. Gal é imática. Gal é influente. Gal
é talento. Gal é resistência. Gal é coragem. Gal é arriscar-se. Gal é não
temer. Gal é crença absoluta na arte. Gal é indicação de rumo. Gal é voz de
convocação. Gal é permanência. Gal é eternidade.
As permanências e as
eternidades atravessam as nossas vidas como marcos indissolúveis para nos dizer
do que somos feitos e do que somos capazes de fazer como elementos componentes
do todo que constitui o permanente e o eterno. Não somos partículas perdidas
vagando a esmo. Nós somos partes de elos que só aparentemente se rompem, porque
o que é de durar infinitamente nunca se dissolve nem se perde.
Voz do tempo, voz que atravessou
e marcou um longo tempo, Gal Costa é uma de nossas maiores artistas. Não digo
foi porque eu falo aqui de permanência e de eternidade. Gal está em muito do
que me toca, em muito do que me inspira como artista e em muito do que me
fascina e me emociona na música; música que para mim é uma espécie de alimento
e seiva vital.
A arte, infelizmente, não
toca profundamente todas as pessoas, porque existem pessoas que ou são
indiferentes a ela ou a percebem de modo superficial; o que é bastante
lamentável, porque a arte é uma forma de dizermos como nós percebemos, como nós
interpretamos, como nós lidamos e como nós processamos tudo o que nos constitui
e tudo o que nos envolve.
Como se fosse uma viagem musical, eu vi uma menina correndo e fazendo teco, teco, teco, teco, teco na bola de gude, eu li o folhetim, eu vi o tempo e adiei o quanto pude o embarque naquele velho vapor barato. Baby, eu te amo, eu sei que te amo sem a minha e sem a sua estupidez. Adoro o seu sorriso de gato de Alice que dissipa nuvem negra e que espanta o ciúme. Somos como dois e dois que fazem o que podem para ficar tudo jóia rara no embalo de odara e no maior balancê, balancê. Eu, que quero a massa real, eu, que quero a seiva vital, eu, que quero o quereres, olho as vitrines, mexo no cabelo e miro a amplidão do céu azul tomado pela sua grandeza. Sim, você me dá sorte, meu amor. Só louco não compreende as nuances da arte. Só os insensíveis não compreendem o mugido da vaca profana. A indiferença, a crueldade, a intolerância, o falso moralismo, a tirania, o machismo, a mentira, o preconceito, a pobreza, o abandono, a fome, o desamparo... Tudo isso dói; o resto é divino maravilhoso. As rosas não falam? Ah, mas você canta: canta Brasil, canta, canta, porque, alguém me disse que, alguém como tu – será que foi a Rita? –veio ao mundo para cantar e espalhar o amor, o sublime e a felicidade, porque você é acauã, você é assum preto e é até, quem sabe, muito mais do que um átimo de som. Seu sangue, sua garra, sua beleza e sua alma de índia fizeram de você uma mulher única. Eu vi tanta coisa. Eu vi o coração vagabundo brincando na festa do interior enquanto uma chuva de prata caía sem parar numa noite em que não se queria saber de nenhum objeto não identificado, porque São João, Xangô menino, meu bem, meu mal, sabia e contemplava sozinho a força estranha de uma mulher mais do que absoluta e estratosférica, corajosa, liberta e libertária, mãe de Gabriel, esposa de Wilma, que, brilhante como uma pérola negra, assim se apresentava em qualquer lugar e em qualquer dia como num dia de domingo: eu vim da Bahia e meu nome é Gal.
Gal é uma das aves canoras da
abençoada Bahia que percorreu os quatro cantos deste país e que fez a sua voz
ecoar para além fronteiras, esbanjando sofisticação, elegância e beleza
conjugadas com um talento enorme. Um talento enorme e uma força de expressão de
uma vivacidade que pouco se vê no meio artístico brasileiro. Gal era luminosa. Gal
compreendia cada milímetro do seu ofício. Gal cantava conferindo a cada música
escolhida para o seu repertório uma marca toda sua. E se isso soa um tanto
quanto clichê, leitor, procure e cate por aí quem do nosso meio musical detém
tal capacidade; procure e veja no vasto cenário da música brasileira quem
consegue, como Gal conseguia, pegar uma composição que não seja de nenhum dos
chamados grandes mestres das composições e fazer dela algo que soe grandioso. Nem
todo cantor nem toda cantora tem a capacidade de transformar e/ou de dar brilho
a canções. Gal tinha. E tinha de sobra.
A notícia do falecimento de
Gal Costa me chegou numa manhã de andanças pelo Recife, através do onipresente WhatsApp, numa mensagem enviada por
Cristiano José, a quem eu já comprei vários discos. E o peso da tristeza ficou
sobre os meus ombros enquanto eu seguia pelas ruas de um Recife barulhento e
tumultuado. Na minha fantasia eu iria conhecer pessoalmente Gal qualquer dia
desses, porque eu permanecia acreditando e apostando que qualquer hora dessas
alguém iria me telefonar e dizer: “Sierra, é fulana. Tudo bem? Menino, eu
gostei muito de suas músicas. Vou gravar algumas. E quero te apresentar à Gal
Costa, porque acho que ela também vai gostar do teu trabalho”. Isso,
infelizmente, não aconteceu e não tem mais possibilidade nenhuma de acontecer. E
eu sei que foi muito em razão disso que, voltando para casa no finalzinho da
tarde daquela quarta-feira, eu chorei como estou chorando agora. Eu chorei
junto à janela do ônibus pensando em Gal e cantando silenciosamente os versos
que pouco antes do choro eu fizera como um tributo, como uma homenagem, como
uma retribuição e como um agradecimento pelo tanto de prazer e de satisfação
que ela conferiu à minha vida. E chorei também porque fulana não me ligou e parece
que nunca ligará.
Não, não eu não poderei mais
abraçar e beijar Gal Costa como eu imaginei que em algum momento eu faria, mas,
ela permanecerá dentro de mim como uma das forças motrizes que me fizeram
acreditar na força avassaladora da arte. Obrigado, muito obrigado, Gal.
PS- Gal Costa se foi no mesmo dia em que Rolando Boldrin também nos disse adeus. O Sr. Brasil, o homem do Som Brasil, ao qual eu assistia quando era criança, igualmente deixará saudades em todos aqueles que acreditam que a boa música é o impalpável que nos põe em comunhão com o maravilhoso da vida.
Baby baby Ilove you. Que não amou a Gal Costa? Como bem menciona o texto, a magia e o poder de Gal em transformar uma canção em algo eterno é avassalador. O Brasil acordou com o coração apertado ao dizer até breve , porque assim é a estrela Gal, a cadente que não se apaga. O vazio se preenche com a voz e sutileza de sua voz inconfundível. Baby , baby I love you...
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