24 de junho de 2023

Crônicas de ônibus (XII)

 Por Sierra

 

Foto: Arquivo do Autor
Tem dias que parece que o ônibus segue um quilômetro para frente e recua dois



O dia a dia passando de um ônibus para o outro é uma dureza desmedida para quem depende do transporte público de passageiros. Nós sofremos como uns condenados nas masmorras ambulantes que cruzam as estradas como se estivessem transportando entulho que será despejado em algum cantinho por aí. Não é sempre assim, é verdade. Mas muitas vezes é assim sim.

Imagine você ter de sair de sua cama quando ainda nem amanheceu, se organizar todo, comer, se vestir, pegar a marmita e sair para esperar o busão daquele horário que você normalmente pega e o danado não passa. Vixe! Você fica logo é fulo de tanta raiva. Parece com aquele encontro marcado há vários dias ao qual só você compareceu.

São vários dissabores que acometem os que dependem dos ônibus do transporte público de passageiros para tocar as suas vidas. Um deles é o atraso. Outro é a “queima de parada”, que é quando você faz sinal com o braço para o motorista parar e ele simplesmente lhe ignora, como se ele estivesse com raiva de você, ou, sei lá, você não estivesse ali. Outro aborrecimento é fazer a viagem de pé e ainda mais estando espremido, tamanha é a lotação do coletivo. Outra malvadeza que é feita contra os passageiros é ele ter de suportar pregadores evangélicos dizendo que a sua vida não presta, que você está fazendo tudo errado, que você se deixa dominar pelo demônio e que, sendo assim e assim sendo, você vai para o inferno – como se você não tivesse absoluta certeza disso. Outro sofrimento é ser conduzido em ônibus que mais parecem que são os primeiros veículos automotivos do tipo que foram construídos, de tão velhos que eles são. Tem ainda o martírio de fazer a viagem toda, todinha mesmo, ouvindo uns e outros que levam caixas de som e põem para tocar os piores hits do momento e de outros tempos para todo mundo ouvir com muito daquela coisa: “Ah, vocês só estão reclamando porque eu não coloquei a música que vocês gostam”. E o que dizer do motorista que parece que avança um quilômetro na rodovia e recua dois? Mas nenhum infortúnio supera - segundo o histórico de reclamações que eu já vi e o meu próprio julgamento - o do ônibus que quebra e deixa você pelo caminho como um cachorro que caiu do caminhão da mudança: gente, eu já embarquei num ônibus que quebrou tão logo saiu do terminal, parecendo até um quadro de programa humorístico, não fosse o imenso aborrecimento causado pelo malfadado acontecimento.

Na última terça-feira eu paguei mais uma vez a minha cota diária de penitência para ir trabalhar; e de modo mais aborrecedor do que de costume.

O meu primeiro embarque ocorreu com um atraso de quinze minutos – e quinze minutos para quem mora muito distante do local do trabalho parecem uma eternidade. E, como se não bastasse o atraso, a empresa prestadora do serviço mandou um ônibus velho, desses que fariam boa figura num museu do transporte público de passageiros que, se ainda não existe no Brasil, deveria existir a fim de guardar para as futuras gerações a memória e os testemunhos materiais de nossa triste (i)mobilidade urbana. Parecia que o coletivo não iria conseguir vencer a Ladeira do Giz, da Ilha de Itamaracá. E o motorista ainda teve a infelicidade de atropelar e matar um cachorro próximo à subida do Alto da Felicidade, vulgo Alto da Gaia – o condutor teve pelo menos a humanidade de esperar que o passageiro Jonas descesse do ônibus e retirasse o cadáver da pista. E nós continuamos na viagem rumo ao continente num clima de tristeza – naquele dia o rapaz que costuma levar uma caixa de som não conseguiu assento e, talvez, por causa disso, resolveu não colocá-la para tocar.

Chegando ao terminal de Igaraçu a fim de fazer baldeação, eu outra vez amarguei a dura realidade de embarcar noutro ônibus peça de museu. E, como dissabor pouco é bobagem, o motorista era do tipo Pé de Pano – esse é o nome do cavalo que nos desenhos animados aparece ora acompanhando o Pica-pau, ora o João Seboso; e é também como na gíria se chama o Ricardão, o sujeito que entra e sai da casa devagar, de mansinho para não ser notado pelo marido da esposa infiel -, que é como o pessoal costuma chamar o tipo de condutor lento que parece não estar saindo do lugar. Meu caro leitor, a coisa não prestou. Irritadíssimos com a lentidão em que o veículo seguia na BR 101, vários passageiros começaram a protestar: “Tira o pé do freio, motorista!”; “Quero só ver se hoje eu não vou chegar no (sic) trabalho”; “Eita bicho devagar da porra”; “Esta merda tá quebrada é motorista?”. A coisa foi seguindo nessa toada até que um dos reclamantes – uma jovem muito agitada – disse assim: “Para, para, motorista, que eu vou descer. Que lentidão danada!”. E ela desceu mesmo; e quase espumando de raiva.

Como era previsível, eu cheguei tarde ao trabalho. E fui dizendo a mim mesmo: “Tem nada não. Sábado eu vou ganhar na Quina de São João e passar a andar só de táxi e de avião”.


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