1 de julho de 2023

De carros e de cidades

Por Sierra


Fotos: Arquivo do Autor
As cidades de um modo geral pagam um alto preço para se adequarem às exigências do tráfego de veículos que, no mais das vezes, promovem mutilações no tecido urbano. Nesta foto vemos um trecho da BR 101 que corta o centro da cidade de Abreu e Lima, na Região Metropolitana do Recife. Na década de 1980 as obras de duplicação dessa rodovia promoveram a demolição de um educandário e de centenas de casas e estabelecimentos comerciais, além de ter promovido o desaparecimento de ruas e outros caminhos tão conhecidos da população - e quem põe abaixo tudo isso também promove o desaparecimento de vivências. Esta igreja, por exemplo, substituiu a outra que o dito progresso viário fez desaparecer


Não é preciso que cada um de nós estude Engenharia de Tráfego e nem que seja um profundo conhecedor dos fundamentos do Urbanismo para que percebamos os efeitos daninhos que a superabundância de veículos automotivos provoca no desenho das cidades.

Veículos automotivos em quantidades enormes circulando em todas as direções, percorrendo ruas e avenidas das cidades são como cânceres em estado de metástase: eles estão sempre a exigir mais e mais espaço, querendo ocupar tudo o que puderem. Daí por que em países que privilegiaram a autoestrada, mal aproveitando ou simplesmente deixando de lado as ferrovias e as hidrovias, como é o caso do Brasil, as cidades médias e grandes se encontram em permanente estado de assédio por parte dos condutores de seus possantes para que se alargue uma avenida aqui, se construa um viaduto ali e se duplique uma faixa acolá, de modo que eles não fiquem presos em engarrafamentos estressantes e engolidores de tempo. Desta forma todo prefeito e todo governador que queira ganhar a simpatia de ampla parcela de eleitores têm de pôr ao menos a promessa de realização de uma grande obra viária em seu projeto de governo, ao mesmo tempo em que procure discutir a mobilidade urbana e  focar em larga medida o transporte público de passageiros que, em verdade, é o meio de locomoção ao qual recorre a maior parte da população.

No admirável estudo que é o livro Cidades do amanhã, o britânico Peter Hall dedicou um longo capítulo à presença do automóvel nas cidades e às consequências trazidas por eles no traçado do espaço urbano. Intitulado de "A cidade à beira da autoestrada", o capítulo examina Paris, na França, e algumas cidades dos Estados Unidos, no espaço temporal de 1930 até 1987. É impressionante como, já na década de 1920, a presença dos veículos automotivos promoveu um impacto negativo no território urbano. Leiamos este trecho da narrativa de Peter Hall que é bastante ilustrativo sobre o que eu me propus a discutir neste artigo de hoje:

[...] a motorização em massa já começara a impingir-se sobre as cidades norte-americanas em meados da década de 1920 de uma forma que só nas décadas de 1950 e 1960 o resto do mundo iria conhecer. Em 1923, o congestionamento de tráfego já era tão terrível em algumas cidades, que já se falava em barrar o acesso de carros às ruas centrais [...] (Peter Hall. Cidades do amanhã: uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos no século XX. Trad. Maria Alice Junqueira Bastos, Pérola de Carvalho e Anita Guimarães. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2016, p. 395).

O Brasil vem há cerca de sete décadas fazendo da autoestrada o esteio principal do escoamento das riquezas que o país produz. E isso, como sabe qualquer indivíduo que presta atenção em telejornais e outros canais de notícias, não apenas encarece as matérias-primas e, por conseguinte, as mercadorias nas quais elas são transformadas. E esse impacto negativo dos veículos automotivos nesse aspecto da economia também tem impacto na qualidade da mobilidade urbana como um todo, porque carretas e caminhões disputam nas cidades ou mesmos trajetos nos quais seguem ônibus, vans escolares e os carros ditos de passeio.

Ao continuar com a política de privilegiar a autoestrada que é, claro, o desejo das montadoras de automóveis que aqui se instalam na base de muitos incentivos fiscais, o Estado brasileiro, os governos dos estados e os prefeitos dos municípios seguem sem enfrentar verdadeiramente a questão da mobilidade urbana, uma mobilidade urbana que seja sustentável e socialmente includente.


Trecho da BR 101, agora do bairro de Cruz de Rebouças, em Igaraçu: assim como ocorreu na vizinha cidade de Abreu e Lima, também aqui as obras da rodovia dilaceraram nacos consideráveis desta cidade


Na realidade de um tempo de alta tecnologia e de discussões em nações ricas e de sociedades altamente instruídas sobre como reduzir o consumo de combustíveis fósseis, desenvolvendo os chamados carros elétricos e limitando o acesso de carros a certas zonas de suas capitais, o Brasil deu mais uma prova de que continuará comendo poeira e sendo a vanguarda do atraso: semanas atrás o presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva fez anunciar, como grande feito de seu governo, incentivos fiscais para que este país passe a disponibilizar no mercado um carro cujo valor seja realmente “popular”.

Eu pergunto a você leitor: qual é o valor em reais para um carro se tornar realmente popular no Brasil, considerando que a maior parte da população brasileira economicamente ativa e que trabalha com carteira assinada não chega a ganhar nem dois salários mínimos? Para mim popular é algo que está acessível à maioria da população; e eu não imagino alguém que ganhe dois salários mínimos podendo comprar um carro novo e/ou seminovo.

O anúncio do governo a mim me soou como algo do tipo: “A partir de hoje o cidadão pode dirigir sem usar o cinto de segurança”; ou “A Agência Nacional de Vigilância Sanitária liberou o aumento da quantidade de açúcar nos iogurtes”. São anúncios que só na aparência parecem ser coisas boas, quando, na realidade, eles nos são prejudiciais.

A política de incentivo para aquisição de automóveis é a um só tempo um retrocesso num mundo pautado por uma agenda de sustentabilidade ambiental e um recado de que o poder público não está preocupado com a dura realidade de quem enfrenta diariamente ônibus lotados em longos trajetos marcados por trechos em que o tráfego trava e/ou fica muitíssimo lento. E não só isso – embora “só isso” seja muita coisa e uma situação grave e preocupante -:  tal política do “você agora pode comprar um carro” reforça a percepção do cidadão cuja renda mal dá para ele pagar as contas de suas necessidades mais básicas, que, ao fim e ao cabo, tudo vai ser transformado para continuar exatamente como está ou pior do que está.


Trecho da Avenida Norte, no bairro de Santo Amaro, no Recife: quando a Municipalidade promoveu o alargamento dessa avenida, que é uma das mais extensas da capital pernambucana, vários imóveis tiveram que ser em parte destruídos. Ainda hoje as marcas da mutilação permanecem evidentes, porque nem todos os proprietários dos imóveis promoveram reformas significativas nas edificações que conseguissem mascarar de todo as marcas da onda demolidora que passou por ali para que os carros corressem com mais ligeireza ou com mais fluidez, como preferem dizer os entendidos nessas coisas de desafogamento do trânsito


Num tom que é ao mesmo tempo sarcástico e contundente, Luiz Adelar Scheuer, que nos idos da década de 1990 foi presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotivos, disse que “O único automóvel verdadeiramente popular no Brasil tem seis rodas: é o ônibus” (Ruy Castro [edição]. O poder de mau humor: uma antologia de citações venenosas sobre política, dinheiro e sucesso. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 23). Não há no horizonte nenhum sinal de que isso irá mudar.

 

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