Por Sierra
Não é preciso que cada um de
nós estude Engenharia de Tráfego e nem que seja um profundo conhecedor dos
fundamentos do Urbanismo para que percebamos os efeitos daninhos que a superabundância
de veículos automotivos provoca no desenho das cidades.
Veículos automotivos em
quantidades enormes circulando em todas as direções, percorrendo ruas e
avenidas das cidades são como cânceres em estado de metástase: eles estão
sempre a exigir mais e mais espaço, querendo ocupar tudo o que puderem. Daí por
que em países que privilegiaram a autoestrada, mal aproveitando ou simplesmente
deixando de lado as ferrovias e as hidrovias, como é o caso do Brasil, as
cidades médias e grandes se encontram em permanente estado de assédio por parte
dos condutores de seus possantes para que se alargue uma avenida aqui, se
construa um viaduto ali e se duplique uma faixa acolá, de modo que eles não
fiquem presos em engarrafamentos estressantes e engolidores de tempo. Desta forma todo prefeito e todo governador que queira ganhar a simpatia de ampla
parcela de eleitores têm de pôr ao menos a promessa de realização de uma grande obra
viária em seu projeto de governo, ao mesmo tempo em que procure discutir a mobilidade urbana e focar em larga medida o transporte público de passageiros que, em verdade, é
o meio de locomoção ao qual recorre a maior parte da população.
No admirável estudo que é o livro Cidades do amanhã, o britânico Peter Hall dedicou um longo capítulo à presença do automóvel nas cidades e às consequências trazidas por eles no traçado do espaço urbano. Intitulado de "A cidade à beira da autoestrada", o capítulo examina Paris, na França, e algumas cidades dos Estados Unidos, no espaço temporal de 1930 até 1987. É impressionante como, já na década de 1920, a presença dos veículos automotivos promoveu um impacto negativo no território urbano. Leiamos este trecho da narrativa de Peter Hall que é bastante ilustrativo sobre o que eu me propus a discutir neste artigo de hoje:
[...] a motorização em massa já começara a impingir-se sobre as cidades norte-americanas em meados da década de 1920 de uma forma que só nas décadas de 1950 e 1960 o resto do mundo iria conhecer. Em 1923, o congestionamento de tráfego já era tão terrível em algumas cidades, que já se falava em barrar o acesso de carros às ruas centrais [...] (Peter Hall. Cidades do amanhã: uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos no século XX. Trad. Maria Alice Junqueira Bastos, Pérola de Carvalho e Anita Guimarães. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2016, p. 395).
O Brasil vem há cerca de
sete décadas fazendo da autoestrada o esteio principal do escoamento das
riquezas que o país produz. E isso, como sabe qualquer indivíduo que presta
atenção em telejornais e outros canais de notícias, não apenas encarece as
matérias-primas e, por conseguinte, as mercadorias nas quais elas são
transformadas. E esse impacto negativo dos veículos automotivos nesse aspecto
da economia também tem impacto na qualidade da mobilidade urbana como um todo, porque carretas e
caminhões disputam nas cidades ou mesmos trajetos nos quais seguem ônibus, vans
escolares e os carros ditos de passeio.
Ao continuar com a política
de privilegiar a autoestrada que é, claro, o desejo das montadoras de
automóveis que aqui se instalam na base de muitos incentivos fiscais, o Estado
brasileiro, os governos dos estados e os prefeitos dos municípios seguem sem
enfrentar verdadeiramente a questão da mobilidade urbana, uma mobilidade urbana
que seja sustentável e socialmente includente.
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Trecho da BR 101, agora do bairro de Cruz de Rebouças, em Igaraçu: assim como ocorreu na vizinha cidade de Abreu e Lima, também aqui as obras da rodovia dilaceraram nacos consideráveis desta cidade |
Na realidade de um tempo de
alta tecnologia e de discussões em nações ricas e de sociedades altamente instruídas sobre como
reduzir o consumo de combustíveis fósseis, desenvolvendo os chamados carros
elétricos e limitando o acesso de carros a certas zonas de suas capitais, o
Brasil deu mais uma prova de que continuará comendo poeira e sendo a vanguarda
do atraso: semanas atrás o presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva
fez anunciar, como grande feito de seu governo, incentivos fiscais para que este
país passe a disponibilizar no mercado um carro cujo valor seja realmente “popular”.
Eu pergunto a você leitor: qual é o valor em reais para um carro se tornar realmente popular no Brasil, considerando que a maior parte da população brasileira economicamente ativa e que trabalha com carteira assinada não chega a ganhar nem dois salários mínimos? Para mim popular é algo que está acessível à maioria da população; e eu não imagino alguém que ganhe dois salários mínimos podendo comprar um carro novo e/ou seminovo.
O anúncio do governo a mim
me soou como algo do tipo: “A partir de hoje o cidadão pode dirigir sem usar o
cinto de segurança”; ou “A Agência Nacional de Vigilância Sanitária liberou o
aumento da quantidade de açúcar nos iogurtes”. São anúncios que só na aparência
parecem ser coisas boas, quando, na realidade, eles nos são prejudiciais.
A política de incentivo para
aquisição de automóveis é a um só tempo um retrocesso num mundo pautado por uma
agenda de sustentabilidade ambiental e um recado de que o poder público não está
preocupado com a dura realidade de quem enfrenta diariamente ônibus lotados em longos
trajetos marcados por trechos em que o tráfego trava e/ou fica muitíssimo
lento. E não só isso – embora “só isso” seja muita coisa e uma situação grave e
preocupante -: tal política do “você
agora pode comprar um carro” reforça a percepção do cidadão cuja renda mal dá
para ele pagar as contas de suas necessidades mais básicas, que, ao fim e ao
cabo, tudo vai ser transformado para continuar exatamente como está ou pior do que está.
Num tom que é ao mesmo tempo sarcástico e contundente, Luiz Adelar Scheuer, que nos idos da década de 1990 foi presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotivos, disse que “O único automóvel verdadeiramente popular no Brasil tem seis rodas: é o ônibus” (Ruy Castro [edição]. O poder de mau humor: uma antologia de citações venenosas sobre política, dinheiro e sucesso. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 23). Não há no horizonte nenhum sinal de que isso irá mudar.
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