8 de julho de 2023

A cidade que abriga é a mesma que exclui

  Por Sierra


Foto: G1 PE
Não existe engano algum: a cidade que se gentrifica, a cidade cartão-postal, a cidade que em parte se embeleza para abrigar, agradar e dar boas vindas a turistas e visitantes sazonais é a mesma cidade que desabriga e que exclui os desamparados que insistem em nela viver. E é dentro dessa lógica urbana perversa e excludente que se enquadram os prédios do tipo caixão existentes na Região Metropolitana do Recife, condenados à demolição, que, com o perdão do infame trocadilho, estão servindo de caixão funeral para uma multidão de desvalidos.



Como se estivéssemos assistindo à exibição de uma reportagem velha, ou melhor, assistindo à reexibição de uma reportagem de semanas atrás, ontem, Pernambuco e o Brasil acompanhou pelas telas da TV e do smartphone a transmissão de mais um caso de desabamento de um prédio condenado à demolição há muitos anos e que estava sendo ocupado por famílias de sem-teto. Desta feita o edifício que veio abaixo era um dos vários que integram o Conjunto Beira–mar, no bairro do Janga, em Paulista, cidade da Região Metropolitana do Recife; e o saldo foi de 14 mortes.

De acordo com um levantamento feito pelo Instituto de Tecnologia de Pernambuco (Itep) existem cerca de 5.300 prédios do tipo caixão, como o que desabou ontem, nas cidades do Recife, Jaboatão dos Guararapes, Olinda e Paulista. E pasmem: desse total o Itep classificou cerca de mil unidades com “risco alto” de desabar; e duzentas e sessenta unidades com “risco muito alto” de ter o mesmo fim. Ou seja: pelo andar da carruagem e contando com a inação do poder público para não exigir das construtoras e seguradoras a demolição das edificações que passaram por vistorias que certificaram que elas correm sérios riscos de ruir e nem conseguir impedir que pessoas, famílias inteiras ocupem esses prédios, nós provavelmente iremos assistir a mais episódios dessas tragédias dentro malfadadas e sinistras crônicas de mortes anunciadas.

No Brasil as políticas públicas não têm conseguido dar conta do déficit habitacional e nem atender amplamente a parcela da população mais carente que dispõe de pouco e/ou nenhum recurso financeiro para aderir a quaisquer programas que visem atender a tal público. Não podemos esquecer que estamos num país onde milhões dependem de um auxílio pecuniário do Governo federal para conseguir sobreviver. Dito isso, é muito difícil senão impossível impedir e/ou proibir que milhares, milhões de indivíduos ergam - com os materiais que podem e/ou conseguem - casas e barracos em locais de risco como beiras de rios e córregos e áreas de morros; e nem esperar que essas mesmas pessoas atendam aos pedidos e recomendações para que não ocupem prédios que estão condenados à demolição, porque é o mesmo que pedir ao mendigo e ao indivíduo em condição de morador de rua completamente desassistido para que não revirem as lixeiras em busca de comida.

Não foi ontem e nem foi em abril passado que os primeiros prédios do tipo caixão começaram ruir no Grande Recife. Esses desabamentos tiveram início ainda na década de 1990; e o que ocorreu de lá para cá, pelo que nós pudemos acompanhar pelo noticiário, foi que, efetivamente, o poder público não conseguiu encontrar uma solução para esse grave problema que marca o urbanismo brasileiro, como se essa questão fosse insolúvel e não se dispusesse nem de recursos financeiros e nem de um aparato legal que pusesse fim a tragédias em série que vêm causando a perda de várias vidas.

O que mais eu escuto quando ocorrem tragédias como a verificada ontem, em Paulista, é que as pessoas que ocupam edifícios condenados são umas ”loucas” e “irresponsáveis” que sabem que podem morrer a qualquer momento. Gente, ninguém corre um risco desses simplesmente porque quer. Isso é o desespero de quem não tem para onde ir; é uma realidade onde entra também o pensamento mágico de pessoas que acreditam que nenhum mal irá lhes acontecer e que por vezes apostam que, ao vê-las ali, as autoridades públicas talvez se sensibilizem e as realoque para um lugar realmente bom e seguro. Estratégias de sobrevivência são múltiplas e variadas; e nem sempre elas se encaixam em esquemas dominados pela precaução e pela prudência.

Não seria impróprio nem exagerado dizer que, no Brasil, a precariedade da moradia de parcela expressiva da população e, por conseguinte, o déficit habitacional, tiveram início e gênese quando da abolição da escravatura, em 1888, ocasião em que os ex-escravos foram largados à própria sorte no cenário hostil das chamadas “cidades negras” – tal denominação se deve ao fato de elas contarem com uma alta porcentagem populacional de indivíduos negros -, como o Rio de Janeiro, Salvador e o Recife, ocupando cortiços e outros espaços onde eles pudessem de alguma forma se alojar; e, depois, quando eles foram retirados e expulsos dessas construções a partir do momento em que, no Rio de Janeiro então capital federal, o prefeito Francisco Pereira Passos (1902-1906) promoveu uma política de “regeneração urbana”, ação essa que fez com que os já muito prejudicados e excluídos do território urbanizado buscassem os morros e outros lugares perigosos e/ou insalubres para erguer suas moradias.

Evoluímos de 1888 para cá em termos de políticas públicas habitacionais e de urbanização de nossas cidades? Sim, claro que sim. Contudo, os reflexos daquela gênese de exclusão social podem ser vistos até os dias de hoje, como deixam ver as gigantescas favelas do Rio de Janeiro e de Salvador, e as palafitas às margens do Rio Capibaribe e a ocupação desordenada dos morros do Recife. Dos anos finais do século XIX até os dias atuais a nossa urbanização aperfeiçoou em alguns aspectos os seus mecanismos de exclusão social. No Rio de Janeiro do tempo de Pereira Passos, até a polícia era acionada para remover os “indesejáveis” que enfeavam a cidade que estava sendo renovada para ganhar feições de uma Paris tropical. Hoje, com o que se convencionou chamar de gentrificação – outro nome para a tal da “regeneração urbana” -, basta que um grande empreendimento imobiliário de alto padrão seja anunciado para ocupar um determinado terreno e a placa de uma construtora seja fincado nele, para que os desfavorecidos tratem de sair dali, tratem de “pegar o beco”, como diz a gíria popular ainda em voga por aqui, e se arranjem como puderem.

Não existe engano algum: a cidade que se gentrifica, a cidade cartão-postal, a cidade que em parte se embeleza para abrigar, agradar e dar boas vindas a turistas e visitantes sazonais é a mesma cidade que desabriga e que exclui os desamparados que insistem em nela viver. E é dentro dessa lógica urbana perversa e excludente que se enquadram os prédios do tipo caixão existentes na Região Metropolitana do Recife, condenados à demolição, que, com o perdão do infame trocadilho, estão servindo de caixão funeral para uma multidão de desvalidos.

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