Por Sierra
Como se estivéssemos
assistindo à exibição de uma reportagem velha, ou melhor, assistindo à
reexibição de uma reportagem de semanas atrás, ontem, Pernambuco e o Brasil
acompanhou pelas telas da TV e do smartphone
a transmissão de mais um caso de desabamento de um prédio condenado à demolição
há muitos anos e que estava sendo ocupado por famílias de sem-teto. Desta feita
o edifício que veio abaixo era um dos vários que integram o Conjunto Beira–mar,
no bairro do Janga, em Paulista, cidade da Região Metropolitana do Recife; e o
saldo foi de 14 mortes.
De acordo com um
levantamento feito pelo Instituto de Tecnologia de Pernambuco (Itep) existem
cerca de 5.300 prédios do tipo caixão, como o que desabou ontem, nas cidades do
Recife, Jaboatão dos Guararapes, Olinda e Paulista. E pasmem: desse total o
Itep classificou cerca de mil unidades com “risco alto” de desabar; e duzentas
e sessenta unidades com “risco muito alto” de ter o mesmo fim. Ou seja: pelo
andar da carruagem e contando com a inação do poder público para não exigir das
construtoras e seguradoras a demolição das edificações que passaram por
vistorias que certificaram que elas correm sérios riscos de ruir e nem
conseguir impedir que pessoas, famílias inteiras ocupem esses prédios, nós
provavelmente iremos assistir a mais episódios dessas tragédias dentro
malfadadas e sinistras crônicas de mortes anunciadas.
No Brasil as políticas
públicas não têm conseguido dar conta do déficit habitacional e nem atender
amplamente a parcela da população mais carente que dispõe de pouco e/ou nenhum
recurso financeiro para aderir a quaisquer programas que visem atender a tal
público. Não podemos esquecer que estamos num país onde milhões dependem de um auxílio
pecuniário do Governo federal para conseguir sobreviver. Dito isso, é muito
difícil senão impossível impedir e/ou proibir que milhares, milhões de
indivíduos ergam - com os materiais que podem e/ou conseguem - casas e barracos
em locais de risco como beiras de rios e córregos e áreas de morros; e nem
esperar que essas mesmas pessoas atendam aos pedidos e recomendações para que
não ocupem prédios que estão condenados à demolição, porque é o mesmo que pedir
ao mendigo e ao indivíduo em condição de morador de rua completamente desassistido
para que não revirem as lixeiras em busca de comida.
Não foi ontem e nem foi em abril
passado que os primeiros prédios do tipo caixão começaram ruir no Grande
Recife. Esses desabamentos tiveram início ainda na década de 1990; e o que
ocorreu de lá para cá, pelo que nós pudemos acompanhar pelo noticiário, foi
que, efetivamente, o poder público não conseguiu encontrar uma solução para
esse grave problema que marca o urbanismo brasileiro, como se essa questão
fosse insolúvel e não se dispusesse nem de recursos financeiros e nem de um
aparato legal que pusesse fim a tragédias em série que vêm causando a perda de
várias vidas.
O que mais eu escuto quando
ocorrem tragédias como a verificada ontem, em Paulista, é que as pessoas que ocupam
edifícios condenados são umas ”loucas” e “irresponsáveis” que sabem que podem
morrer a qualquer momento. Gente, ninguém corre um risco desses simplesmente
porque quer. Isso é o desespero de quem não tem para onde ir; é uma realidade
onde entra também o pensamento mágico de pessoas que acreditam que nenhum mal
irá lhes acontecer e que por vezes apostam que, ao vê-las ali, as autoridades
públicas talvez se sensibilizem e as realoque para um lugar realmente bom e
seguro. Estratégias de sobrevivência são múltiplas e variadas; e nem sempre
elas se encaixam em esquemas dominados pela precaução e pela prudência.
Não seria impróprio nem
exagerado dizer que, no Brasil, a precariedade da moradia de parcela expressiva
da população e, por conseguinte, o déficit habitacional, tiveram início e
gênese quando da abolição da escravatura, em 1888, ocasião em que os
ex-escravos foram largados à própria sorte no cenário hostil das chamadas “cidades
negras” – tal denominação se deve ao fato de elas contarem com uma alta
porcentagem populacional de indivíduos negros -, como o Rio de Janeiro,
Salvador e o Recife, ocupando cortiços e outros espaços onde eles pudessem de
alguma forma se alojar; e, depois, quando eles foram retirados e expulsos
dessas construções a partir do momento em que, no Rio de Janeiro então capital
federal, o prefeito Francisco Pereira Passos (1902-1906) promoveu uma política
de “regeneração urbana”, ação essa que fez com que os já muito prejudicados e
excluídos do território urbanizado buscassem os morros e outros lugares
perigosos e/ou insalubres para erguer suas moradias.
Evoluímos de 1888 para cá em
termos de políticas públicas habitacionais e de urbanização de nossas cidades? Sim,
claro que sim. Contudo, os reflexos daquela gênese de exclusão social podem ser
vistos até os dias de hoje, como deixam ver as gigantescas favelas do Rio de
Janeiro e de Salvador, e as palafitas às margens do Rio Capibaribe e a ocupação
desordenada dos morros do Recife. Dos anos finais do século XIX até os dias
atuais a nossa urbanização aperfeiçoou em alguns aspectos os seus mecanismos de
exclusão social. No Rio de Janeiro do tempo de Pereira Passos, até a polícia
era acionada para remover os “indesejáveis” que enfeavam a cidade que estava
sendo renovada para ganhar feições de uma Paris tropical. Hoje, com o que se
convencionou chamar de gentrificação – outro nome para a tal da “regeneração
urbana” -, basta que um grande empreendimento imobiliário de alto padrão seja
anunciado para ocupar um determinado terreno e a placa de uma construtora seja
fincado nele, para que os desfavorecidos tratem de sair dali, tratem de “pegar
o beco”, como diz a gíria popular ainda em voga por aqui, e se arranjem como
puderem.
Não existe engano algum: a cidade que se gentrifica, a cidade cartão-postal, a cidade que em parte se embeleza para abrigar, agradar e dar boas vindas a turistas e visitantes sazonais é a mesma cidade que desabriga e que exclui os desamparados que insistem em nela viver. E é dentro dessa lógica urbana perversa e excludente que se enquadram os prédios do tipo caixão existentes na Região Metropolitana do Recife, condenados à demolição, que, com o perdão do infame trocadilho, estão servindo de caixão funeral para uma multidão de desvalidos.
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