2 de setembro de 2023

A geografia cinematográfica, íntima e sentimental do Recife de Kleber Mendonça Filho ou De como uma cidade muito amada se funde à alma da gente

 Por Sierra

 

Foto: Divulgação
Por um primoroso e admirável exercício de montagem, o espectador se vê diante de um amplo e revelador acervo de imagens que Kleber produziu, garimpou, colecionou e guardou ao longo de muitos anos; acervo esse que vai compondo uma colcha de retalhos dilacerante e por vezes perturbadora, porque é de uma contundência potente demais. Eu, fraco que sou para tais coisas, chorei enquanto via o quanto que a cidade foi sendo fustigada e mutilada para abrir passagens para os automóveis e para dar lugar a ruínas ou então a lojas, igrejas e farmácias



É do alagoano Lêdo Ivo uma das mais conhecidas declarações de amor feitas à capital pernambucana em forma de versos. Em “Recife, poesia”, o maceioense disse assim:

Amar mulheres, várias.

Amar cidades, só uma – Recife.

E assim mesmo com suas pontes,

e  os seus rios que cantam,

e seus jardins leves como sonâmbulos

e suas esquinas que desdobram os sonhos de Nassau [...] (In Edilberto Coutinho. Presença poética do Recife: crítica e antologia poética. 3ª ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora; Recife: Fundarpe, 1983, p. 100).

 

Quando, na tarde da última terça-feira, eu me acomodei numa das poltronas do belo Cine-teatro do Parque, localizado no bairro da Boa Vista, na área central do Recife, para assistir à mais nova produção do cineasta Kleber Mendonça Filho, eu já havia preparado o coração para o que estava por vir – eu antevi que a emoção, a nostalgia e todo um forte sentimento de apego ao Recife, que moram dentro de mim, me deixariam ainda mais preso à sua territorialidade primitiva, que é a que efetivamente norteia muitas das minhas inquietações emocionais e intelectuais.

Confesso que eu fiquei assim, assim quando na primeira parte da narrativa fílmica o diretor-narrador foi se apresentando e apresentando os seus e a sua antiga morada. Vendo o que eu via e ouvia eu disse assim de mim para mim: “Ih, rapaz, lá vem o Kleber exercitar a sua já bem conhecida imodéstia”. Aí eu queimei a língua. Kleber não estava se amostrando e mostrando o apartamento de sua família ao espectador por mostrar. O apartamento, a moradia, o lar, o refúgio, a casa não era um mero cenário, não constituía parte da direção de arte. Era algo bem maior do que isso. O apartamento foi mostrado ali como abrigo; como plataforma e mirante de onde se pode observar e ouvir o mundo; como lugar do aprendizado das primeiras lições necessárias para a compreensão de que as mudanças estão acontecendo a todo momento; como repositório e arquivo de nossas memórias mais íntimas e pessoais; e, enfim, como o marco zero da linha definidora da estrada que vamos seguir na vida, com seus cheiros, com sua mobília, com sua arquitetura e com suas sucessivas alterações  que de alguma maneira contribuem para moldar a nossa personalidade e o nosso entendimento no que diz respeito a ser e a estar no mundo.

Acompanhando Kleber Mendonça Filho ir construindo sua narrativa visual e oral a partir dos arquivos que ele formou ao longo da vida, eu pude compreender o quão foi forte nele a influência de sua mãe, a historiadora Joselice Jucá, na constituição de sua persona como um cineasta guardião de uma memória urbana e ainda mais particularmente da memória urbana de um pedaço do Recife, de parte do que os estudiosos conhecemos como "Recife primitivo", porque são os territórios, os bairros de ocupação urbana mais antiga da cidade: Bairro do Recife, Santo Antônio, São José e Boa Vista.

Tem um efeito muito simbólico para mim as cenas em que Kleber mostra as sucessivas reformas por que passou o apartamento comprado por sua mãe na década de 1970; e, junto com isso, as transformações que foram ocorrendo nos arredores do imóvel situado no bairro de Setúbal, na Zona Sul do Recife. A verticalização que foi se impondo ali era um indicativo de que, a bem da verdade, certos espaços da cidade, como o vizinho bairro de Boa Viagem, eram – e ainda são – muito cobiçados pela especulação imobiliária. O paralelo entre as reformas havidas no apartamento da família de Kleber e o processo de verticalização que foi se estabelecendo na vizinhança, bem como o abandono e arruinamento de uma casa ao lado, suscitaram o seguinte questionamento em mim: por que, mesmo tendo passado por várias reformas, o apartamento continuou mantendo a sua essência de abrigo aconchegante enquanto que as transformações por que passaram alguns espaços do Recife deixaram a cidade como que mutilada e desfigurada? Acredito que foi e é porque, na imagem da cidade, certos aspectos de sua fisionomia se tornam para nós referências como que imutáveis; e que sem elas de algum modo nos perdemos e perdemos vivências: quando uma igreja é demolida, por exemplo, não é só um prédio que desaparece: desaparecem tradições, costumes, fazeres, convívios. O mesmo não se dá com as modificações que fazemos em nossa morada, que, no íntimo, se modificam para continuar e permanecer o que era.

Depois desse preâmbulo, Kleber Mendonça Filho transporta quem assiste ao seu filme da Zona Sul para a área central da capital pernambucana, que é o território do seu grande apego ao Recife. Vemos a Rua do Sol, a Rua da Aurora e a icônica Avenida Guararapes, que foi inaugurada durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, uma avenida de prédios  grandiosos, num dos quais, durante décadas, existiu um Bar Savoy que o poeta Carlos Pena Filho eternizou no poema “Chope”, no qual ele disse assim, demarcando um território que passou por um arrasamento para dar lugar àquelas novas edificações e à própria avenida:

Na Avenida Guararapes,

o Recife vai marchando.

O bairro de Santo Antônio,

tanto se foi transformando

que agora, às cinco horas da tarde

Mais se assemelha a um festim,

Nas mesas do bar Savoy,

o refrão tem sido assim:

São trinta copos de chope,

são trinta homens sentados,

trezentos desejos presos,

trinta mil sonhos frustrados [...] (Carlos Pena Filho. “Chope”.In Livro Geral. Olinda: Gráfica Vitória, 1973, não paginado).

 

Agora, a partir desse exato momento, a crônica, a narrativa fílmica de Kleber Mendonça Filho toma como mote a história do tempo de esplendor e posterior decadência de vários cinemas que existiam naquele perímetro e mesmo em bairros suburbanos – cinemas Veneza, Moderno, Art Palácio, Trianon e outros – como uma realidade que é e foi e, também, como uma metáfora contundente do abandono e do acúmulo de ruínas que se verificam em diversos pontos do núcleo primitivo da urbe, o espaço que constitui, como foi dito, o centro de ocupação urbana mais antiga do Recife. A propósito, o historiador francês Jacques Le Goff disse que “Há muito tempo os centros [das cidades] são objeto de ferozes batalhas; eles não querem desaparecer sem combate, eles resistem. Parece-me, entretanto, que a evolução age profundamente contra o centro urbano [...]” (Jacques Le Goff. Por amor às cidades: conversações com Jean Lebrun. Trad. Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998, p. 150).

Por um primoroso e admirável exercício de montagem, o espectador se vê diante de um amplo e revelador acervo de imagens que Kleber produziu, garimpou, colecionou e guardou ao longo de muitos anos; acervo esse que vai compondo uma colcha de retalhos dilacerante e por vezes perturbadora, porque é de uma contundência potente demais. Eu, fraco que sou para tais coisas, chorei enquanto via o quanto que a cidade foi sendo fustigada e mutilada para abrir passagens para os automóveis e para dar lugar a ruínas ou então a lojas, igrejas e farmácias.

Kleber Mendonça Filho tem uma habilidade impressionante para mexer com a carga de bons sentimentos que porventura cada espectador carregue consigo com relação ao Recife. Digo isso porque é inegável que cada um de nós carrega dentro de si uma ideia feliz de cidade em contraponto ao que a realidade nos mostra dela; e com Retratos fantasmas Kleber Mendonça Filho mais uma vez escreveu e assinou um manifesto e um libelo contra as forças brutas que vêm há anos destruindo o Recife. Nessa sua mais recente declaração de amor à cidade – ele chegou a nos mostrar um mapa onde demarcou o perímetro da urbe que lhe é mais caro, íntimo e sentimentalmente precioso -, Kleber não só nos falou de perdas e de tramas terríveis – acompanhem atentos as revelações sobre o projeto nazista da companhia cinematográfica alemã UFA, que ganhou a concorrência para a construção de um cinema num dos terrenos desocupados quando do bota-abaixo havido no bairro de Santo Antônio entre as décadas de 1930 e 1940, para a abertura da Avenida 10 de Novembro (dia do golpe que instituiu a ditadura de Getúlio Vargas), posteriormente batizada de Avenida Guararapes, conforme vai dito por Joel Outtes na p. 179 do seu livro Recife: gênese do urbanismo, 1927-1943 (Recife: Fundaj, Editora Massangana, 1997). Inicialmente nomeado de UFA-Palácio pela imprensa, o cinema aparecerá com a denominação de Art Palácio -, ele também rendeu homenagens a outros cineastas que puseram o Recife em suas obras, como Fernando Spencer, Katia Mesel e Cláudio Assis. E é tão maravilhoso observar a cidade tomando as telas; é como se, nas telas, o Recife ficasse ainda mais vivo e pulsante.

Uma das críticas que eu mais ouço e leio sobre a cinebiografia do Recife que Kleber Mendonça Filho tem feito é de que ele é um "passadista" e um "inimigo da modernidade", como se ter apego a uma ideia feliz de cidade fosse algo ruim; é como se se posicionar em defesa de um desenho urbano e da preservação do patrimônio histórico edificado de uma cidade significasse ser contra o seu desenvolvimento material e socioeconômico. Talvez essas críticas compreendam que  "modernidade", como sinônimo de "progresso", seja algo inevitável como no ciclo vital: um organismo nasce, cresce, reproduz e morre. O que seria, por exemplo, de Roma sem o Coliseu e todo o seu conjunto predial antigo conservados há séculos? O que é que faz com que todos os anos milhares de turistas e estudiosos acorram para a mineira Ouro Preto?


Fotos: Arquivo do Autor
 Um dos espaços de resistência como cinema de rua, o São Luiz, localizado na Rua da Aurora, no bairro da Boa Vista, permanece sendo um lugar aglutinador de cinéfilos e um dos elementos que mantêm o centro do Recife vivo. As cidades detentoras de espaços antigos precisam da presença de instituições culturais que atraiam as pessoas para esses locais





Ora, será que tais críticas às narrativas cinematográficas klebermendoncianas consideram que é efeito inevitável do "progresso" e da "modernidade" demolir prédios centenários componentes da memória urbana de uma cidade porque uns e outros estão precisando de mais vagas para estacionamento de veículos automotivos? E que não se prendem a essa inevitabilidade os conluios, as tramas e as armações dos poderes decisórios e pecuniários que promovem a gentrificação de determinados espaços da cidade? Creio que sim. A mim me parece que "modernidade" e "progresso" não têm que necessariamente significar destruição de algo, principalmente quando se observa que, enquanto parte da cidade do Recife é gentrificada para acomodar e separar os bem-nascidos de "todo o resto", palafitas continuam se equilibrando nas margens do Rio Capibaribe e os morros marcam o necrológio da imprensa na época das chuvas.

No seu robusto e muito esclarecedor livro Mudar a cidade, Marcelo Lopes de Souza nos disse que as "forças espaciais" representando a maneira como o substrato espacial (a materialidade do espaço) se encontra modelado  e organizado, "espelham não somente cultura (gostos, hábitos, crenças, valores) e relações econômicas mas, igualmente, relações de poder". Além disso, destacou ele, "o espaço não é apenas um reflexo ou um recipiente neutro, mas exerce, também, um condicionamento: uma vez produzidas dessa ou daquela forma, para atender a tal ou qual finalidade, as formas espaciais facilitarão ou impedirão outras" (Marcelo Lopes de Souza. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 374 e 374-375).  E eu penso que é exatamente sob essa perspectiva de "formas espaciais" e de ocupações espaciais que Kleber Mendonça Filho tem reiteradamente posto em discussão o Recife em alguns dos seus filmes. E, a meu ver, isso não é em essência passadismo; é algo bem mais complexo e abrangente, porque diz respeito a uma proposta de cidade - e de alguma forma põe isso em debate - que pode até ser um ideal de cidade de Kleber Mendonça Filho, mas que não deixa de ser um ideal de forma espacial urbana ambicionada por muitos e não por uma pequeníssima parcela da população que se enfurna nos espaços gentrificados do núcleo primitivo do Recife e que acredita que desse modo está contribuindo para o pleno desenvolvimento socioeconômico da capital.


No térreo deste prédio, localizado na Rua do Hospício, no bairro da Boa Vista, existiu o saudoso Cinema Veneza, onde eu vivenciei poucos mas bastante significativos momentos felizes de minha vida. Eu era um suburbano sem dinheiro no bolso que só podia ir à capital se alguém bancasse isso



Noto que os críticos da postura que Kleber Mendonça Filho assumiu em defesa do Recife, ou melhor, em defesa de um pedaço do Recife, por vezes enxergam a capital pernambucana, em particular, e as grandes cidades detentoras de núcleos antigos, em geral,  como a Zora, uma das "cidades invisíveis" descritas por Italo Calvino, que, "obrigada a permanecer imóvel e imutável para facilitar a memorização", desfez-se e sumiu do mapa: "Foi esquecida do mundo" (Italo Calvino. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 20). E a realidade, como já foi dito aqui, é algo mais complexo do isso, porque não se discute imutabilidade urbana; o que se propõe - eu vejo assim - é uma discussão sobre se é válido e benéfico para a cidade sepultar parte de sua memória urbana e ainda por cima assumindo e construindo "formas espaciais" excludentes. O núcleo primitivo do Recife - repito: Bairro do Recife, Santo Antônio, São José e Boa Vista - vem há tempos sendo destruído e vilipendiado sim, ainda que alguns estudiosos de sua urbanidade tirem isso por menos e insistam e queiram fazer crer, com seus "discursos competentes" (os discursos técnicos), que "a depender dos interesses e do ponto de vista, é possível perceber mais permanências do que descaracterizações" (Virgínia Pontual, Renata Cabral, Juliana Melo Pereira e Flaviana Lira. "Introdução". In Virgínia Pontual et. al [orgs.]. São José: olhares e vozes em confronto: um bairro patrimônio cultural do Recife. Recife: CEPE, 2021, p. 22), enquanto, aqui e ali, as ações de gentrificação põem suas garras e sua bocarra destruidoras e devoradoras de tudo que encontram pela frente, expulsando moradores e sepultando para todo o sempre caminhos, costumes, crenças e tradições. Detentores de um "discurso competente" que se veem como únicos responsáveis por nortear os destinos dos espaços que compõem a urbe, passando por cima de outros saberes e de outras vivências urbanas de quem está neles e que os conhece para além de pranchetas e croquis de escritórios e salas de planejamento, deveriam pensar que a coletividade é que é e/ou efetivamente deveria ser o corpo político soberano do futuro da cidade. 

Eu não tomo a geografia - a geograficidade, como diria Marcelo Lopes de Souza - cinematográfica, íntima e sentimental do Recife de Kleber Mendonça Filho como uma espécie de "retórica da perda", para recorrermos a uma expressão que dá título a um incensado estudo do José Reginaldo Santos Gonçalves que trata justamente do processo discursivo que levou às políticas públicas de preservação do patrimônio cultural brasileiro (A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Iphan, 2002). Eu enxergo nela, como já disse, uma tomada de posição contra as deformações, a destruição e as ações gentrificadoras que vêm tomando de assalto o Recife; e isso tem muito a ver com um sentimento de pertencimento à cidade; e um entendimento de que é preciso protestar e lutar contra esse estado de coisas que tem redundado em espoliação urbana, em guetificação, em seletividade de moradores e de frequentadores de determinados espaços  da cidade, convertendo-os em lugares de elites financeiras e em condomínios de luxo. E ainda mais quando nos damos conta de que esses abandonos de espaços e edificações são como que propositais para que o arruinamento seja uma justificativa para a tal gentrificação, que não seria de todo ruim; pelo contrário, seria de ótimo efeito para a cidade caso ela tratasse e apenas de revitalizar espaços urbanos, oxigenando-os; acontece que, no mais das vezes, quase sempre, gentrificação rima com expulsão, expulsão de antigos ocupantes e/ou moradores desses espaços. O urbanismo excludente e sepultador da memória urbana não constitui uma fantasmagoria: é algo pesado, presente e muito visível no Recife.

Quando nessa sua mais recente declaração de amor Recife, que é o filmaço Retratos fantasmas, Kleber Mendonça Filho põe Sidney Magal cantando - em Aquarius coube a Reginaldo Rossi a tarefa, lembram? - "Meu sangue ferve por você" - ao que eu completo, Recife - no instante em que a câmera nos revela o centro pulsante da cidade, é como se esse fervilhar, essa pulsação sanguínea quisesse nos dar uma chacoalhão para que fiquemos atentos e resistamos como possamos resistir ao aviltamento e à destruição do núcleo primitivo do Recife. Enquanto continuarmos a fazer valer o nosso amor pelo que no Recife é uma ideia feliz de cidade, ela não há de ficar desalmada e nem totalmente à mercê dos adoradores do novo, que estão sempre dispostos a entregar o corpo do Recife para que ele seja imolado no altar dedicado ao deus Progresso.

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