20 de janeiro de 2024

Reocupar os centros

 Por Sierra

 

Foto: Arquivo do Autor
Trecho da Rua do Hospício, no bairro da Boa Vista, área central do Recife: no térreo do prédio à direita existiu um Cinema Veneza que era um dos mais procurados da capital pernambucana; no lado oposto, que não está inteiramente visível, até hoje existe uma unidade da Americanas onde eu, criança, pela primeira vez, conheci uma escada rolante. Não apenas nessa rua, como em várias outras do centro do Recife, são dezenas os pontos de comércio que se encontram fechados, vários deles são prédios que remontam ao século XIX e que precisam ser cuidados e preservados


Na primeira semana deste ano o Jornal Hoje, da Rede Globo, exibiu, de segunda à sexta-feira, uma série de reportagens intitulada Um olhar para o centro, na qual tratou de um drama urbano que, até onde eu sei, é enfrentado por vários países ao redor do mundo: o esvaziamento das áreas centrais e mais antigas de grandes cidades.

Começando pelo Rio de Janeiro – e a ele se seguiram, nesta ordem, o Recife, Belo Horizonte, Salvador e São Paulo -, o telejornal mostrou, de um modo geral, a degradação de edificações – com destaque para o patrimônio histórico edificado – e o fechamento de vários estabelecimentos comerciais, fechamentos esses que por si sós dizem muito da falta de fluxo de pessoas para que eles possam ser mantidos em funcionamento e para que o movimento das cidades provoque um efeito em cadeia, um efeito de chamamento de outros empreendimento para além do cunho comercial fortalecendo a organicidade desses espaços urbanos.

E por que tais áreas antigas das capitais brasileiras foram e/ou estão sendo esvaziadas? E como promover e o que propor para que essa situação seja superada?

A série do Jornal Hoje ouviu comerciantes, empresários, artistas, arquitetos, urbanistas, agentes públicos, entre outros envolvidos com as dinâmicas das tais cidades. De maneira quase que unânime as falas dos depoentes tocaram na falta de segurança e na ausência de moradores como principais fatores que provocaram a transformação dessas áreas urbanas em quase cidades fantasmas. Já no que diz respeito ao que fazer para reverter e/ou contornar essa realidade a maioria dos entrevistados disse da necessidade de o poder público oferecer incentivos fiscais para que os proprietários de imóveis fechados e/ou abandonados possam recuperá-los e alugá-los – a suspensão, durante alguns anos, da cobrança do Imposto Territorial e Predial Urbano (IPTU), por exemplo -; uma política de incentivos para que pessoas voltem também a querer morar nos centros mais antigos dessas cidades; e que o próprio poder público trate de instalar órgãos da administração – municipal, estadual e federal – em prédios que se encontram fechados.

De todas as capitais mostradas pelo telejornal na série Um olhar para o centro, eu só não conheço São Paulo; e conheço mais intimamente o Recife, porque moro em sua Região Metropolitana. E o que eu posso dizer a respeito desse assunto, que está na ordem do dia há pelo menos dez anos, é que ele é bem mais complexo do que aparenta.

Particularmente, eu não acredito, por exemplo, que abatimentos e/ou suspensão de cobrança do IPTU resolva o problema por si só. Também tenho dúvidas se uma campanha de atração de moradores para essas áreas ganharia muitos adeptos, ainda que os déficits habitacionais nas capitais continuem em níveis elevados. E é uma tristeza verificar nesses centros urbanos os contrastes das desigualdades sociais, onde em meio a tantos prédios desocupados e/ou abandonados, indivíduos vagam pelas ruas e dormem sob marquises e em barracas de camping armadas nas calçadas por não terem onde morar.

Quando eu, que tenho grande interesse por sítios urbanos antigos e por políticas de preservação do patrimônio histórico edificado das cidades, caminho por cenários do Rio de Janeiro, de Salvador, de São Luís, de Aracaju, de Manaus, de Belém, de Natal, de João Pessoa e do Recife e me deparo com prédios em petição de miséria e de ruína sinalizando que esse abandono significará que eles materialmente deixarão de figurar na memória urbana das cidades onde eles foram erguidos, eu sinto vontade de chorar. Eu lamento e fico muito, muito triste, porque isso me faz pensar que, efetivamente, não existe entranhado no seio de nossa sociedade, um sentimento de preservação e de respeito às coisas da nossa História; é como se tais edificações antigas absolutamente não nos dissesse respeito, de forma que, caso elas desapareçam do nosso campo de visão, não nos farão falta. E essa indiferença para com a conservação dos prédios antigos fazendo par com a fome sempre insaciável das grandes construtoras, que só ambicionam e promovem a gentrificação de espaços dos centros urbanos antigos que lhes interessam, são os principais inimigos dos nossos centros urbanos antigos, porque uma das justificativas para o tal abandono que eles atravessam é dizer que os prédios protegidos por leis de tombamento atrapalham o “progresso das cidades”.

São vários os fatores que levaram ao esvaziamento dos espaços antigos das capitais brasileiras. Como apontaram alguns dos entrevistados pelos repórteres do Jornal Hoje a falta de segurança é um deles; bem como o fortalecimento do comércio dos bairros suburbanos e de médias e pequenas cidades, onde lojas renomadas, que só existiam nas capitais, abriram filiais, levou muita gente a não mais ir aos grandes centros. Alinhe-se a isso mudanças de hábitos de como consumir. Tem o comércio dos subúrbios e das médias e pequenas cidades? Tem sim. Mas tem também um crescente número de consumidores que passaram a fazer compras pela internet, seja do que for; modalidade de consumo essa que teve o seu auge durante a pandemia da covid-19. E o que dizer da ida aos bancos, minha gente? Nós estamos vivenciando um tempo em que, em várias situações de consumo, nós precisamos fazer uso do dinheiro em cash, porque, além dos já conhecidos cartões de débito e crédito, nós efetuamos compras e pagamentos on-line usando o próprio telefone celular com os aplicativos dos bancos; e isso levou ao fechamento de muitas agências bancárias que faziam parte do cenário das nossas cidades.

Pelo menos um dos entrevistados da série Um olhar para o centro apontou a falta de vagas de estacionamento como um dos fatores inibidores da ocupação dos centros antigos. Sim, a abertura de estacionamentos e a construção de prédios-garagem foram um dos principais responsáveis pela demolição de exemplares do patrimônio histórico edificado brasileiro, mas eu não acredito que a alegada falta de vagas em estacionamentos seja algo fundamental numa realidade onde não são poucos os indivíduos que recorrem ao uso de carros e de motos acionados por aplicativos, também pelo telefone celular, deixando de recorrer a veículos próprios e ao sistema de transporte público de passageiros.

Tempo houve - e eu digo isso recorrendo à parte da minha memória pessoal, que eu sei que  também é igual a de muitos da minha geração e de lugar de nascimento - em que ir ao Recife era um acontecimento. Não se dizia ir ao Recife somente; dizia-se "ir à cidade", como se a capital fosse a única cidade de todo o Pernambuco e as outras apenas lugares sem nenhuma graça ou atrativos. Ia-se até lá para fazer compras de roupas e calçados em lojas famosas; e para comer nas lanchonetes mais faladas. Eu jamais vou esquecer o dia em que pela primeira vez pisei numa escada rolante - foi na Americanas da Rua do Hospício -, levado por Dona Luzinete, vizinha de minha avó Maria da Conceição, em Abreu e Lima; como também não esquecerei as ocasiões em que pela primeira vez entrei num shopping e num teatro - foram o Shopping Center Recife e o Teatro Valdemar de Oliveira - na companhia dos meus padrinhos Maria Lúcia e Aleixo Miranda; e de tantas outras primeiras experiências vivenciadas no Recife, que permanece sendo minha principal ideia de cidade depois do meu chão natal, que é Abreu e Lima.

Reocupar os centros das nossas capitais é um imperativo deste tempo de necessidades prementes e altamente informatizado, onde o virtual busca a todo momento nos tirar o gozo do mundo real redefinindo gostos, modos e hábitos de consumo e até mesmo interferindo em nossa relações interpessoais. Os espaços antigos das grandes cidades são lugares que devem ser valorizados e buscados como sítios urbanos detentores de muito do nosso passado citadino; e, como tais, eles não podem ser largados à própria sorte nem ser entregues àqueles que não pensarão duas vezes em destruí-los e reconstruí-los de outro modo e para outros fins.

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