Por Sierra
Na primeira semana deste ano
o Jornal Hoje, da Rede Globo, exibiu, de segunda à sexta-feira, uma série de
reportagens intitulada Um olhar para o centro, na qual tratou de um drama urbano que, até onde eu sei, é enfrentado por vários países ao redor do mundo:
o esvaziamento das áreas centrais e mais antigas de grandes cidades.
Começando pelo Rio de
Janeiro – e a ele se seguiram, nesta ordem, o Recife, Belo Horizonte, Salvador
e São Paulo -, o telejornal mostrou, de um modo geral, a degradação de
edificações – com destaque para o patrimônio histórico edificado – e o
fechamento de vários estabelecimentos comerciais, fechamentos esses que por si
sós dizem muito da falta de fluxo de pessoas para que eles possam ser mantidos
em funcionamento e para que o movimento das cidades provoque um efeito em
cadeia, um efeito de chamamento de outros empreendimento para além do cunho
comercial fortalecendo a organicidade desses espaços urbanos.
E por que tais áreas antigas
das capitais brasileiras foram e/ou estão sendo esvaziadas? E como promover e o
que propor para que essa situação seja superada?
A série do Jornal Hoje ouviu
comerciantes, empresários, artistas, arquitetos, urbanistas, agentes públicos,
entre outros envolvidos com as dinâmicas das tais cidades. De maneira quase que
unânime as falas dos depoentes tocaram na falta de segurança e na ausência de
moradores como principais fatores que provocaram a transformação dessas áreas urbanas em
quase cidades fantasmas. Já no que diz respeito ao que fazer para reverter e/ou
contornar essa realidade a maioria dos entrevistados disse da necessidade de o
poder público oferecer incentivos fiscais para que os proprietários de imóveis
fechados e/ou abandonados possam recuperá-los e alugá-los – a suspensão,
durante alguns anos, da cobrança do Imposto Territorial e Predial Urbano
(IPTU), por exemplo -; uma política de incentivos para que pessoas voltem também
a querer morar nos centros mais antigos dessas cidades; e que o próprio poder
público trate de instalar órgãos da administração – municipal, estadual e
federal – em prédios que se encontram fechados.
De todas as capitais mostradas
pelo telejornal na série Um olhar para o centro, eu só não conheço São Paulo; e conheço mais
intimamente o Recife, porque moro em sua Região Metropolitana. E o que eu posso
dizer a respeito desse assunto, que está na ordem do dia há pelo menos dez
anos, é que ele é bem mais complexo do que aparenta.
Particularmente, eu não
acredito, por exemplo, que abatimentos e/ou suspensão de cobrança do IPTU resolva
o problema por si só. Também tenho dúvidas se uma campanha de atração de
moradores para essas áreas ganharia muitos adeptos, ainda que os déficits
habitacionais nas capitais continuem em níveis elevados. E é uma tristeza verificar nesses centros urbanos os contrastes das desigualdades sociais, onde em meio a tantos prédios desocupados e/ou abandonados, indivíduos vagam pelas ruas e dormem sob marquises e em barracas de camping armadas nas calçadas por não terem onde morar.
Quando eu, que tenho grande
interesse por sítios urbanos antigos e por políticas de preservação do
patrimônio histórico edificado das cidades, caminho por cenários do Rio de
Janeiro, de Salvador, de São Luís, de Aracaju, de Manaus, de Belém, de Natal,
de João Pessoa e do Recife e me deparo com prédios em petição de miséria e de
ruína sinalizando que esse abandono significará que eles materialmente deixarão
de figurar na memória urbana das cidades onde eles foram erguidos, eu sinto
vontade de chorar. Eu lamento e fico muito, muito triste, porque isso me faz
pensar que, efetivamente, não existe entranhado no seio de nossa
sociedade, um sentimento de preservação e de respeito às coisas da nossa
História; é como se tais edificações antigas absolutamente não nos dissesse respeito,
de forma que, caso elas desapareçam do nosso campo de visão, não nos farão
falta. E essa indiferença para com a conservação dos prédios antigos fazendo
par com a fome sempre insaciável das grandes construtoras, que só ambicionam e promovem a gentrificação de espaços dos centros urbanos antigos que lhes interessam, são os principais
inimigos dos nossos centros urbanos antigos, porque uma das justificativas para
o tal abandono que eles atravessam é dizer que os prédios protegidos por leis
de tombamento atrapalham o “progresso das cidades”.
São vários os fatores que
levaram ao esvaziamento dos espaços antigos das capitais brasileiras. Como apontaram
alguns dos entrevistados pelos repórteres do Jornal Hoje a falta de segurança é
um deles; bem como o fortalecimento do comércio dos bairros suburbanos e de médias e pequenas cidades, onde lojas renomadas, que só existiam nas capitais, abriram filiais, levou
muita gente a não mais ir aos grandes centros. Alinhe-se a isso mudanças de
hábitos de como consumir. Tem o comércio dos subúrbios e das médias e pequenas cidades? Tem sim. Mas tem também um
crescente número de consumidores que passaram a fazer compras pela internet,
seja do que for; modalidade de consumo essa que teve o seu auge durante a
pandemia da covid-19. E o que dizer da ida aos bancos, minha gente? Nós estamos
vivenciando um tempo em que, em várias situações de consumo, nós precisamos
fazer uso do dinheiro em cash, porque, além dos já conhecidos cartões de débito
e crédito, nós efetuamos compras e pagamentos on-line usando o próprio telefone
celular com os aplicativos dos bancos; e isso levou ao fechamento de muitas agências bancárias que faziam parte do cenário das nossas cidades.
Pelo menos um dos entrevistados da série Um olhar para o centro apontou a falta de vagas de estacionamento como um dos fatores inibidores da ocupação dos centros antigos. Sim, a abertura de estacionamentos e a construção de prédios-garagem foram um dos principais responsáveis pela demolição de exemplares do patrimônio histórico edificado brasileiro, mas eu não acredito que a alegada falta de vagas em estacionamentos seja algo fundamental numa realidade onde não são poucos os indivíduos que recorrem ao uso de carros e de motos acionados por aplicativos, também pelo telefone celular, deixando de recorrer a veículos próprios e ao sistema de transporte público de passageiros.
Tempo houve - e eu digo isso recorrendo à parte da minha memória pessoal, que eu sei que também é igual a de muitos da minha geração e de lugar de nascimento - em que ir ao Recife era um acontecimento. Não se dizia ir ao Recife somente; dizia-se "ir à cidade", como se a capital fosse a única cidade de todo o Pernambuco e as outras apenas lugares sem nenhuma graça ou atrativos. Ia-se até lá para fazer compras de roupas e calçados em lojas famosas; e para comer nas lanchonetes mais faladas. Eu jamais vou esquecer o dia em que pela primeira vez pisei numa escada rolante - foi na Americanas da Rua do Hospício -, levado por Dona Luzinete, vizinha de minha avó Maria da Conceição, em Abreu e Lima; como também não esquecerei as ocasiões em que pela primeira vez entrei num shopping e num teatro - foram o Shopping Center Recife e o Teatro Valdemar de Oliveira - na companhia dos meus padrinhos Maria Lúcia e Aleixo Miranda; e de tantas outras primeiras experiências vivenciadas no Recife, que permanece sendo minha principal ideia de cidade depois do meu chão natal, que é Abreu e Lima.
Reocupar os centros das nossas capitais é um imperativo deste tempo de necessidades prementes e altamente informatizado, onde o virtual busca a todo momento nos tirar o gozo do mundo real redefinindo gostos, modos e hábitos de consumo e até mesmo interferindo em nossa relações interpessoais. Os espaços antigos das grandes cidades são lugares que devem ser valorizados e buscados como sítios urbanos detentores de muito do nosso passado citadino; e, como tais, eles não podem ser largados à própria sorte nem ser entregues àqueles que não pensarão duas vezes em destruí-los e reconstruí-los de outro modo e para outros fins.
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