Por Sierra
Eu já abordei mais de uma vez e sempre hei de abordar esse
acontecimento que para mim foi muito traumatizante. Trata-se do episódio em que
minha avó Maria da Conceição chegou a um ponto de sua vida em que a maioria dos
seus filhos não quis cuidar dela, porque, eu imagino, ela deixara de ser útil
para eles e se tornara um fardo muito pesado que eles até tinham disposição
para carregar, mas consideraram que o cômodo mesmo era deixá-la para quem
quisesse cuidar dela. Isso, somado às vezes em que eu fui incompreensivo com
ela, às vezes em que eu lhe dirigi palavras duras e às vezes em que eu de
alguma forma desrespeitei a sua velhice, me deixaram arrasado quando ela
partiu, internada num hospital. Eu chorei tanto. E me culpei tanto.
(Desculpem-me por estar chorando agora neste exato momento em que escrevo
isso.) Minha avó não merecia o desprezo que a maioria dos seus filhos lhe deu.
A experiência que eu tive nos anos finais de existência da
minha avó me fez rever a minha própria condição de filho de uma mulher já idosa
e de mim mesmo como um indivíduo que chegou aos 50 anos de idade e percebeu e
vivenciou episódios de etarismo, porque, numa sociedade onde só e somente só a
jovialidade, a juventude e a beleza física são valorizadas, os velhos figuram
como os indesejados e rejeitados.
Não é só o abandono e o não querer cuidar que caracterizam,
digamos assim, os maus-tratos dos idosos. Também são maus-tratos a exploração
financeira; o não alimentar correta e adequadamente; o não dar atenção ao que
eles falam; o acomodá-los no quarto lá nos fundos da casa para que as visitas
não os vejam; o desrespeito às preferências e aos gostos deles; a privação de
cuidados médicos; o não reconhecimento de seus saberes; o terror psicológico e
o amedrontamento; a chantagem emocional; o ficar encarregando eles de irem a
tais e tais lugares porque eles não pagam passagens em ônibus e são atendidos
em filas preferenciais; as agressões físicas e verbais; é o não deixar que eles
falem nem deem opinião; é mantê-los em cárcere privado; é menosprezá-los; é
dizer que o tempo deles já passou; etc.
Eu pensei em tudo isso quando vi as imagens chocantes que
circularam na imprensa e nas redes sociais, nesta semana, mostrando um idoso,
já morto, sedo conduzido numa cadeira de rodas por uma mulher, numa agência
bancária, no Rio de Janeiro, com o fito de assinar a liberação de um empréstimo
financeiro. Pelo que eu até agora li sobre o caso do senhor Paulo Roberto
Braga, de 68 anos de idade, a perícia não soube indicar se ele morrera horas
antes ou a caminho do banco. Independentemente disso, o fato expôs que ele se
encontrava bastante debilitado e que recebera tratamento médico havia poucos
dias; e que vivia num cômodo de cerca de quatro metros quadrados com paredes
sem reboco e chão de terra, frio, úmido e com cheiro de mofo, onde havia uma
cama improvisada sobre caixotes com um colchão velho e outros objetos, segundo
reportagem publicada pelo jornal O Globo ontem. A meu ver,
dizer que a mulher que acompanhou Paulo Roberto Braga até o banco tem problemas
psicológicos só piora a condição de abandono em que ele se encontrava, porque,
em tese, ele estava sob os "cuidados" de alguém que não tinha
capacidades física e mental plenas para tanto.
Tudo o que até agora foi apurado sobre o caso do senhor Paulo Roberto
Braga deixou ver como parte de nossa sociedade trata os idosos. E essa situação
não diz só respeito e nem está restrita apenas aos idosos pobres. Não, essa
situação horrenda e calamitosa é, infelizmente, verificada em todos os estratos
sociais. Faça você leitor, uma busca rápida na internet que você irá se deparar
com inúmeras reportagens narrando episódios de maus-tratos de idosos
praticados, na maioria das vezes, pelos próprios parentes deles; episódios
esses que revelam o grau de vulnerabilidade em que eles se encontram.
Não duvido que, assim como eu, você que agora que está lendo este
artigo tenha pelo menos um relato de maus-tratos a idosos ocorridos na
realidade em que você vive; relato ou relatos esses dos quais você tomou
conhecimento em sua família, na sua vizinhança e até mesmo presenciou em algum
outro lugar, como num ponto de ônibus, num hospital ou na fila de um
supermercado.
Crimes contra idosos são praticados todos os dias e em grandes
quantidades neste país. Crimes esses perpetrados diariamente em abrigos, nas
casas onde esses idosos moram e em vários outros locais. Crimes que
muitas vezes só são descobertos quando as vítimas já penaram por anos a fio
como pobres diabos aos quais não se devessem nenhuma consideração, nenhum
respeito e nenhuma humanidade, como se a eles restasse apenas um sofrer e um
fim de vida indigno, vergonhoso, humilhante e cruel.
Quando eu penso que existem por aí inúmeras Marias da Conceição e
milhares de Paulos Roberto Braga sendo humilhados, espancados, maltratados,
explorados e abandonados por seus entes queridos que, depois de subtraírem o
que de bom havia neles, os relegam à posição de rejeitos sociais, eu me sinto
um pouco menor como ser humano e fico a imaginar o que o futuro me reserva como
um idoso que daqui a pouco eu serei.
Séculos e séculos de processo civilizatório não conferiram a nós
um sentimento intenso e profundo que fosse suficiente para tratarmos os idosos
com todo o respeito e com toda a dignidade que eles merecem. E nos comportamos
como se não fôssemos nunca envelhecer. "Ah, mas existem idosos que não
valem nada, que são pessoas criminosas e ruins", você pode me dizer. Sim,
é verdade isso. Como também é verdade que velhice não faz zerar tudo o que
fizermos ao longo de nossa existência, como se a velhice significasse uma
absolvição e um renascimento ético e moral. Não, não se trata disso. O que
normalmente ocorre é que, independentemente da sua trajetória de vida, se o
indivíduo é bom ou mau, se é honesto ou desonesto, se é pobre ou rico, ele é
malquisto pura e simplesmente por sua condição de idoso, e, por isso, deve ser
rejeitado, evitado e descartado como um objeto que quebrou e/ou que ficou
ultrapassado e caiu em desuso.
Assim como não aprendemos a morrer no sentido de compreender que a
morte é nosso destino comum irrevogável, nós também não aprendemos a
envelhecer.
Eu não temo propriamente a velhice, porque eu sei que ninguém, absolutamente ninguém, seja de que estrato social for, escapará de algum tipo de maus-tratos. O que vez por outra me acomete é o olhar mergulhado no vazio, momentos em que eu, reflexivo, lamento profundamente que nós sejamos tão cruéis e desumanos como nós somos.
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