20 de abril de 2024

Sobre como nós maltratamos os idosos

 Por Sierra



Foto: Luís Cesar Silva
Cômodo onde vivia o idoso que foi levado morto a uma agência bancária.
 Quando eu penso que existem por aí inúmeras Marias da Conceição e milhares de Paulos Roberto Braga sendo humilhados, espancados, maltratados, explorados e abandonados por seus entes queridos que, depois de subtraírem o que de bom havia neles, os relegam à posição de rejeitos sociais, eu me sinto um pouco menor como ser humano e fico a imaginar o que o futuro me reserva como um idoso que daqui a pouco eu serei



Eu já abordei mais de uma vez e sempre hei de abordar esse acontecimento que para mim foi muito traumatizante. Trata-se do episódio em que minha avó Maria da Conceição chegou a um ponto de sua vida em que a maioria dos seus filhos não quis cuidar dela, porque, eu imagino, ela deixara de ser útil para eles e se tornara um fardo muito pesado que eles até tinham disposição para carregar, mas consideraram que o cômodo mesmo era deixá-la para quem  quisesse cuidar dela. Isso, somado às vezes em que eu fui incompreensivo com ela, às vezes em que eu lhe dirigi palavras duras e às vezes em que eu de alguma forma desrespeitei a sua velhice, me deixaram arrasado quando ela partiu, internada num hospital. Eu chorei tanto. E me culpei tanto. (Desculpem-me por estar chorando agora neste exato momento em que escrevo isso.) Minha avó não merecia o desprezo que a maioria dos seus filhos lhe deu.

A experiência que eu tive  nos anos finais de existência da minha avó me fez rever a minha própria condição de filho de uma mulher já idosa e de mim mesmo como um indivíduo que chegou aos 50 anos de idade e percebeu e vivenciou episódios de etarismo, porque, numa sociedade onde só e somente só a jovialidade, a juventude e a beleza física são valorizadas, os velhos figuram como os indesejados e rejeitados.

Não é só o abandono e o não querer cuidar que caracterizam, digamos assim, os maus-tratos dos idosos. Também são maus-tratos a exploração financeira; o não alimentar correta e adequadamente; o não dar atenção ao que eles falam; o acomodá-los no quarto lá nos fundos da casa para que as visitas não os vejam; o desrespeito às preferências e aos gostos deles; a privação de cuidados médicos; o não reconhecimento de seus saberes; o terror psicológico e o amedrontamento; a chantagem emocional; o ficar encarregando eles de irem a tais e tais lugares porque eles não pagam passagens em ônibus e são atendidos em filas preferenciais; as agressões físicas e verbais; é o não deixar que eles falem nem deem opinião; é mantê-los em cárcere privado; é menosprezá-los; é dizer que o tempo deles já passou; etc.

Eu pensei em tudo isso quando vi as imagens chocantes que circularam na imprensa e nas redes sociais, nesta semana, mostrando um idoso, já morto, sedo conduzido numa cadeira de rodas por uma mulher, numa agência bancária, no Rio de Janeiro, com o fito de assinar a liberação de um empréstimo financeiro. Pelo que eu até agora li sobre o caso do senhor Paulo Roberto Braga, de 68 anos de idade, a perícia não soube indicar se ele morrera horas antes ou a caminho do banco. Independentemente disso, o fato expôs que ele se encontrava bastante debilitado e que recebera tratamento médico havia poucos dias; e que vivia num cômodo de cerca de quatro metros quadrados com paredes sem reboco e chão de terra, frio, úmido e com cheiro de mofo, onde havia uma cama improvisada sobre caixotes com um colchão velho e outros objetos, segundo reportagem publicada pelo jornal O Globo ontem. A meu ver, dizer que a mulher que acompanhou Paulo Roberto Braga até o banco tem problemas psicológicos só piora a condição de abandono em que ele se encontrava, porque, em tese, ele estava sob os "cuidados" de alguém que não tinha capacidades física e mental plenas para tanto.

Tudo o que até agora foi apurado sobre o caso do senhor Paulo Roberto Braga deixou ver como parte de nossa sociedade trata os idosos. E essa situação não diz só respeito e nem está restrita apenas aos idosos pobres. Não, essa situação horrenda e calamitosa é, infelizmente, verificada em todos os estratos sociais. Faça você leitor, uma busca rápida na internet que você irá se deparar com inúmeras reportagens narrando episódios de maus-tratos de idosos praticados, na maioria das vezes, pelos próprios parentes deles; episódios esses que revelam o grau de vulnerabilidade em que eles se encontram.

Não duvido que, assim como eu, você que agora que está lendo este artigo tenha pelo menos um relato de maus-tratos a idosos ocorridos na realidade em que você vive; relato ou relatos esses dos quais você tomou conhecimento em sua família, na sua vizinhança e até mesmo presenciou em algum outro lugar, como num ponto de ônibus, num hospital ou na fila de um supermercado.

Crimes contra idosos são praticados todos os dias e em grandes quantidades neste país. Crimes esses perpetrados diariamente em abrigos, nas casas onde esses idosos moram  e em vários outros locais. Crimes que muitas vezes só são descobertos quando as vítimas já penaram por anos a fio como pobres diabos aos quais não se devessem nenhuma consideração, nenhum respeito e nenhuma humanidade, como se a eles restasse apenas um sofrer e um fim de vida indigno, vergonhoso, humilhante e cruel.

Quando eu penso que existem por aí inúmeras Marias da Conceição e milhares de Paulos Roberto Braga sendo humilhados, espancados, maltratados, explorados e abandonados por seus entes queridos que, depois de subtraírem o que de bom havia neles, os relegam à posição de rejeitos sociais, eu me sinto um pouco menor como ser humano e fico a imaginar o que o futuro me reserva como um idoso que daqui a pouco eu serei.

Séculos e séculos de processo civilizatório não conferiram a nós um sentimento intenso e profundo que fosse suficiente para tratarmos os idosos com todo o respeito e com toda a dignidade que eles merecem. E nos comportamos como se não fôssemos nunca envelhecer. "Ah, mas existem idosos que não valem nada, que são pessoas criminosas e ruins", você pode me dizer. Sim, é verdade isso. Como também é verdade que velhice não faz zerar tudo o que fizermos ao longo de nossa existência, como se a velhice significasse uma absolvição e um renascimento ético e moral. Não, não se trata disso. O que normalmente ocorre é que, independentemente da sua trajetória de vida, se o indivíduo é bom ou mau, se é honesto ou desonesto, se é pobre ou rico, ele é malquisto pura e simplesmente por sua condição de idoso, e, por isso, deve ser rejeitado, evitado e descartado como um objeto que quebrou e/ou que ficou ultrapassado e caiu em desuso.

Assim como não aprendemos a morrer no sentido de compreender que a morte é nosso destino comum irrevogável, nós também não aprendemos a envelhecer.

Eu não temo propriamente a velhice, porque eu sei que ninguém, absolutamente ninguém, seja de que estrato social for, escapará de algum tipo de maus-tratos. O que vez por outra me acomete é o olhar mergulhado no vazio, momentos em que eu, reflexivo, lamento profundamente que nós sejamos tão cruéis e desumanos como nós somos.

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