16 de novembro de 2024

Lutando contra a ignorância

 Por Sierra


Só sei que nada sei.

Frase atribuída ao filósofo Sócrates



                                                                             Especialmente para Gustavo Henrique


O pensador, de Auguste Rodin (Imagem: Internet)
É preciso ter força e determinação para conseguir se livrar das garras atrozes da ignorância que estão sempre por aí à nossa espreita



Assim como eu, você certamente já se deparou com tipos que costumam se expressar como se de tudo soubessem e que agem assim com uma soberba e uma arrogância quase que insuportáveis. No mais das vezes esses indivíduos se comportam como donos da verdade e dificilmente dão o braço a torcer e admitem contestação e, o que é mais grave, que cometeram equívocos e que estão errados.

Agora me digam: quantas foram as vezes em que você esteve cara a cara com alguém que lhe falou assim: "Eu tenho vergonha da minha ignorância. Eu quero lutar contra isso. É muito ruim você não saber e não compreender várias coisas da vida"? Pois foi desse jeito que um conhecido meu iniciou uma conversa comigo, sabendo ele que eu sou um leitor voraz e que estou sempre adquirindo livros.

Quando o meu interlocutor me falou de sua luta contra a sua ignorância e me disse que, nessa jornada de busca do conhecimento e do esclarecimento, estava fazendo aquisição de livros, eu lhe falei, primeiro, que ficara espantado e impressionado com o seu comportamento de admitir que tem fome e sede de saber e falar isso sem hesitar, algo raríssimo de acontecer, sobretudo num tempo internetalizado em que nós vivemos, onde proliferam os casos de burrices e ignorâncias especializadas, sobretudo nas redes sociais. Depois, eu falei para ele que fosse com cautela ao pote e ao prato do conhecimento, porque, embora o seu comportamento fosse por demais louvável e merecedor de aplausos e estímulos, ele poderia acabar fazendo escolhas de leituras que o seu histórico de não-leitor não suportaria - ele me dissera que comprara livros de filosofia -, que era provável que ele não conseguisse absorver e compreender de todo os textos que começara e/ou começaria a ler, porque tais narrativas costumam ser densas, pesadas, herméticas e difíceis mesmo para quem tem um passado de leituras, o que não era o caso dele. E eu lhe disse isso falando da minha própria experiência como leitor.

Dias depois dessa nossa iluminadora conversa, o meu destemido e obstinado combatente da ignorância me procurou e me confidenciou que eu acertara na avaliação: ele teve de deixar uns livros de lado porque não estava conseguindo compreender e acompanhar a leitura. Aconselhei-o a não desistir do seu propósito dizendo a ele que um leitor não se forma da noite para o dia; que a leitura e a compreensão de certos assuntos e obras requerem que o leitor já tenha algum repertório, alguma bagagem sobre o tema, como se fosse um pré-requisito para alcançar e avançar para aquele estágio, do contrário, o esforço seria vão; e lhe recomendei que fosse com paciência, que não desistisse da batalha, que diversificasse suas leituras a fim de ampliar tanto a sua gama de conhecimentos como a sua compreensão do mundo que nos rodeia.

Numa das conversas com esse meu interlocutor eu lhe narrei sobre o tempo em que eu me dei conta, do alto dos meus 23 anos de idade, que eu era um saco quase vazio de conhecimento; e que só me tornei um leitor de fato, um leitor voraz quando ingressei na faculdade, porque, além de ter de cumprir as lições e os estudos do meu curso, eu me deparei com colegas de turma que eram brilhantes e que, em termos de  de conhecimento adquirido com a prática da leitura, estavam a anos-luz de distância de mim, algo que eu logo notei em nossas rodas de conversa. É claro que, frente à minha ignorância em relação a tais colegas, eu de pronto compreendi que o saber que eles esboçavam certamente era devido às condições socioeconômicas em que parte deles, pelo menos, vivia, realidade essa bem distante da minha; contudo, eu não tomei isso como explicação fundamental para o meu atraso intelectual em relação a eles; e comecei a mergulhar de cabeça no universo da leitura; e deixei que inoculassem em minhas veias o vírus do querer e da vontade de saber; e segui em frente, sem pestanejar e sem fraquejar. E hoje, olhando para trás, eu tenho a firme e plena convicção de que foi a grande escolha que eu fiz na minha vida, porque ela me proporcionou o muito do bom que aconteceu comigo por causa da bagagem intelectual que eu fui acumulando ao longo dos anos desde então. Ler, para mim, é um exercício necessário para que eu me veja pleno no mundo.

Há quem diga que ocorrem certos acontecimentos que são definidores de uma trajetória e de um destino, seja para o bem, seja para o mal. Enfrentar a força descomunal e assombrosa da ignorância e da irracionalidade requer de nós uma determinação e um esforço absurdos. Quando eu entro na minha biblioteca e passo em vista todos os livros que eu já li e os tantos que me faltam ler, eu sinto um prazer imenso e indescritível. E esse prazer, eu bem sei, é um dos alicerces que me sustentam e que me mantém firme num mundo em que tantos fazem da ignorância arma e escudo para a prática de desumanidades. E o pior dos ignorantes é aquele que faz opção pela ignorância; é aquele que escolhe ser cativo da ignorância; é aquele, enfim, que faz da ignorância uma virtude.

9 de novembro de 2024

Personas urbanas (33)

Por Sierra


Querem acabar comigo. 
Nem eu mesmo sei por quê [...]
Querem acabar comigo.
Isso eu não vou deixar.

                                        Querem acabar comigo. Roberto Carlos





Serenidade e raiva. Não é do meu feitio, eu não costumo me arrepender por ter dito a alguém o que eu disse num momento de raiva, porque, habitualmente, eu digo nessas horas o mesmo que eu diria num instante de serenidade.

Para mim, deixar sempre as coisas em pratos limpos é um mandamento existencial; é condição sine qua non para que eu fique em paz comigo e, se for possível, com quem quer que seja que esteja ao meu redor ou alhures. Pensando assim e agindo assim é que eu tenho conseguido atravessar o por vezes sufocante e engessador cotidiano.

Não é nada fácil lidar com pessoas como eu, que sou e/ou costumo ser assertivo para dizer o que verdadeiramente vai dentro de mim nem sempre pesando as consequências que isso trará. Eu sei que esse tipo de comportamento não é adequado num mundo que preza tanto a simulação e as falsas aparências. Contudo, eu não tenho por que agir de outra forma, porque eu ensinei à minha vida que quanto mais nós nos escondemos e negamos o que realmente somos e pensamos nós podemos até agradar e ficar de bem com uns e outros, mas nunca faremos o grande bem maior que é ficarmos em paz com nós mesmos, com nossas necessidades pessoais, como nossa ideia de liberdade.

Certamente você mais de uma vez passou pela situação de tentarem lhe constranger colocando você em enrascadas e/ou ciladas, digamos assim. Quem costuma armar situações embaraçosas e/ou vexaminosas geralmente possui um histórico dessa prática. São indivíduos  do tipo que sentem um enorme prazer em buscar de alguma forma humilhar e menosprezar alguém; e esse sadismo é constantemente retroalimentado porque esses sujeitos, no mais das vezes, costumam dispor de uma espécie de claque, de plateia que habitualmente aplaude ou se cala - e, quase sempre, quem cala, consente - diante do que eles fazem. 

Acontece que existem por aí também - talvez em menos número em relação aos sádicos - os que se recusam terminantemente a ouvir o chiste, a provocação, o desaforo, o xingamento, a piada, a tentativa de humilhação e o dito escarnecedor e ficarem calados. Eu, pelo menos, costumo ser assim. E quem age dessa forma tende a ser malvisto, o que é um paradoxo, um contrassenso. E por quê? Porque o costumeiro, o "normal" é que o humilhado, o ofendido, o verbalmente massacrado ponha o rabinho entre as pernas, amargue o dissabor, engula o desaforo a seco e figure como mais uma vítima do escárnio e da risadagem que descamba para a humilhação total.

Mas comigo não, violão. Eu não tenho como não deixar de ser alvo dessas criaturas abomináveis que são os sádicos, porém, eu não deixo a coisa ficar por isso mesmo, eu não admito sempre o "faz de conta que não foi comigo" e nem o "eu nem ouvi", porque tem situações que o melhor comportamento é o rebate; é o não deixar barato; é o dizer "não é assim, não, fulano, que a banda toca"; é o devolver a ofensa em igual ou maior medida; é repreender o interlocutor; é reagir. Não, gente, não dá para viver o tempo todo com sangue de barata, como se nós estivéssemos anestesiados e indiferentes a tudo de ruim que nos dirigem.

Houve mais de uma vez em que eu me calei e saí de fininho, porque o meu senso de preservação me fez ver que reagir naquele momento poderia me botar a perder. E, realmente, há situações em que é melhor se calar e digerir o que lhe disseram em tom ofensivo e humilhante. A razão costuma dizer que, nesses enfrentamentos, eu é que tenho a perder e não o meu oponente, porque quem, como eu disse, mete você em enrascadas e ciladas, tem um histórico terrível e dificilmente irá receber um corretivo que irá freá-lo permanentemente.

Nesse meu exercício de sobrevivência eu reconheço que de algum modo esse tipo de enfrentamento - e são tantos os enfrentamentos que surgem em nossa vida, não é? - criou em mim, em meu pensamento, melhor dizendo, uma espécie de crosta, de carapaça que me protege de certas tentativas de me derrubarem por meio de palavras. Vocês devem ter imaginado que não foi por acaso que eu resolvi tocar nesse assunto hoje. Ao longo desses meus 50 anos de existência eu já ouvi  - e ouço - muitas palavras ruins que a mim foram dirigidas, porque os haters, minha gente, não surgiram e nem nasceram na esteira da internet e das redes sociais: eles sempre existiram.

Eu não sou imbatível e nem invencível. Absolutamente. Só não pensem que eu sou do tipo que engole todo tipo de sapo e fica calado. Serenidade e raiva andam de mãos dadas comigo. E, no embalo do que diz a canção, eu preciso, por fim, avisar aos haters, virtuais ou não, que eles podem continuar tentando acabar comigo, mas isso eu não vou deixar que eles façam.

2 de novembro de 2024

Uma transformação silenciosa de nossas cidades

 Por Sierra

 

Imagem:Internet
Algumas transformações pelas quais as cidades passam não são vistas de maneira imediata pelos nossos olhos, porque elas vão se processando de modo quase que invisível 



Nem todas as mudanças e transformações que se operam nos espaços urbanos são inteiramente vistas assim, pelos nossos olhos, não são percebidas e notadas de imediato como, por exemplo, são vistas e notadas obras de pavimentação de ruas e a construção de um prédio. Isso se dá porque, no universo citadino, mudanças e transformações se operam não somente no corpo físico da cidade propriamente dita, mas também podem ocorrer no modo como os seus habitantes se comportam e lidam com ela.  E isso, esse comportamento não necessariamente chega à nossa visão, como, por exemplo, uma festa que anualmente é realizada em determinado local, o que nos leva a inferir que certos movimentos e transformações que ocorrem nas cidades vão-se processando de maneira silenciosa e imperceptível, em sua inteireza, aos nossos olhos.

Eu fiz essas considerações quando, na semana passada, eu tomei conhecimento de dados estatísticos divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que revelaram que 13,7 milhões de pessoas estão morando sozinhas no Brasil, o que corresponde a 18,9% dos mais de 72 milhões de residências do país. É um número realmente espantoso quando examinado sob qualquer prisma; e que ensejou, por parte de analistas, algumas possíveis explicações para essa realidade.

O que é que explicaria essa quantidade tão elevada de pessoas morando sozinhas, uma tendência que, até onde eu sei, não é uma exclusividade da sociedade brasileira de então? Bem, segundo algumas matérias que eu li e pelo menos um vídeo que eu vi, analistas apontaram como explicações imediatas para isso o envelhecimento da população e a escolha que muitos indivíduos estão fazendo de não se casar e nem ter filhos.

É claro que tais explicações dizem muito, mas elas não dizem tudo, evidentemente. Muitas pessoas podem estar morando sozinhas porque os filhos cresceram e ganharam vida própria, deixando as casas dos pais ou do pai ou da mãe, porque eles se separaram ou um dos cônjuges faleceu. Pode ser que a opção por uma vida celibatária não seja necessariamente uma postura de quem não acredita na instituição casamento, e sim uma escolha muito racional de quem põe os gastos na ponta do lápis e se certifica de que não tem condições financeiras de sustentar uma vida a dois, e, menos ainda, se o plano do casal for ter um ou mais filhos. Sem falar que existem pessoas que se casam e vivem em casas separadas, sem manter um convívio diário e permanente sob um mesmo teto.

É fato que a viuvez não determina que o viúvo e/ou viúva não pode mais se casar. Ocorre que, muitos são os casos em que, uma vez viúvos, homens e mulheres resolvem não mais se casar e passam a gozar suas vidas de maneira solitária, ao menos no interior de suas residências.

Já quanto à escolha de não ter filhos ela não está necessariamente só ligada aos custos e gastos que uma prole implica. Tanto isso é verdade que não são poucas as pessoas bem-sucedidas financeiramente que não querem ser pais nem mães e pronto.  Conheço pessoas que não puseram isso na ponta do lápis; elas dizem que procederam assim porque não se veem colocando no mundo uma criança para enfrentar uma sociedade que, além de ser violenta, preconceituosa, intolerante e cruel, não cuida bem do meio ambiente.

Os números divulgados pelo IBGE revelaram uma faceta, uma entre as tantas que se processam no universo desigual e nada uniforme de nossas cidades. Não sei se tais dados estatísticos fizeram recortes dos níveis socioeconômicos de todas essas pessoas que estão morando sozinhas, porque eu compreendo que isso também é importante como um dado social, sobretudo se nos ativermos às condições em possam estar vivendo idosos solitários a fim de que sejam implementadas políticas públicas de acompanhamento e até amparo a esse grupo da população, visto que fazemos parte de uma sociedade que endeusa a juventude e que abomina e maldiz a velhice.

Os urbanistas, os engenheiros e os arquitetos dispõem de grande capacidade para conceber e planejar todo um traçado urbano e mesmo pensar em suas transformações ao longo do tempo. O que eles não têm como conceber, desenhar e planejar são as interações e os modos de estar, encarar e experienciar as cidades que os seus habitantes vivenciam e invisivelmente transformam.

26 de outubro de 2024

Nelson Leirner: ludicidade, questionamento e protesto

Por Sierra



Fotos: Arquivo do Autor
Dono de um aguçado senso crítico não só quanto ao fundamento e ao status da arte, Nelson Leirner mantinha acesa permanentemente acesa a chama de um protesto enfocando o domínio e/ou predomínio cultural e geopolítico do mundo pelos Estados Unidos. Aqui nada de se filiar ao lema "arte pela arte"


 

Não é de hoje que o princípio da "arte pela arte" é posto em discussão quando se procura examinar determinados personagens da História da Arte e o legado de suas produções. A interpretação - e o exame - de uma obra de arte, no mais das vezes, costuma ser relacionada com a própria persona do artista. Faz-se uma avaliação não somente da obra em si como também do modo como o seu criador está posto no mundo como artista e como cidadão.

Seria um tanto quanto absurdo e/ou desprovido de um olhar realmente perspicaz e criterioso considerar que existem artistas que não dão à sua arte, ao seu fazer artístico um, digamos, cunho e/ou destino outro que não seja unicamente de produzir algo que ele compreende que é uma expressão artística, mas sem, no entanto, conferir a ela um caráter finalístico? Eu acredito que não, porque eu acredito que existam por aí, aos montes, artistas que fazem arte tão somente como um produto venal, sem adicionar  a ela qualquer intenção de cunho, por assim dizer, questionador da sua razão de ser arte. É como se o artista, enquanto tal, não compreendesse sequer o que lhe leva a fazer o que ele faz: não há questionamento, não há proposta de discussão e não há uma intenção de lançar uma indagação e um fazer pensar com a arte que ele produz, como se ela fosse algo destinado a servir só e somente só como um objeto de decoração.












Faz um bom número de anos que, pela primeira vez, eu entrei em contato com trabalhos do Nelson Leirner. E isso aconteceu durante uma exposição havida no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (MAMAM), no Recife, E eu recordo que o primeiro impacto e impressão que eu tive, ao meu encontrar frente a frente com uma obra desse renomado artista brasileiro, foi me alegrar e achar divertido e lúdico aquilo, aquela superfície que os meus olhos viam, Sem cabedal algum para mirar a obra com olhos de uma crítico de arte, porque eu era só e somente só alguém que gostava - e que continua gostando - de expressões artísticas e que nutre muito interesse por museus e instituições do gênero, eu olhei para o que estava exposto no MAMAM sem dimensionar e/ou bem compreender - é exatamente esta a palavra: compreender - aquilo.














No último dia 4 de outubro eu fui até a Caixa Cultural, do Recife, prestigiar a exposição "Parque de diversões", o que foi o meu reencontro, digamos assim, com o universo artístico de Nelson Leirner desde aquele meu primeiro contato havido no MAMAM. E se o correr dos anos, desde então, não fez de mim um crítico de arte, me muniu, pelo menos, de algum conhecimento para interpretar, ainda que sem grandes expansões avaliativas, o que os meus olhos agora viam.











Nelson Leirner, como artista, tinha um senso questionador sobre o caráter, o fundamento e o status da arte e do fazer artístico bastante aguçado. O próprio princípio de antiarte que ele mantinha e usava como uma espécie de lema e bandeira de sua condição de artista é, a meu ver, uma marca distintiva dele que deixava deveras claro que, no seu caso, não dava, de jeito nenhum, para se filiar aos que fazem "arte pela arte".








Há no conjunto da obra de Nelson Leirner - e eu digo isso me referindo obviamente não à sua totalidade e sim às obras que eu já vi - uma chama de questionamento e de protesto permanentemente acesa. A meu ver, o cunho daquilo que eu enxergo como lúdico em par com o apelo visual do multicolorido de que muitas obras estão imbuídas, encerram uma militância muito firme, inflexível e docilmente feroz. O lúdico e o multicolorido são como que artimanhas e meios de atrair o espectador para perto a fim de que ele veja com bastante atenção o que está claramente exposto e exibido ali; e, uma vez que o espectador atendeu ao chamado, que ele encare com firmeza todas as conotações possíveis que cada obra daquela possui.






Enquanto eu ia fazendo as minhas interpretações de algumas das obras expostas em "Parque de diversões, cuja curadoria coube a Agnaldo Farias, ao mesmo tempo eu fui me dando conta de que, tanto quanto - ou até mais - de um chamamento para o seu trabalho o que, talvez, efetivamente Nelson Leirner esperava de todo e de cada um apreciador de suas obras era que todos e cada uma deles aderissem, numa espécie de filiação, ao seu mondo de enxergar e de estar no mundo.

19 de outubro de 2024

As cidades indesejadas

 Por Sierra



Imagem: iStock/Gladston Barreto
Erguidas em terrenos os mais variados, as "cidades indesejadas" marcam de modo inescapável a imensa paisagem urbana brasileira. E, aqui e ali, elas vão avançando de modo quase que incessante sobre morros e encostas, mas também erguidas sobre palafitas à beira de rios e mesmo sob viadutos, entre outros lugares, porque, assim como ocorre no mundo animal, os seres humanos têm uma enorme necessidade de buscar um local onde se abrigar e se proteger das intempéries e de outras ameaças à sua integridade física

Normalmente, aqui neste país, as questões que dizem respeito às cidades e ao urbanismo só ganham pautas e despertam o interesse do grande público a cada quatro anos, porque é de quatro em quatro anos que ocorrem eleições para escolha de prefeitos e vereadores.

Olhar  criticamente para os cenários urbanos somente em lapsos temporais de um quadriênio é uma de nossas tragédias como sociedade. Os problemas de uma cidade, as precariedades de uma cidade, os transtornos de uma cidade, as deficiências de uma cidade, as demandas de uma cidade, os desafios de uma cidade, os planejamentos de uma cidade não podem e não devem ser expostos e discutidos somente a cada quatro anos

As cidades, como organismos dinâmicos, sofrem, por vezes, alterações consideráveis, quer seja em suas fisionomias propriamente dita, quer seja no modo como os seus habitantes lidam com elas. Você que agora está lendo este artigo já ouviu, eu presumo, falar em  "cidades fantasmas" ou mesmo em "bairros fantasmas". Esses lugares existem sim. Esses espaços urbanos revelam quão imperiosa pode ser uma realidade que provoca a evasão e abandono de certos territórios citadinos.

E por que isso acontece? O que leva pessoas a deixarem de ocupar tal e tal lugar de uma cidade temporária ou definitivamente? Várias podem ser as causas que provocam isso: a ocorrência de um desastre natural; o aumento expressivo dos preços dos aluguéis ou de compra e venda de imóveis; a carência e/ou grande falta de itens considerados básicos para as coisas da vida prática, como hospitais, escolas, supermercados, bancos, creches e transporte público de passageiros, abastecimento de água e de energia elétrica; conflitos bélicos; acidentes nucleares; afundamento do solo; disputas entre grupos criminosos; etc. 

E o que dizer daqueles pedaços da cidade - as muito conhecidas favelas que, de uns tempos para cá, uns e outros passaram a chamar de comunidades - que o poder público municipal e o Estado parecem não querer enxergar ou viabilizar? Por que essa manutenção da inviabilidade das favelas, territórios esses que eu chamo de "cidade à parte" e de "cidade indesejada"? Nesses lugares permanecem - para usar uma expressão do arquiteto e urbanista Lucio Costa - as "marcas tenazes do pauperismo"; quais sejam: o abandono, o descaso e a exclusão.

Por onde se ande por este país imenso nós nos deparamos com "cidades indesejadas" com os mais variados aspectos e dimensões - algumas delas são imensas, gigantescas, deixando mais do que evidente que é impossível não enxergá-las e fazer de conta que elas não existem. E a existência de tais espaços urbanos prenhes de necessidades de toda ordem revela que a expansão urbanística dos nossos núcleos citadinos historicamente não conseguiu tirar de nossas cidades o seu fundamento de exclusão dos mais pobres  e vulneráveis; em essência as nossas urbs - mesmo as que foram planejadas,  como Brasília e Belo Horizonte - empreenderam um percurso e um destino, ao longo de pouco mais de 500 anos de implantação de um processo civilizador europeu, que primaram em fazer delas espaços que, por razões de ordem racial, preconceituosa e elitista, não poderiam e não tinham por que, digamos assim, abrigar e oferecer conforto e dignidade a "todo tipo de gente". Daí por que tudo isso, em par com os fossos estabelecidos pelas desigualdades socioeconômicas - reflexo, também, eu não duvido disso, do nosso passado escravagista -, viram nascer, crescer e se multiplicar as ditas "cidades indesejadas".

Erguidas em terrenos os mais variados, as "cidades indesejadas" marcam de modo inescapável a imensa paisagem urbana brasileira. E, aqui e ali, elas vão avançando de modo quase que incessante sobre morros e encostas, mas também erguidas sobre palafitas à beira de rios e mesmo sob viadutos, entre outros lugares, porque, assim como ocorre no mundo animal, os seres humanos têm uma enorme necessidade de buscar um local onde se abrigar e se proteger das intempéries e de outras ameaças à sua integridade física.

A crise habitacional que assola este país, a bem da verdade, remonta há pelo menos 136 anos, se tomarmos como referência o ano de 1888, quando foi decretada a abolição da escravatura e milhares de negros foram largados à própria sorte em várias de nossas cidades. E essa realidade de déficit habitacional continua muito acentuada porque a demanda permanece bastante alta.

A forma, a estrutura, o espaço ocupado e a dimensão das "cidades indesejadas" variam; o que não se altera nelas é o drama social que esmaga a dignidade de todos e de cada um de seus habitantes que perseguem o ideal de ser vistos como cidadãos de fato e não como meros números de estatísticas.

12 de outubro de 2024

A propósito de uns leilões dos quais eu venho participando

 Por Sierra


Foto: Arquivo do Autor
Alguns dos itens que compuseram parte dos lotes que eu arrematei no leilão mais recente do qual eu participei. Cada um tem o prazer que merece e/ou que está ao seu alcance



Foi durante a época da faculdade que eu me tornei de fato um leitor; foi naquele período que eu fui picado por um bichinho que inoculou em mim a ânsia do querer saber. E a partir dali o meu contato com os livros ganhou uma dimensão e um apego inauditos.

Levado pela necessidade e pelo imperativo de minha formação universitária em par com a enorme vontade que se apoderou de mim com vistas a tentar preencher algumas lacunas deixadas por uma formação escolar basilar bastante precária, algo que seguramente é o único acontecimento que eu lamento ter ocorrido em toda a minha vida até aqui, eu passei a frequentar com assiduidade bibliotecas, livrarias e sebos, adquirindo, quando o meu orçamento permitia, livros e revistas. E, quando a minha vida profissional me proporcionou um melhor ganho salarial, eu também passei a percorrer sebos e livrarias de outros lugares do país para os quais eu viajava, bem como eu comecei a fazer compras de livros pela internet. E, dessa forma - para além das livrarias e dos sebos do Recife, que é a cidade da minha formação intelectual -, eu fui constituindo a minha biblioteca, que também é acolhedora, digamos assim, de publicações que eu ganhei e mesmo herdei de algumas pessoas, como Braz Magalhães Filho, Edson Nery da Fonseca e Marco-Aurélio de Alcântara.

Anos atrás, numa dessas buscas por livros - eu queria porque queria adquirir uma primeira edição do Eu, de Augusto Anjos -, eu acabei conhecendo Otávio Marcelino através do site www.estantevirtual.com.br. Pois bem, eu adquiri com esse camarada - e a preço de ouro - um exemplar, em muito bom estado, do livro daquele poeta paraibano, uma da maiores alegrias que eu já senti até hoje: para vocês terem uma ideia, eu fui retirar a encomenda na agência dos Correios aqui na Ilha de Itamaracá, onde eu moro, pela manhã e só tive coragem de abrir o pacote à noite, porque eu estava com receito de ter sido enganado e, claro, perdido um dinheirão. Aí eu cerimoniosa e calmamente abri o pacote; e, ao ter o livro tão desejado em minhas mãos, eu cheguei mesmo a encostá-lo ao peito gozando de um prazer e de uma satisfação realmente indescritíveis. 

Retomando o fio da narrativa . Desse contato com o Otávio Marcelino ocorreu a minha entrada em outro terreno de possibilidade de aquisição de livros: um site de leilões: o www.leiloesbr.com.br. Um site no qual o próprio Otávio Marcelino também fazia e faz leilões.

Pronto, gente, desde que eu comecei a participar dos leilões naquele site, a minha biblioteca - como, aliás, toda biblioteca que se preze, porque biblioteca é como uma árvore que não para de crescer - cresceu e cresceu e vem crescendo. E eu devo-lhes dizer que cresceu não somente o meu acervo de livros, como também o de dvd's, cd's e lp's, porque, além de livros, o site leiloa esses itens que eu mencionei e selos, moedas, cédulas, cartões-postais, fotografias, esculturas, etc., etc. É um verdadeiro paraíso para leitores e colecionadores.

Na última quarta-feira eu fui retirar nos Correios a caixa contendo os nove lotes do leilão mais recente do qual eu participei, sendo sete de livros e dois de cd's. Devo-lhes dizer ainda que normalmente eu sou tomado por duas grandes satisfações quando participo de tais leilões: uma quando eu consigo arrematar os lotes desejados; e outra quando o pacote chega e eu abro a caixa. Sempre e sempre a alegria se renova quando eu faço isso - a caixa que eu fui pegar na quarta-feira, eu abri hoje pela manhã: cheguei mesmo a filmar esse exercício de prazer e satisfação para compartilhá-lo nas minhas redes sociais.

Não vou encerrar este artigo sem fazer um alerta: se você é do tipo compulsivo, do tipo desses que vêm apostando nas chamadas bets do momento, perdendo o que têm e o que não têm, e se interesse em querer participar desses leilões dos quais eu venho participando, vá com calma. Não entre ali para arrematar toda e qualquer coisa, só o que for realmente do seu interesse e, claro, couber no seu orçamento. Outra coisa: lembrem-se de que, além do valor do lote arrematado, você pagará uma taxa do leiloeiro e a taxa de envio, caso você não resida na cidade - ou próximo a ela - onde o leilão tem sua base e você não possa ir pegá-lo pessoalmente. No mais, aproveite, porque formar um acervo, como sabe todo amante de livros, discos, dvd's e etc., é bom demais.

Dou-lhe uma. Dou-lhe duas. Dou-lhe três. Vendido!

5 de outubro de 2024

Muito perto do fogo

 Por Sierra



Fotos: Arquivo do AutorTanto quanto num prazer estético a exposição de fotografias de Ana Araújo me fez mergulhar num mar de saudosas lembranças do tempo de minha infância, quando as noites de São João eram um acontecimento maravilhoso nas ruas de minha cidade natal, Abreu e Lima


Quantas lembranças cabem numa fotografia? O que foi que a lente da câmera ampliou? O que há por trás de cada registro fotográfico? Todas essas indagações e outras mais me chegaram quando, no último dia 2 de agosto, eu fui prestigiar a exposição  A festa do fogo - Retrato de um forró no meu sertão, da Ana Araújo, que estava em cartaz, numa das salas da Torre Malakoff, no Bairro do Recife.

Com curadoria de Maria do Carmo Nino, a exposição é um encanto para os olhos e uma verdadeira celebração dos festejos juninos. É uma celebração da festa de São João e também uma declaração de amor ao lúdico, à dança, ao forró, a Tacaratu, cidade do interior pernambucano, e à vida que o tempo todo arde numa chama que nós queremos e precisamos ter sempre acesa.











A partir do momento em que eu entrei em contato com a obra de Gilberto Freyre, eu, que me graduei como bacharel em História, ou seja, eu tive uma formação acadêmica voltada para a prática da pesquisa, disse a mim mesmo que as minhas buscas como pesquisador deveriam seguir uma linha freyreana. E qual que seria essa linha, esse norte investigativo, digamos assim, que eu seguiria a partir dos trabalhos e dos ensinamentos aprendidos com o autor de O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX? Essa linha compreende o entendimento de que os ditos documentos que podem subsidiar o assunto de nossa pesquisa não podem ser resumidos aos ditos documentos escritos e produzidos pelas instituições. Eu aprendi com mestre Gilberto Freyre que nós podemos recorrer, para tanto, a uma imensa variedade de testemunhos sobre determinada época e/ou assunto: selos, moedas, diários, jornais, cadernos de receitas, cartões-postais, testamentos, cartas, móveis, livros, etc. Além, claro, de registros fotográficos. Gilberto Freyre tinha uma inteira clareza de que muitas coisas podem nos dizer sobre assuntos específicos e não somente os ditos documentos oficiais.






Eu acredito que, na verdade, o convívio com a obra freyreana acentuou em mim esse encanto e esse fascínio que desde há muito eu tenho pela fotografia como flagrantes congelados de um tempo. Daí por que, quando ele me ensinou a ver a fotografia também como um testemunho, eu busquei ler estudos sobre essa manifestação artística a fim de alargar a minha compreensão de sua natureza. E fiz isso também, claro, como necessidade de ofício, porque, afinal de contas, eu precisava ter o entendimento de que, ao contrário do que muitos dizem, uma imagem não fala por si só. Boris Kossoy destacou que "Toda fotografia tem sua origem a partir do desejo de um indivíduo que se viu motivado a congelar em imagem um aspecto dado do real, em determinado lugar e época" (Boris Kossoi. Fotografia & História. 5ª ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014, p. 40). Sendo assim, penso eu, do mesmo modo que nos referimos ao lugar de quem fala, nós devemos também nos referir ao lugar de quem fotografa.

Possivelmente foi se referindo ao "lugar de quem fotografa" que Roland Barthes escreveu que queria uma História dos Olhares, "Pois a fotografia é o advento de mim mesmo como outro: uma dissociação astuciosa da consciência de identidade" (Roland Barthes. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 22).










Enquanto eu via as tais fotografias que compuseram a exposição A festa do fogo, da Ana Araújo - com um apuro todo dela, a fotógrafa deu títulos a cada um dos seus registros - eu mergulhei no meu tempo de criança quando, em minha cidade natal, Abreu e Lima, as festas de São João eram um acontecimento muito intenso nas ruas, sem o aparato desses shows que vemos hoje em dia. E era tão bom assim. E era tão divertido. Ainda não eram prementes o cuidado e o apelo ecológicos e, por isso, nós adorávamos ver os balões subirem e sumirem no céu, como na música cantada por Luiz Gonzaga. E comíamos em torno das fogueiras. E éramos tão felizes com um pouco com o qual se fazia muito.






Noutro texto clássico sobre o registro fotográfico, Susan Sontag nos disse que "Toda foto tem múltiplos significados; de fato, ver algo na forma de uma foto é enfrentar um objeto potencial de fascínio. A sabedoria suprema da imagem fotográfica é dizer: 'Aí está a superfície. Agora, imagine - ou, antes, intua - o que está além, o que deve ser a realidade, se ela tem este aspecto'" (Susan Sontag. Sobre fotografia. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo. Companhia das Letras, 2004, p. 33). Pense nisso também quando estiver apreciando fotografias; imagine o que elas não revelam ao nosso olhar imediato.

28 de setembro de 2024

Dane-se o etarismo!

 Por Sierra


Autorretrato
A ideia de que nós 50+ somos uma massa de indivíduos que caminham para o descarte total é uma das certificações de que o nosso processo civilizatório falhou tremendamente nesse quesito


Semanas atrás eu comecei a postar em minhas redes sociais - Instagram e TikTok - e no meu canal no YouTube vídeos, com duração de até um minuto, nos quais eu aparecia numa academia de musculação. Em tais vídeos eu colocava a frase "Malhando pra continuar desejável" como um, digamos, título, e, embaixo, algum dito também com viés de greia, de arriação e de tirada de onda. Os "títulos" sempre se repetiam e os enunciados da parte inferior é que eram modificados.

É claro e óbvio que nem todo mundo é obrigado e/ou tem capacidade para compreender algo que foi dito e/ou escrito. E, nesses casos, é preciso, como se diz hoje em dia em tom de gozação, desenhar para ver se fulano, beltrano e sicrano, enfim, compreendam o que se quis realmente dizer.

Acontece que eu não tenho paciência para todas as vezes "desenhar" uma mensagem, porque eu compreendo que estou sendo bastante claro naquilo que eu tenho dito. Normalmente eu sou tão sutil quanto um elefante numa sala de estar; e, por isso, imagino que o que eu escrevi e/ou falei ficou evidente e compreensível. Só que não.

Dias atrás uma mulher comentou num desses vídeos - foi no que eu disse que, se a pessoa tinha intenção de "ficar" comigo, entrasse numa fila - que eu era um "sem noção" e que duvidava que fosse aparecer alguém disposto a querer dar uma "ficada" com este que vos escreve. A criatura errou feio o diagnóstico: eu não sou um "sem noção": eu tenho noções de mais.

Assim como essa comentadora do meu vídeo, outras pessoas, como diria o Rolando Lero, "não captaram a mensagem". O dito "Malhando pra continuar desejável" é uma pilhéria e uma provocação para todos aqueles que diariamente praticam cruel e desavergonhadamente alguma modalidade do perverso e desumano etarismo contra pessoas mais velhas. Tais pessoas não compreenderam que eu aparecia ali - e irei continuar aparecendo, vou logo avisando - nos vídeos, numa academia de musculação, um ambiente habitualmente frequentado por adolescentes e jovens adultos, dizendo que eu, um homem que tem 50 anos de idade, também posso frequentar um lugar como aquele; que o interesse pela busca de um corpo em forma não é uma exclusividade de adolescentes e jovens adultos; e que a minha presença ali era e é uma comprovação de que nós, adultos 50+, podemos e devemos manter um autocuidado com o corpo, por meio de atividades físicas, como quaisquer outras pessoas que possam fazê-lo com vistas a conservar uma boa saúde e desfrutar, inclusive, de uma necessária vida sexual, porque também a atividade sexual não é uma prática exclusiva de jovens adultos.

Você que está lendo este artigo deve saber que o etarismo - os termos idadismo e ageísmo significam a mesma coisa - não diz respeito somente aos mais velhos; ele também pode ser verificado com relação aos jovens. No entanto é em relação às pessoas mais velhas que esse tipo perverso de preconceito lança suas garras dilacerantes. É algo que tem sido visto com uma frequência e uma abrangência absurdas em todas as classes sociais. Famílias de todos os níveis socioeconômicos são flagradas - e o noticiário está repleto de casos dessa natureza, como deixa ver qualquer busca que se faça na internet a esse respeito - cometendo verdadeiras barbaridades contra os indivíduos mais velhos que, por vezes, coabitam com seus agressores.

Uma das práticas mais cruéis que se fazem contra os idosos é tratá-los como indivíduos que não servem mais, que estão com o prazo de validade vencendo e que já, já precisarão ser descartados, porque ninguém quer ter um inútil dentro de casa, alguém que só dá aperreio e trabalho. Muitas vezes são pessoas idosas que, com suas aposentadorias e benefícios, sustentam famílias inteiras; e, mesmo assim, eles não recebem o bom e merecido tratamento que deveriam receber. As opiniões deles já não valem nada. Eles não têm mais gosto e vontade. Não precisam renovar o guarda-roupas. A comida é só aquilo e pronto. Não podem mais ser levados para algum divertimento porque ninguém tem tempo nem disposição para ir a outro lugar com ele que não seja um hospital. Não deixam sequer que eles vejam a cor do dinheiro deles. E fica reservado para eles um quartinho lá no fundo da casa para que as visitas nem saibam que eles existem.

O envelhecimento por si mesmo não me atormenta. O que, às vezes, chega ao meu pensamento é a imagem de um idoso incapaz de reagir aos maus tratos que lhes são desferidos. Cair nas mãos de "cuidadores" malignos é o tipo de pesadelo que, eu imagino, apavora muitos velhos.

Eu não acredito que a nossa sociedade deixará, de uma hora para outra, de ser extremamente desumana para com os mais velhos. Porém, eu creio que em  algum momento nós iremos nos dar conta de que essa reserva de desumanidade desse etarismo infame nos animaliza mais e mais.

De minha parte eu vou batalhar e me esforçar como eu puder e enquanto eu puder para me ver longe das garras desses indivíduos que abominam a velhice. E vou continuar dizendo de onde me for possível dizer: DANE-SE O ETARISMO!

Contra o tempo eu não luto, porque ele nunca perde. Contra os preconceituosos eu luto, porque nem sempre eles vencem.

21 de setembro de 2024

Sobre reorientação de rumo

 Por Sierra


Imagem: Internet
Dada a minha experiência de vida e a série de fracassos que eu colecionei ao longo de 50 anos de existência, eu sou levado a crer que reorientar o rumo deve ser encarado por todos e cada um de nós não como um jogar a toalha, não como uma derrota e sim como outra possibilidade de encontrar novos prazeres e satisfações e mesmo um novo sentido para a vida

Ao longo desses meus 50 anos de vida, não foram poucas as vezes em que eu, tratando comigo diante de mais um fracasso, chorei baixinho e longe da vista alheia. E, nesses momentos, quando eu precisava de alguma forma me consolar, eu me dava explicações necessárias para que eu pudesse erguer a cabeça e recomeçar com uma postura de quem reconhecia que aquilo realmente não poderia dar certo porque não houve um grande empenho e nem dedicação suficientes para que o objetivo fosse alcançado.

Durante um certo tempo eu não tive um entendimento - porque, talvez, me negasse a tê-lo - de que é algo tolo e ingênuo acreditar que todos nós somos capazes e estamos aptos a alcançar tudo e desempenhar toda e qualquer atividade e função que existem. E não é bem assim que as engrenagens do nosso ser funcionam.

Eu conheci pessoas que dedicaram anos e anos de estudos preparatórios mirando o ingresso em determinados cursos muito disputados em universidades públicas e nunca conseguiram aprovação. Quando eu as ouvia, eu dizia assim de mim para mim: "Por que essa criatura não canalizou essa energia e esse esforço de tantos anos para outro propósito?".

É claro que não existe uma resposta pronta para isso, porque, no caso dessas pessoas, por exemplo, o empenho para ingressar num determinado curso pode ser a realização de um sonho profissional como pode ser, também, uma meta visando não uma satisfação íntima e pessoal para si e sim para terceiros, como os pais delas.

Nessa seara de escolha do que cursar uma faculdade, por um tempo em pensei em fazer Jornalismo. Era um curso superconcorrido. Fiz um vestibular e levei pau. Passei em Letras e não quis ir. Prestei vestibular novamente e fui aprovado em História - todos os vestibulares foram para tentar conquistar uma vaga na Universidade Federal de Pernambuco -; tirando um breve período em que eu, ouvindo o canto de uma sereia pensei em cursar Direito, eu me encontrei no curso de bacharelado em História. E o ingresso na faculdade me fez ver que o que eu ambicionava no Jornalismo, que era escrever, eu poderia fazê-lo com o meu curso de História. E o tempo correu, veio a massificação da internet e com ela a possibilidade de eu escrever e publicar de forma independente nas plataformas virtuais. E isso foi uma dessas realização gigantes que nós fazemos e nos regozijamos intensamente com elas.

Eu recorri ao exemplo da escolha de um curso universitário para iniciar esse texto sobre reorientação de rumo porque ele é um caso bem emblemático na vida de muitos jovens - e eu já fui jovem - que acreditam que tal busca e escolha é uma decisão para o resto dos seus dias na face da Terra. E não é nada disso. Assim como eu, você certamente conhece pessoas que batalharam durante anos para ingressar num determinado curso universitário e, depois, largaram tudo ou então se formaram e não quiseram seguir na profissão. E isso é - desculpem a frase feita - mais comum do que se imagina.

Reorientação de rumo não diz respeito somente a escolhas profissionais não. Na verdade, essa reorientação, que muitos se recusam a fazer por N razões, está relacionada com inúmeros aspectos de nossa vida: sentimental; sexual; financeiro; de crença ou não no sobrenatural; no relacionamento com parentes e conhecidos; etc., etc.

Tem pessoas que pensam que desistir de algo é admitir derrota; é não ter determinação suficiente; é ser conformista; é não ter ambição; é, enfim, entregar os pontos. Qual é o problema de alguém admitir que chegou à conclusão que aquilo que ela tanto se esforçara para alcançar e/ou conquistar não lhe interessa mais? Por que ter vergonha de dizer que você desistiu de fazer em dezembro o que planejara desde o início do ano? Alguém já pensou quão daninho é manter e insistir num casamento que, a não ser no papel, não existe mais? Por que querer continuar tentando engravidar se mais de um médico lhe avisou que é altíssimo o risco de você ou a criança morrer?

Muita gente, infelizmente, dado que a sociedade cobra o tempo todo que sejamos eternamente jovens, belos e vitoriosos, não aprendeu e nem compreendeu que, muitas vezes, desistir de manter e/ou buscar algo e reorientar o seu rumo é um corajoso e necessário - e, em alguns casos, a única via possível - exercício de sobrevivência.

Hoje eu vi no programa Globo Esporte, da Globo Nordeste, uma reportagem muito inspiradora e entusiasmadora: um rapaz que perdeu um dos braços num acidente que resolveu praticar atletismo com vistas a se tornar um atleta paralímpico. Vejam como a vida é: o jovem transformou o resultado de um acontecimento muito ruim numa possibilidade de conquistas e de realização como atleta.

Dada a minha experiência de vida e a série de fracassos que eu colecionei ao longo de 50 anos de existência, eu sou levado a crer que reorientar o rumo deve ser encarado por todos e cada um de nós não como um jogar a toalha, não como uma derrota e sim como outra possibilidade de encontrar novos prazeres e satisfações e mesmo um novo sentido para a vida.

É verdade que a vida é uma só. Mas são várias, são inúmeras as possibilidades de bem ou mal conduzi-la.

14 de setembro de 2024

Cidades em chamas

 Por Sierra


Foto: Evaristo Sá/AFP
Incêndio no Parque Nacional de Brasília
Como, infelizmente, nossas cidades não serão refundadas e o caos urbano segue na ordem do dia, o por tantos menosprezado e poderoso aquecimento global há de continuar causando muita destruição no meio ambiente, meio ambiente esse no qual agimos recorrentemente como agentes que não tratam de cuidar bem dele. Muito pelo contrário


Faz algumas semanas que várias cidades brasileiras vêm enfrentando um verdadeiro combo de desgraças: estiagem + seca de rios e reservatórios de água + queimadas em biomas, propriedades rurais e terrenos baldios. E, quando se sabe que, de acordo com investigações policiais, vários desses incêndios foram causados por ações criminosas, aí é que a nossa calamidade aumenta, porque tomamos conhecimento de que, em vez de buscar contribuir para superar essa realidade sem precedentes, uns e outros estão tratando de piorar a situação.

Em meio a esse quadro em que o fogo e a fumaça seguem devastando paisagens e a vida animal que nelas habita, ainda há os que se comportam descrentes do tão propagado aquecimento global, fenômeno que tem provocado alterações no clima em praticamente todas as regiões do planeta. Aí junte-se negacionismo com o nosso tão conhecido desprezo para com a preservação do meio ambiente e temos um cenário perfeito para que soframos e paguemos por tudo de ruim que diuturnamente nós praticamos contra a natureza.

Os brasileiros constituímos uma sociedade que é muito, muito porcalhona e amiga fidelíssima da cultura do desperdício. Por onde se ande por este país afora nós nos deparamos com uma urbanidade caótica de mãos dadas com o descarte irregular de resíduos de todo tipo em tudo quanto é canto: córregos, ruas, beiras de praia, rios, áreas de vegetação nativa, bueiros, etc. E depois reclamamos das inundações quando as chuvas fortes vêm. E depois protestamos contra o racionamento de água. E depois apontamos o dedo para fulano, beltrano e sicrano e dizemos que o grande e único culpado é o poder público. Tiramos o corpo fora e não admitimos e nem assumimos responsabilidade alguma por este estado de coisas.

Não passa pela minha cabeça acreditar que os grandes incêndios que anualmente vêm destruindo milhares de hectares dos nossos biomas sejam resultantes de causas naturais. Nós somos uma nação de pirômanos. E, por isso, frequentemente recorremos ao fogo para "resolver" alguns "problemas", como fazer sumir lixo, papéis comprometedores e abrir áreas para lavoura e pasto. Faz cinco séculos - cinco séculos! - que nós recorremos à queima de canaviais para facilitar a colheita da cana-de-açúcar, que é um método primitivo e barato, ainda que poluente e destruidor de vida animal: alguém faz ideia de quantos animais morrem toda vez que um canavial é queimado?

Nos últimos cinco anos, sobretudo por causa do permissivo e destrutivo desgoverno de Jair Bolsonaro, que tudo fazia para agradar o chamado agronegócio ao mesmo tempo que fechava os olhos para o avanço do garimpo ilegal e enfraquecia a atuação dos órgãos fiscalizadores, nós assistimos a constantes acusações contra o agronegócio que é apontado como o grande vilão no que diz respeito à degradação do meio ambiente. Em que pese o fato de que nem todo o agronegócio opera no modo destruição do espaço natural, igualmente é um fato - e as milhares de multas aplicadas pelos órgãos ambientais comprovam isso - que parte do agronegócio devasta áreas de mata nativa, interfere em cursos de rios e riachos e acaba com a biodiversidade para abrir campos para criação de gado e lavouras. Não adianta que o agronegócio pose de vítima nessa batalha que põe de lado a preservação do meio ambiente e a alimentação da população, porque, segundo estudiosos do assunto, os espaços que neste país já estão ocupados para a produção agropecuária são mais do que suficientes para suprir as demandas alimentares de toda a nossa sociedade. E, tanto isso é verdade, que faz séculos que o Brasil exporta gêneros alimentícios.

Eu li, aqui e ali, especialistas afirmando que este país não dispõe de um plano de contingência para enfrentar um cenário como este de incêndios em áreas de vegetação e de estiagem, que está provocando rápida perda de volume de água de vários rios. A bem da verdade, a maioria de nossas cidades não dispõe sequer de universalidade de saneamento básico e nem de aterros sanitários. A maioria de nossas cidades opera no modo degradação urbana. Daí por que as ocupações desordenadas e a favelização de tantos espaços e os recorrentes casos de enchentes e deslizamentos de terra que, todos os anos, provocam a morte de dezenas de indivíduos.

Como, infelizmente, nossas cidades não serão refundadas e o caos urbano segue na ordem do dia, o por tantos menosprezado e poderoso aquecimento global há de continuar causando muita destruição no meio ambiente, meio ambiente esse no qual agimos recorrentemente como agentes que não tratam de cuidar bem dele. Muito pelo contrário.

O fogo está consumindo e destruindo rapidamente vastas áreas de nossa biodiversidade. Oxalá ele consiga também queimar a nossa ignorância e o nosso desprezo para com a preservação da natureza, porque o nosso negacionismo não é só em relação ao aquecimento global.