Por Clênio Sierra de Alcântara
“Zé do Carmo (inda menino
ou como ele diz: moleque
de-Goiana) foi à feira
e (além do chão) pegou frete
de mil réis pelo transporte das galinhas (e um peru
de cerâmica) que ao sol
cozeram seu barro cru
(era o primeiro trabalho
do mestre-Zé que de-logo
se acostumou com os latidos
ou os mugidos do fogo”.
Os anjos de terr(a) cota. Marcus Accioly.
No mesmo final de semana em que eu e o meu colaborador Ernani Neves decidimos pegar a estrada rumo à cidade de Goiana, com vistas a coletar material para o nosso blog, tivemos a grata, muito grata satisfação de entrarmos num ateliê e encontrar um artista de mão cheia, como se diz aqui em nossa terra. Trata-se de José do Carmo Souza, ou simplesmente, Zé do Carmo, reconhecido pela Lei Estadual nº 12.196, de 2 de maio de 2002, como Patrimônio Vivo de Pernambuco.
Instalado no número 103 da Rua Padre Batalha, área central da cidade, defronte ao restaurante Buraco da Gia, o espaço de criação de Zé do Carmo é um recanto onde reina uma atmosfera de paz. Quando entrei naquele lugar e me pus a conversar com aquele homem tão entusiasmado e cioso de seu labor artístico – “Eu faço arte e não artesanato”, ele enfatizou -, comecei a sentir que ganhara o dia. Em meio a esculturas de argila, quadros, livros e fotografias, Zé do Carmo nos falou de sua vida, de pessoas importantes que conheceu, como Dom Helder Câmara e mestre Gilberto Freyre, ao lado de quem foi fotografado, nos anos 80, quando o autor de Região e tradição visitou Goiana para conhecê-lo, por sugestão, segundo me disse, do pesquisador Renato Phaelante, e de sua arte.
Muito católico Zé do Carmo esculpe e pinta figuras com o seu quê de angelicais. “Por que o senhor põe asas em todos os personagens?”, eu lhe perguntei. E ele de pronto respondeu: “Eu coloco asas nessas figuras porque no meu entendimento toda pessoa tem um lado bom e outro ruim, ou seja, toda pessoa é um anjo pecador. Dom Helder uma vez me disse que não existia anjo pecador, mas para mim existe”.
Não sei dizer por que – talvez essas coisas não se expliquem -, mas houve um momento em que eu me arrepiei ao ouvir aquele homem narrar a ocasião em que recebeu – o anúncio dos 12 primeiros contemplados com a honraria ocorreu em 28 de dezembro de 2005; e a solenidade comemorativa em 31 de janeiro do ano seguinte – o merecido título de Patrimônio Vivo. Qualquer um notaria o brilho nos seus olhos quando ele falava do reconhecimento alcançado; do esmero com que continua a pintar os seus quadros; das belas peças produzidas por sua mãe Joana Izabel de Assunção – “Essas eu não vendo de jeito nenhum” -; do seu gigante Vovô Natalino que no seu dizer é o Papai Noel brasileiro; e do seu projeto de transformar a sua casa-ateliê em um bem organizado museu.
Não pude deixar de dar um abraço naquele homem tão franzino e forte a fim de sentir ao menos um pouco de sua contagiante energia. Não pude conter a emoção de estar ao lado de um grande artista; grande porque só os grandes artistas têm consciência do valor de sua arte e de si mesmos como agentes criadores.
Quando Zé do Carmo me falou que estava tentando escrever uma autobiografia, eu lhe disse palavras de incentivo, destacando o quão importante é o testemunho para as gerações futuras de pessoas como ele. Recordo que, entre outras coisas, eu falei assim: “Escreva, escreva sim, porque as pessoas precisam conhecer a vida de um grande artista”.
Se dependesse de mim eu teria passado o restante daquele domingo na muito boa companhia do Zé do Carmo, ouvindo suas histórias e respirando a atmosfera do seu imaginário encantador. Zé do Carmo, com toda a sua simplicidade, me deu uma enorme lição de vida: a de que se deve cultivar até o fim de nossos dias neste mundo a verdade na qual acreditamos.
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