Por Clênio Sierra de Alcântara
Especialmente para João Maria
Para o visitante que chegasse ao
Recife na última década do século passado não era absurdo acreditar que o fim
do mundo estava próximo: o ano 2.000 assinalaria de fato o término de tudo. E se
o mundo iria mesmo acabar na virada da centúria, para que cuidar da cidade? O
Recife estava abandonado. O Recife se autodestruía. E enquanto uma massa
alienada se esbaldava numa coisa chamada Recifolia, que era um verdadeiro acinte
à cultura local, Chico Science e os seguidores do Movimento Mangue Beat
proclamavam que ninguém fugia ao cheiro sujo da lama da Manguetown, ecoando o
“ciclo do caranguejo”, de Josué de Castro. O Recife era a cidade do descaso.
O cenário de ruas e calçadas
esburacadas, de praças sem manutenção e de uma atmosfera impregnada de
desesperança era acompanhado pelo acelerado desaparecimento dos cinemas,
empobrecendo um pouco mais a vida cultural de uma cidade que, havia não muito
tempo, era vendida como a “capital do Nordeste”. Os altos índices de
criminalidade encontraram seu espaço nas páginas de um jornal lançado naquela
década – a Folha de Pernambuco – do qual se dizia que, caso se amassasse alguma de
suas páginas, sairia sangue. A mortandade se alastrava pelas periferias. Mas o
cenário de morticínio era marcado também por belos sobrados abandonados no
centro da cidade, vários deles às margens do Capibaribe, o “papa-estrelas” do
dizer de Gilberto Amado; o rio que viu tantos Recifes nascer e morrer, como
registrou Gilberto Freyre numa evocação a Manuel Bandeira; o rio que conhecia de
muito perto a miséria de um sem-número de recifenses e emigrados que chegavam à
capital sonhando em tomar para si um mínimo que fosse da riqueza que alguns diziam
que ainda existia por ali. O Recife era a cidade do medo naqueles anos que eu
classifiquei como a “década do desespero”.
Fosse de dentro para fora ou de
fora para dentro, a face do Recife era uma só: a de uma cidade que, tal qual
uma prostituta no apogeu de sua velhice, fazia com as lembranças de tempos
gloriosos, as muletas necessárias para se manter de pé.
No dia em que escreverem o livro
de minha vida certamente destacarão, em páginas das mais turbulentas, que o ano
de 1998 foi aquele em que eu mergulhei por inteiro – e sem escafandro – dentro
do Recife, dentro de mim, dentro do mundo. Eu, tão dado à covardia, encarei
naquele ano a vida com uma coragem e com um destemor absurdos. Na cidade do
medo eu encarnava o intrépido, eu era a personificação do monstro que tudo
queria, que tudo podia fazer: conhecer pessoas, coisas, sensações. Eu parecia
fadado a entregar meu corpo em imolação pela causa de uma liberdade irreversível e
irrestrita.
Tempos de Miguel Arraes. E mestre
Ariano Suassuna, soprando com esforço a névoa do obscurantismo que insistia em
pairar sobre a província, fazia o que podia como secretário de Cultura. Criou
até o Cineteatro Arraial, a singela casa onde experimentei em doses cavalares o
prazer proporcionado pela magia da sétima arte vendo, entre outros, Akira
Kurosawa e Louis Malle. O Arraial onde eu conheci Ernani Neves numa noite
dedicada a Simião Martiniano, o camelô cineasta.
É de se ver que, na “década do
desespero”, ao menos no Recife, nem todos se deixavam abater pelo estado
lastimável em que se encontrava a cidade, nem todos faziam planos de arrumar as malas e buscar outras searas. Havia ali uma geração que não se curvava, uma
geração que era feita da mesma madeira de lei que cupim não roi, de que falava
Capiba. Com o Movimento Mangue Beat parte dos recifenses começou a sair do
estado de letargia. Com a realização do filme Baile perfumado o audiovisual
pernambucano disse ao resto do país que, ainda que a duras penas, esta terra
tinha gente competente e talentosa que estava dando tudo de si para fazer
renascer uma atividade que, em outros tempos, tivera dias memoráveis. Era um
esforço de muitos para tirar o Recife das trevas – e a luz era a arte.
Fachada do prédio da Fundação Joaquim Nabuco que abriga entre outros o cinema e a Galeria Vicente do Rego Monteiro |
Foi ainda em 1998 que o Recife
viu nascer uma das experiências culturais mais marcantes e que eu tive o
privilégio de acompanhar desde o começo – a abertura de uma sala de exibição de
filmes num prédio da Fundação
Joaquim Nabuco, na Rua Henrique Dias, no bairro do Derby. Em princípio chamado
de Cineteatro José Carlos Cavalcanti Borges, depois passou a atender pela
designação de Cinema da Fundação Joaquim Nabuco; mas quase todos os seus
frequentadores o chamam apenas de Cinema da Fundação – a sala continua
homenageando José Carlos Cavalcanti Borges.
Na camiseta, vendida na bilheteria, Robert de Niro é o Touro indomável |
Este é o espaço de um aconchegante café que funciona no local |
Ao longo dos anos os equipamentos do cinema foram sendo modernizados para a satisfação de seu público cativo |
Eu no aguardo do início da sessão de Porcos raivosos seguida de Doméstica |
Com uma programação dirigida por
Luiz Joaquim e pelo crítico de cinema Kleber Mendonça Filho – e é com muita
satisfação que eu vejo que Kleber como que acompanhou o sucesso da sala de
exibição, empreendendo uma promissora carreira de cineasta com curtas-metragens
como Recife frio, e um longa, O som ao redor, que foi uma das sensações
cinematográficas brasileiras no ano passado -, o Cinema da Fundação logo caiu
no gosto de um público ávido por apreciar filmes que não entravam no circuitão
– naqueles anos o circuitão era na verdade um circuitinho -, produções recentes
e antigas, que Kleber e Luiz punham em cartaz a fim de diversificar ainda mais
a programação. Além do que era exibido, eles fizeram algumas experimentações
quanto aos horários das sessões. Assim foi que apareceu uma chamada Sessão
Paranormal, que começava à meia-noite – lembro de ter ido a pelo menos uma
dessas sessões alternativíssimas.
Entre longas e curtas-metragens
eu fui efetuando minha educação pela tela do cinema - rindo e chorando muito: Corisco e Dadá, Como ser
solteiro no Rio de Janeiro, Anahy de las Misiones, O que é isso, companheiro?,
El dia de la bestia, Funny games, Muro, Superbarroco, Vitrais, Clandestina
felciidade, Lemon tree, Cartola: música para os olhos, Vidas secas, O segredo
de Brokeback Mountain, Deuses e monstros, Amigas de colégio, Café da manhã em
Plutão, Trem da vida, A história de Adele H, Boleiros, Quando tudo começa,
A mulher e o atirador de facas, Velvet goldmine, Touro indomável, Texas Hotel, Recife frio, O pedido, Véio, O som ao redor,
Caché, Amor, Boogie nights – Prazer sem limites, Buena Vista Social Club,
Bocage – O triunfo do amor, Sonata de outono, Desconstruindo Harry, Pickpocket,
O sol por testemunha, Dançando no escuro, O mundo de Andy, Vamos nessa,
Felicidade, Gaijin – Caminhos da liberdade, Radiofreccia, Incontri proibiti,
Magnólia, Porcos raivosos, Doméstica, Hana-Bi – Fogos de artifício, Aimeé e
Jaguar, A enguia, E sua mãe também, Dogville, A trapaça, Hilary e Jackie, Os idiotas,
Jackie Brown, Dogma, A maçã, Corra, Lola, corra, A vida sonhada dos anjos,
Babilônia 2000, Amor à flor da pele, A hora do show, Festa de família, O
hospedeiro, À meia noite levarei sua alma, Que fiz eu para merecer isto?...
Foi nas idas ao Cinema da
Fundação que eu conheci o cinéfilo de carteirinha e montador premiado João
Maria – foi João quem montou, entre outros, Muro, de Tião, premiado no Festival
de Cannes, e O som ao redor, apontado pelo The New York Times como um dos dez
melhores filmes do ano passado -; e ficamos amigos desde então. Acompanhando
suas andanças, eu entrei pela primeira vez numa ilha de edição, quando ele me
levou para ver as imagens ainda verdes, das quais sairia o clipe dirigido por
seu amigo Martins, da música “Sapopemba”, do grupo Comadre Florzinha. E foi
ainda por intermédio de João Maria que eu fiz uma figuração – as pessoas só
sabem que eu estou ali por causa do meu nome nos créditos – no curta-metragem A
visita, de Hilton Lacerda, na sequência filmada na Praia do Paiva. Hilton que também vem percorrendo uma trajetória de êxitos como roteirista e diretor; recentemente o seu ainda não lançado filme Tatuagem, foi eleito o melhor do Festival de Gramado.
Consolidado como verdadeiro point
de cinéfilos, o Cinema da Fundação, ao longo dos seus quinze anos, promoveu
mostras bastante concorridas como a de François Truffaut, Robert Bresson, Alain
Delon e Zé do Caixão; e a de filmes espanhóis, italianos e franceses - estes
últimos dentro do Festival Varilux. E sem falar das Retropectivas/Expectativas no mês
de dezembro, que causam sensação na cidade.
Antes que terminasse o século XX
eu já me encontrava quase que completamente impregnado da seiva bruta do
Recife. No atropelo das horas Helen Graças se esvaiu de mim como
água que escorre da concha das mãos. Descobri André Araújo e
Clarice Lispector num tempo em que, sem dúvida alguma,
não existia um coração mais selvagem do que o meu: nem perto nem longe
dali. Apresentei Aderbal Lima ao Cinema da Fundação numa sessão do filme Boleiros, de Ugo Giorgetti. Entrei na turma de Darry, Poniboy e Sodapop ao ler Outsiders – Vidas sem
rumo, da Susan E. Hinton, que me foi emprestado por João Maria, quando eu
buscava dar um rumo a minha caminhada. E guardei muitos fragmentos daqueles
dias em escritos para o meu próprio consumo – quiçá para o de outrem
futuramente.
Daqui para baixo folders, panfletos e programas distribuídos no Cinema da Fundação que compõem o meu acervo |
Passados quinze anos, desde o début do Cinema da Fundação, o Recife – o Recife, sim! Recife, não!, como preconizava o Mestre de Apipucos – continua procurando se reerguer, estendendo as mãos para que cada um de nós de alguma maneira contribua para sua reabilitação a fim de que lhe seja restituído o que ele tinha e tem de melhor: sua gente guerreira e criadora, sua beleza aliciadora, sua história verdadeira, sua atmosfera inspiradora. Tal qual o Cinema da Fundação, que vem se renovando continuamente, o Recife deve ser mantido sempre em cartaz.
Clênio, que lindo registro. Comovente.
ResponderExcluir